RAFAEL MARTINELLI

Um alerta sobre projeto de vereador que proíbe nas escolas de Gravataí músicas e coreografias com suposta apologia ao crime e sexo; As leis Anti-Oruam

Hiago Pacheco, autor da lei, foi eleito para o primeiro mandato como vereador

O vereador Hiago Pacheco (PP) apresentou projeto para proibir nas escolas de Gravataí a “execução de músicas e videoclipes com letras e de coreografias que façam apologia ao crime, ao uso de drogas ou que contenham conteúdos verbais e não-verbais de caráter sexual e erótico”. Os universitários, sertanejos ou não, restariam liberados: a legislação não inclui instituições de ensino superior.

Antes da análise vamos às informações.

É um Control C + Control V de legislação sancionada em Santa Catarina pelo governador Jorginho Mello (PL) e que está ganhando assembleias e câmaras de vereadores do país, com algumas variáveis, como a ‘Lei Anti-Oruam’, que proíbe contratações por prefeituras e governos estaduais de artistas como o filho do traficante Marcinho VP, que no Lollapalooza 2024 apareceu vestido com uma camisa que pedia liberdade para o seu pai.

Na justificativa, Hiago usa praticamente as mesmas palavras ditas pelo governador catarinense em vídeo no Instagram: “Escola é lugar de aprender o que é certo, de se preparar para o futuro, conquistar um bom emprego, formar valores para toda a vida. Estamos protegendo nossos estudantes, formando cidadãos responsáveis e construindo uma sociedade mais segura. Juntos, escolas e famílias, vamos garantir uma educação de qualidade, livre de influências negativas”.

Conforme o PL 6/2025, ficam proibidas “letras e coreografias que incentivem ou promovam a criminalidade e a prática de atos ilícitos”; “letras e coreografias que façam apologia ou incentivem o uso de drogas ilícitas” e “letras e coreografias, bem como qualquer conteúdo verbal ou não-verbal de caráter sexual ou erótico”.

Segundo o projeto, os coordenadores, diretores e professores responsáveis pelas unidades de ensino que permitirem o descumprimento da legislação, por ação ou omissão, ficam sujeitos a procedimento administrativo disciplinar, que pode levar até a exoneração do serviço público, e a multas entre um e 12 salários mínimos. O mesmo vale para escolas privadas, com multas aos estabelecimentos e até demissão de funcionários.

Conforme a proposição, o gestor da unidade escolar será responsável por assegurar o cumprimento da lei.

“O descumprimento acarretará a interrupção imediata do evento onde o material infrator esteja sendo exibido”, diz o projeto, que estabelece que “qualquer pessoa que presenciar a violação” da legislação e “omissão da gestão escolar” poderá realizar denúncia aos órgãos competentes.

A proposta prevê que os valores arrecadados com as multas sejam destinados integralmente ao Fundo Municipal do Direito da Criança e do Adolescente de Gravataí.

Analiso.

Grita a inconstitucionalidade do projeto. Se não for arquivado nas comissões permanentes da Câmara e impedido de ir à votação, será por decisão ideológica, não técnica.

A Constituição Federal estabelece que os municípios possuem autonomia para legislar sobre assuntos de interesse local (Art. 30, I, CF). No entanto, a educação é uma competência concorrente entre União, estados e municípios (Art. 23, V, CF). Não pode o parlamentar legislar sobre escolas municipais, estaduais, institutos federais e – a principal aberração jurídica – instituições privadas; o projeto chega a prever a interferência do poder público na demissão de funcionários de escolas particulares.

Entendo há, ainda, dois debates fundamentais a se fazer:

1.É o Ministério da Educação (MEC) o responsável pela elaboração da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que estabelece os conteúdos essenciais que todos os alunos devem aprender. As escolas criam seus currículos com base nisso e em seus projetos pedagógicos. Cabe lei municipal proibitiva?

2. Não viola o projeto princípios como a liberdade de expressão (Art. 5º, IX, CF) ou a livre manifestação artística (Art. 5º, IX, CF)?

Sobre o mérito, é daquelas propostas moralistas que mais bagunçam do que ajudam a educação.

Primeiro, transforma diretores de escola em censores, em policiais da cultura e pensamento – além de alvos.

