3° Neurônio | crônica

Tributos de Braulio e Ernani aos 80 anos de LFV

Carica de Cado, criada especialmente para esta celebração

Verissimo e a marca do zorro | Braulio Tavares

 

Quando eu tinha catorze ou quinze anos, a Editora Globo de Porto Alegre e a Livraria Pedrosa em Campina Grande conspiraram mediante alguma Cabala cósmica e me permitiram ler e reler à vontade os livros de viagens de Érico Verissimo.

Em meados dos anos 1960 Érico já era um dos autores da “primeira divisão”, se houvesse um ranking da literatura. Aparecia nos livros escolares, vendia edições sucessivas.

Num desses livros de viagens ele fazia logo no parágrafo de abertura uma descrição de onde estava, a cidade, a época, registrava o instante mesmo em que estava redigindo aquilo. E dizia a certa altura: “No andar de cima (ou de baixo, tanto faz) meu filho está ensaiando, mamando no saxofone o leite gordo do blues”. 

Muitos anos depois essa lembrança me veio quando eu já tinha lido o quinto ou sexto volume das crônicas de Luís Fernando Verissimo, e alguém numa entrevista mencionou o saxofone. A essa altura ele já era um dos cronistas mais lidos na imprensa e vendido nas livrarias.

Verissimo ganhava a gente (o leitor jovem) por diferentes motivos: o humor, o nonsense, a linguagem, as situações, a comédia humana… No meu caso, era isso tudo e mais uma coisa: o exemplo de uma escrita de destreza absoluta, capaz de jogar qualquer leitor dentro de qualquer situação com duas ou três linhas, às vezes menos do que isto.

Temos entre nós a tendência ao nariz de cera, ao prelúdio interminável, por isso eu admiro quem apresenta uma situação complexa em rápidas pinceladas, como se diria antigamente. Como Machado, que nem sempre fazia isso, mas quando o fazia parecia a espada do Zorro traçando um “Z” mais depressa do que o olho podia acompanhar.

Dois ou três movimentos da espada-caneta, é o quanto basta a Verissimo para pegar o leitor pela mão e jogá-lo no epicentro de um improvável bate-boca entre dois personagens sem nome e sem rosto, ou na linha de fogo de um faroeste ou policial noir, conjurado do Nada com um ou dois detalhes e pronto, decolou.

Existe no leitor habitual de LFV a expectativa desses inícios-catapulta, mas meu interesse é pelo leitor não-habitual, o leitor que está chegando no autor pela primeira vez, e às vezes sem muita idéia de quem é, alguém que um colega ou um professor falou que tinha coisas legais. Três linhas, e a isca foi mordida.

No fim das contas, talvez não seja tão difícil arrebatar assim um leitor. Basta dizer-lhe de maneira rápida e nítida o que está acontecendo, e despertar-lhe uma vontade incontida de saber o que acontece em seguida.

Toda literatura precisa ser feita assim?  Claro que não, mas é grande o número dos que tentam e não conseguem. Às vezes a história a ser contada requer uma contação empolgante. E isso nem todo bom inventador de histórias tem.

Verissimo afiou dez mil vezes a lâmina dessa espada chamada crônica leve, um gênero tão nosso. Fez o mesmo com o texto de humor, excelente laboratório de técnicas, porque nele se perdoa qualquer experimentalismo retórico ou semiótico, desde que o resultado seja engraçado, faça mesmo rir.

A crônica jornalística, de Machado e Lima Barreto para cá, misturada às vezes com prosa poética e com relatos pitorescos, nos ajudou a combater a erudição balofa, prolixa, pomposa, mesmo que ao preço das consequências de ser a crônica um gênero tido como “mais fácil” do que o conto.

O humor tem essa autoridade moral das histórias que não pretendem ser nada mais do que são, histórias. “Entram num bar um maestro, um viúvo e um dinamarquês.” Isso é realidade suficiente para fazer qualquer leitor alçar voo.

Verissimo adquiriu essa autoridade narrativa, que por um lado formou mais de uma geração de leitores, e por outro lado continuará a ser submetida à mais imprevisível das avaliações, a do leitor que não conhece o livro, não sabe (nem quer saber) quem é o autor, mas é capaz de reconhecer logo nas primeiras linhas uma história bem contada.

 

Braulio Tavares vive no Rio. É escritor, tradutor e cientista. Publicou por 13 anos no Jornal da Paraíba (entre 23 de março de 2003 até 10 de abril de 2016), quando fechou a edição impressa. Para ler outros artigos sobre palíndromos, acesse seu blog Mundo Fantasmo.

 

Carica de Cado, criada especialmente para esta celebração

 

Dívida veraz | Ernani Ssó
 

Devo muito ao Verissimo, como escritor. Ele está entre os dez autores a quem mais devo. Mas não o culpem. Aprendi o que pude.

Comecei a ler o Verissimo em 1972 ou 73, em meio a uma crise existencial cabeluda: tinha metido na cabeça que seria humorista. Quer dizer, devo ter começado a ler o Verissimo pelo humor de suas crônicas. Mas, logo descobri, a graça era apenas uma das virtudes literárias do homem: ele tinha tudo o que o bom senso exige nessa aventura de loucos varridos. Sim, clareza e precisão. Não chega? Inteligência. Verissimo é da turma do Robert Louis Stevenson: o inteligente que não ostenta a inteligência, que não se compraz em esfregá-la em nosso nariz.

Mas tem mais: ele nunca faz literatura. Tem um teste simples pra descobrir isso. Leia um texto em voz alta. Se soar como se você tivesse uma batata na boca, é literatura. Ou se você começar a sentir comichões em locais remotos, a suar frio e a desejar que a terra se abra e você suma, pode crer, você está sob um ataque de beletrismo. Num país de bacharéis, escrever com naturalidade, sem dar mole pra pompa e pra frescura, é quase um milagre.

Ser claro, preciso, inteligente e ainda se expressar com graça é difícil, mas não tão raro. Cada país tem uma meia dúzia de casos desses por século. O difícil é fazer isso por anos e anos sem botar os bofes pra fora.

Tive a sorte de conhecer o Verissimo pessoalmente. Sou péssimo com datas, mas cravo: foi em 1975, quando o Fraga organizou uma antologia de humor chamada QI-14, onde entrei de contrabando. Nosso encontro com certeza vai pros anais da história literária brasileira. Ele me disse: oi. E eu, mesmo manietado pela timidez da minha adolescência, respondi na bucha: oi. Isso foi tudo, mas o silêncio que se seguiu estava prenhe de possibilidades.

Nesses últimos quarenta e um anos, nos encontramos algumas vezes e até falamos frases completas. Infelizmente, nunca tive coragem de agradecer os momentos felizes em que li e reli muitos dos livros dele. Gosto de pagar minhas dívidas, desde que não envolvam dinheiro, mas tem horas que o pudor atrapalha.

Enfim, desculpe o mau jeito. E feliz aniversário, cara. Continue escrevendo pelo menos até os 120.

 

Ernani Ssó é escritor, vive em Porto Alegre. Colabora com os sites Coletiva Net Sul21, e virou colaborador fixo do Seguinte:

 

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