RAFAEL MARTINELLI

Um ciclone colonial se forma ao sul do Brasil

Imagem de satélite da Nasa mostra Porto Alegre inundada no dia 9

Associo-me ao artigo de Bruno Correia de Oliveira, biólogo, professor de Biologia na Educação Básica e doutorando no PPG em Educação em Ciências, e de Tatiana Souza de Camargo, bióloga, professora da Faculdade de Educação e Coordenadora do Programa de PPG em Educação em Ciências, publicado no Jornal da Universidade, da Ufrgs, que traça uma análise da situação de Porto Alegre e propõem uma nova perspectiva para a questão.

Sigamos no texto.

O autor Malcom Ferdinand, no livro Ecologia Decolonial, argumenta que a dupla fratura da modernidade, que é colonial e ambiental, abala a maneira como a crise ecológica é pensada e as suas traduções políticas. Ainda, o pesquisador explora o conceito de Plantationoceno, como uma crítica ao termo Antropoceno, ao destacar que a estrutura de plantações coloniais e a exploração intensiva dos recursos naturais e humanos são os principais motores das mudanças ambientais globais. Essa estrutura de exploração continua a influenciar as práticas modernas, promovendo injustiças espaciais e relações de poder desiguais.

Diante da tempestade ecológica que expõe os danos e problemas associados a determinadas maneiras de habitar a Terra próprias da modernidade, esses conceitos oferecem um quadro crítico para entender como as dinâmicas históricas de exploração e dominação continuam a moldar a resposta a desastres e a gestão urbana contemporânea. Essas ações ocorrem através das chamadas políticas do ciclone colonial, um conjunto de estratégias que transformam as catástrofes, em parte naturais, nos eventos lucrativos que reforçam os fundamentos coloniais do mundo.

São esses os conceitos que parecem dar contorno aos eventos anteriores, contemporâneos e possivelmente futuros ao desastre ambiental que assolou o estado mais ao sul do Brasil neste triste maio do ano de 2024. O mês foi marcado por um volume anormal de chuvas, três vezes maior que a média histórica do período, fazendo com o que o nível do Guaíba atingisse mais de 5m, o maior de sua história.

Após as enchentes devastadoras de 1941 e 1967 que ocorreram em Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, foi instalado na década de 1970 um sistema de contenção para proteger a cidade das inundações dos rios Guaíba e Gravataí. Contudo, a falta de manutenção e investimentos nas décadas subsequentes resultou na degradação do sistema, evidenciando uma indiferença sistemática por parte das autoridades.

Inicialmente projetado para suportar a elevação das águas até 6m, o sistema começou a falhar com a cota de 4,5m. Além das comportas, apenas 4 das 23 unidades de bombeamento projetadas para drenar a água para fora da área protegida funcionaram. Essa combinação de falhas levou ao colapso durante as chuvas de maio, com a água driblando o sistema de três maneiras: vazamento nas comportas, falhas nas bombas e extravasamento dos diques.

Esse primeiro momento do ciclone colonial é conhecido como a “rota da indiferença discriminatória”, negligência deliberada e a falta de ação por parte das autoridades em relação às necessidades das populações marginalizadas antes da chegada do furacão, manifestada através da ausência de investimentos adequados em infraestrutura e medidas de proteção.

Em um segundo momento, o ciclone colonial expõe o calvário, o extremo sofrimento, perda e desespero vividos pelas pessoas. A cidade de Porto Alegre depara-se com a destruição de moradias e o deslocamento de milhares, exacerbados pela falta de uma resposta adequada e de recursos imediatos para enfrentar a catástrofe.

A enchente que recentemente assolou a cidade afetou diretamente 46 dos 96 bairros, impactando cerca de 157 mil pessoas e 39 mil edificações. Aproximadamente 14 mil pessoas estão abrigadas em locais instalados pela Defesa Civil. A infraestrutura urbana também sofreu danos significativos, com cerca de 46 mil empresas afetadas, 186 praças, 12 parques e 1.081 quilômetros de vias públicas. Este cenário de destruição ilustra o calvário das comunidades afetadas, enfrentando desafios extremos em suas vidas diárias.

