Associo-me ao artigo do jornalista Reinaldo Azevedo, Trump e penca de iniquidades; por que ele pode facilitar reeleição de Lula.
Sigamos no texto.
Donald Trump, para a surpresa de ninguém, contou uma penca de mentiras em seu discurso de posse. Não seria Trump se fosse diferente. Ele evoca uma realidade paralela, muito pior do que a original, em que seus adversários conspiram contra “a América” e seu povo, e se anuncia como o salvador, que vai devolver o país à Era de Ouro, desde que todos se unam à vontade do “líder”.
Raoul Girardet analisou a estrutura da pregação autoritária, de cunho reacionário, no livro “Mitos e Mitologias Políticas”, de 1986. Trump é a versão contemporânea, na forma cuspida e escarrada, daqueles elementos estruturais apontados por Girardet. A cadela do fascismo, além de estar permanentemente no cio, como apontou Brecht, também é antiga. E Lula em meio a tudo isso? Chegarei lá.
O (re)presidente já começou a movimentar a sua máquina de iniquidades. Declarou emergência na fronteira do Sul dos EUA, o que quer dizer que vai deslocar militares para tentar impedir a chegada de novos imigrantes ilegais e reiterou que fará deportações massivas. Vai mesmo expulsar 11 milhões de ilegais? É improvável. Mas seus canibais estão com sede e com fome. O presidente vai lhes fornecer a carne barata dos imigrantes, talvez não a ponto de causar um forte impacto na economia, mas é certo que não poderá ser uma ação muito discreta. Líderes autoritários precisam de setores da sociedade em mobilização permanente, estejam no governo ou na oposição.
Os mercados entenderam que haverá cautela na questão das tarifas. O tema não se presta a uma medida barulhenta como a primeira relacionada à imigração. Mas Trump foi perigosamente assertivo em outro tema: anunciou que vai tomar o Canal do Panamá, que estaria sob o controle da China, que sobretaxaria especialmente os navios americanos. Não há uma gota de verdade em tudo isso.
Na questão ambiental, há, obviamente, um primeiro abalo no concerto possível das nações, já tão precário e, como se sabe, ineficaz para impedir a elevação de 1,5º na temperatura média do planeta: aumentou 1,6º, o que acena para novos sortilégios mundo afora. O novo velho mandatário não está nem aí: anunciou o desmonte da agenda ambiental, e o governo americano, mais uma vez, resolveu se retirar do Acordo de Paris. Também está fora, de novo, da Organização Mundial da Saúde.
Trump, se notarem, quer ser um líder contra o mundo, inclusive contra países aliados, não um líder no mundo. Ao se referir às tarifas, por exemplo, saiu-se com este primor:
“Iniciarei imediatamente a revisão do nosso sistema comercial para proteger os trabalhadores e as famílias americanas. Em vez de tributar os nossos cidadãos para enriquecer outros países, iremos impor tarifas e taxar países estrangeiros para enriquecer os nossos cidadãos.”
Mas por que as demais nações se submeteriam a esse tipo de relação? Pois é…
Enquanto assinava seus primeiros decretos no Salão Oval da Casa Branca, Trump respondeu a perguntas da jornalista brasileira Raquel Krähenbühl, da Rede Globo. Deu-se o seguinte diálogo:
Raquel: O sr. falou com o presidente Xi [Jinping] sobre a guerra na Ucrânia? China e Brasil, juntos, têm uma proposta para trazer a Rússia e Ucrânia para conversar…
Trump: Por mim, tudo bem. Eu acho ótimo e estou pronto.
Raquel: E quando o sr. vai conversar com parceiros brasileiros?
Trump: O Brasil está envolvido? Eu não sabia. Você é brasileira?
Raquel: Sim.
Trump: Ah, ok. Então é por isso que eles estão envolvidos, eu acho.
Raquel: Quando o sr. vai falar com o presidente brasileiro? Como o sr. vê a relação com a América Latina e o Brasil?
Trump: Excelente! Deve ser excelente. Eles precisam de nós muito mais do que nós precisamos deles. Aliás, nós não precisamos deles. Todos precisam de nós.
Bem, dispenso-me de ter de explicar que os EUA são um parceiro fundamental para o Brasil. Notaram, no entanto, a arrogância e o sentido do verbo “precisar”? Um país não se relaciona com outro, salvo nos momentos de ajuda humanitária, como benemerência ou caridade. Digamos que os países se precisam.
E saibam: Trump não deu essa resposta como sinal de menoscabo ao Brasil. Em muitos aspectos, a Europa tem mais razões para se preocupar com seus delírios de potência. Num mundo multipolar, o falastrão se manifesta como se a vontade dos EUA fosse a da Roma imperial. Se os EUA ainda fossem o que Trump fantasia que são, convenham, o homem supostamente mais poderoso da Terra não estaria ameaçando o Panamá.
Lula e Trump
Na reunião ministerial de ontem com ministros, Lula disse a coisa certa sobre as eleições americanas:
“Tem gente que fala que a eleição do Trump pode causar problemas para democracia mundial. O Trump foi eleito para governar os Estados Unidos, e eu, como presidente do Brasil, torço para que ele faça uma gestão profícua. Para que o povo americano melhore e que os americanos possam continuar sendo um parceiro histórico”. E ainda: “Porque, da nossa parte, nós não queremos briga com ninguém. Nem com a Venezuela, nem com os americanos, nem com a China, nem com a Rússia. Nós queremos paz”.
Lula estava bastante sereno. Destaco que, sem ser hostil aos EUA, evidenciou que existem outros atores no mundo, não é mesmo? Anunciou ainda que está muito bem de saúde. Traduzo: é evidente que sua vontade é disputar e reeleição em 2026.
Não havia tensão nenhuma da voz de Lula. Uma especulação: o líder brasileiro pode até estar um tantinho mais tranquilo do que antes.
A extrema-direita e mesmo alguns que se querem direitistas democráticos tratam o presidente americano com sabujice vergonhosa, ainda que a uma razoável distância. Em mãos habilidosas, pode ser relativamente fácil passar adiante a leitura de que o embate de 2026 se dará entre Lula, “um líder que defende os interesses nacionais”, e Fulano (ou Fulana) de tal, um subalterno do chefão americano, aquele que faz cara de mau. Trump pode criar dificuldades para o governo, sim, mas pode ser, involuntariamente, um elemento facilitador da reeleição de Lula.