O anúncio da autorização para a construção de uma ferrovia de passageiros ligando Porto Alegre a Gramado é, sem dúvidas, um marco histórico para o Rio Grande do Sul — e um sinal de que o Estado avança, ao menos na intenção, para um mobilidade mais sustentável. Mas, como todo projeto ambicioso, ele vem acompanhado de desafios concretos, que não podem ser ignorados. E o principal deles atende por um número: R$ 4,5 bilhões.
A SulTrens, empresa responsável pelo projeto, recebeu do governo Eduardo Leite uma autorização inédita no país: a outorga para implantar, operar e explorar por 99 anos um trem moderno, rápido e sustentável. A ferrovia deve cortar 19 municípios, entre eles Gravataí e Cachoeirinha, conectando a capital à Serra gaúcha em cerca de uma hora.
A ferrovia pode ser a porta de entrada para um novo modelo de mobilidade: menos poluente, mais eficiente e alinhado ao crescimento turístico e econômico da região. Um modelo que pode inspirar o transporte urbano, inclusive. Na esfera pública há estudos para extensão do Trensurb, por exemplo, para Cachoeirinha e Gravataí; leia mais em Trem Porto Alegre–Gramado passará por Gravataí e Cachoeirinha: o que se sabe sobre o projeto de R$ 4,5 bilhões; mapas, estações e modelos.
Mas a empolgação precisa vir acompanhada de responsabilidade e pragmatismo. O modelo adotado prevê que a totalidade dos investimentos será feita pela SulTrens com capital privado. E captar R$ 4,5 bilhões não é tarefa simples. Exige não apenas uma engenharia financeira sofisticada, mas também credibilidade, governança, garantias regulatórias e, acima de tudo, atratividade comercial para investidores.
A SulTrens, pela sua composição societária, é formada por um consórcio de empresas nacionais. Constituído em janeiro do ano passado, reúne RG2E Engenharia Consultiva, BF Capital Assessoria em Operações Financeiras e STE Serviços Técnicos de Engenharia. Tem capital social de R$ 120 mil.
Não há, ao menos por enquanto, chineses no negócio. A China é a referência mundial em tecnologia e investimentos no setor. Porém, coincidência ou não, a CRRC Brasil Equipamentos Ferroviários Ltda., empresa chinesa líder global na fabricação de trens, começou a negociar instalar em unidade em Araraquara (SP).
É animador saber que estudos preliminares indicam que o projeto tem viabilidade de operar com receitas próprias. Mas também sabemos, por experiências nacionais e internacionais, que o transporte ferroviário de passageiros raramente é autossuficiente sem algum tipo de subsídio. A exceção à regra, como alegado neste caso, ainda precisa ser comprovada na prática.
Isso não deve, contudo, diminuir a importância estratégica do projeto. Ao contrário: reforça a necessidade de acompanhamento próximo por parte do poder público, da sociedade e da imprensa. A Secretaria de Logística e Transportes promete fiscalização trimestral, o que é bem-vindo — mas será preciso mais do que relatórios. Será preciso transparência, prestação de contas e diálogo constante com as comunidades afetadas e beneficiadas pelo traçado.
É igualmente fundamental que Gravataí e Cachoeirinha, por onde os trilhos vão passar, mesmo que fora da zona urbana, não sejam apenas vias de passagem, mas também polos de integração e desenvolvimento. Com planejamento urbano adequado, as cidades podem usar a ferrovia para atração de investimentos.
Ao fim, o anúncio feito pelo governador é, sim, uma boa notícia. Mas os trilhos que hoje empolgam os discursos e provocam desconfiança nas redes sociais ainda precisam sair do papel. E isso só será possível se houver capital.
A ferrovia é, antes de tudo, um compromisso com o futuro. Um futuro que passa por Gravataí, por Cachoeirinha e por uma nova forma de pensar o transporte. Que os trens venham. Mas que não esqueçamos: o caminho ainda está em construção. Só pelo modelo restar em debate, já é alguma coisa.