Pior: empodera qualquer maluco a chamar a polícia para suspender uma atividade escolar, caso olhe por trás dos gradis e considere alguma manifestação inadequada.

Salvo melhor juízo, cabe uma analogia com projetos e leis municipais e estaduais apresentados sob alcunha de “Escola sem Partido”. Famosos em 2014, renderam cliques no Grande Tribunal das Redes Sociais, e votos, mas foram declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

A Corte apontou violação a princípios constitucionais como liberdade de aprender e ensinar, pluralismo de ideias e concepções pedagógicas, valorização dos profissionais da educação e laicidade do Estado. 

O STF também considerou que o Escola sem Partido era antagônico à promoção da tolerância. 

Saiamos do mundo virtual para o real: quais seriam os critérios para classificar uma intervenção artística como erótica ou apologia ao crime dentro da escola? Seria bom o vereador levar à tribuna da Câmara exemplos que considera enquadráveis à lei; locais, de preferência.

Minhas referências são só velharias, mas vamos lá.

Tornaremos ilegal uma turma trabalhar um  conteúdo com “Homem na Estrada”, ou qualquer outra das obras primas dos Racionais que descrevem mazelas das periferias?

Um mano meu tava ganhando um dinheiro

Tinha comprado um carro, até Rolex tinha

Foi fuzilado a queima roupa no colégio

Abastecendo a playboyzada de farinha

Ficou famoso, virou notícia

Rendeu dinheiro aos jornais, ham

Cartaz à policia

Vinte anos de idade, alcançou os primeiros lugares

Superstar do notícias popular

Certamente não seria a solução tratar dos problemas sociais do Rincão da Madalena ao som da ópera Lohengrin, de Wagner, o preferido de Hitler.

Proibiria-se o uso de “Acorda, amor”, de Chico Buarque, denunciando o ‘guarda da esquina’ que vinha buscar os ‘desaparecidos’ da ditadura, para trabalhar o medo que muita gente pobre tem da polícia?

Eu tive um pesadelo agora

Sonhei que tinha gente lá fora

Batendo no portão, que aflição

Era a dura, numa muito escura viatura

Minha nossa santa criatura

Chame, chame, chame lá

Chame, chame o ladrão, chame o ladrão

Se eu demorar uns meses

Convém, às vezes, você sofrer

Mas depois de um ano eu não vindo

Ponha a roupa de domingo

E pode me esquecer

O Senhor dos Anéis, de J.R.R. Tolkien, um dos livros mais vendidos do mundo e um clássico da fantasia lido por crianças e adolescentes, também seria censurado? Há, na obra, dinâmicas sexuais entre os personagens.

Imagino que, pelo projeto do vereador, o que chamam de ‘sertanejo universitário’, seria banido das escolas, tantas as bebedeiras narradas.

Sim, porque a venda de bebidas alcoólicas a menores de 18 anos é proibida no Brasil. A lei nº 13.106/2015 prevê pena de 2 a 4 anos de prisão e multa. 

Restariam professores impedidos de usar um funk trap, como do filho do cara do Comando Vermelho ou outros ouvido por adolescentes, para tratar sobre sexo e eventuais abusos cometido nas próprias letras das músicas?

Ah, mas não pode colocar na escola um homem pelado como naquela exposição em São Paulo, alguém pode argumentar. Não pode mesmo. Mas já é assim hoje. A instalação Bichos, polêmica em 2017, ocorria no Museu de São Paulo, em ambiente restrito e somente com acesso de adolescentes acompanhados pelos pais.

Ao fim, o vereador pode ganhar curtidas nas redes sociais, inclusive de gente que aplaudia ou era aplaudido dançando na boquinha da garrafa pela família que assistia à banheira do Gugu, mas a lógica antevê que seu projeto mais vai atrapalhar do que ajudar no ambiente escolar.

Que o digam os professores, já transformados em mães e pais por muitas famílias que terceirizam a responsabilidade pelos filhos. Seriam, com a lei, também caçadores de bruxas, ou as bruxas da vez, censores principalmente da liberdade de expressão da cultura periférica, ou culpados por permitir uma suposta ‘arte degenerada’ – para usar uma referência de um passado trevoso.

“Nois canta o que nois vive”, disse o tal Oruam, em sua defesa.

Goste-se ou não, são os fatos, aqueles chatos que atrapalham argumentos.

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