A catástrofe foi prevista há muito tempo, desde as enchentes que ocorreram no estado e atingiram também a capital gaúcha no ano de 2023 e no início de 2024, até o alerta emitido em abril pelo Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres (Cemaden) e pelo MetSul Meteorologia, sobre um cenário de grave risco hidrológico e meteorológico no Rio Grande do Sul com chuva excessiva a extrema e uma muito alta probabilidade de cheias de rios e enchentes.

A resposta inadequada e lenta das autoridades frente à situação reflete uma indiferença sustentada, o terceiro momento do ciclone colonial, em que a falta de manutenção e investimentos adequados resultou em uma infraestrutura inadequada para proteger a população, evidenciando a perpetuação de desigualdades estruturais, tendo em vista que existe uma correlação entre as áreas alagadas e a renda das populações afetadas.

Segundo o Núcleo de Porto Alegre do Observatório das Metrópoles, a cidade de Porto Alegre tem áreas alagadas principalmente nas regiões com renda média de até três salários mínimos.  As populações mais pobres estão mais expostas a riscos ambientais, possivelmente devido à localização de suas moradias em áreas mais vulneráveis e menos protegidas por infraestrutura adequada. A rota da indiferença discriminatória, portanto, se manifesta através da negligência contínua que deixou a população da cidade sujeita às inundações, demonstrando uma falta de compromisso com a segurança e bem-estar das comunidades mais vulneráveis.

Todo esse cenário desemboca em um verdadeiro “caos infernal”, o quarto momento. Esse conceito encapsula o estado de desordem e violência que se instaura diante do ciclone colonial. Desde 2 de maio, a Polícia Civil e a Brigada Militar realizaram 78 prisões, a maioria por assaltos e saques. A violência nos abrigos, com 30 prisões ocorrendo nesses locais, e crimes sexuais resultaram na criação de espaços exclusivos para mulheres e crianças, demonstrando as condições insalubres e superlotação que caracterizam esses abrigos improvisados.

A escassez de suprimentos básicos, como alimentos e água, aliada à falta de energia, exacerba a desordem. Moradores enfrentam prateleiras vazias em mercados e falta de itens essenciais, refletindo o colapso do abastecimento. A paralisação de cinco estações de tratamento de água deixou 85% da população sem acesso a água potável, obrigando muitos a abandonar suas casas, evidenciando a superlotação dos abrigos e a debandada populacional. Esse caos é ampliado pela falta de coordenação e recursos, dependência de voluntários e a ausência de um plano eficaz para lidar com desastres dessa magnitude.

O ciclone colonial se resolve/consolida em uma redistribuição discriminatória, com recursos e oportunidades reorganizados de forma que aprofundam as desigualdades sociais e econômicas. No contexto de Porto Alegre, a contratação da Alvarez & Marsal para gerir a recuperação da cidade sem licitação, sob o decreto de calamidade pública, exemplifica esse conceito.

Essa abordagem permite que a empresa implemente mudanças significativas na gestão da cidade, potencialmente favorecendo soluções privatizadas e de mercado em detrimento de investimentos públicos diretos. O histórico da Alvarez & Marsal é particularmente ilustrativo nesse sentido. A empresa já atuou na recuperação de New Orleans após o furacão Katrina, onde suas recomendações incluíram a privatização do sistema de ensino público e a demissão massiva de funcionários. Essas ações, documentadas por Kenneth J. Saltman, no livro “Capitalizando os desastres: tomar e destruir escolas públicas”, são um exemplo claro de capitalismo de desastre, no qual empresas privadas aproveitam crises para introduzir reformas neoliberais que aumentam seu lucro, enquanto diminuem o papel do Estado na provisão de serviços públicos.

O conceito de justiça climática evolui do paradigma da Justiça Ambiental, reconhecendo que os impactos das mudanças climáticas afetam de maneira desigual diferentes grupos sociais. A persistente indiferença das autoridades quanto à manutenção das infraestruturas de contenção de enchentes evidencia como as políticas ambientais e urbanas podem exacerbar desigualdades raciais e socioeconômicas. A situação em Porto Alegre, onde a resposta insuficiente à emergência climática intensificou a crise humanitária, exemplifica claramente a injustiça ambiental. As comunidades mais afetadas são frequentemente aquelas já sujeitas à discriminação socioeconômica e racial, sofrendo com a ausência de políticas públicas eficazes e equitativas.

Olhar a enchente da cidade de Porto Alegre sob a ótica do ciclone colonial nos permite entender como as práticas coloniais de exploração e dominação não são apenas questões históricas, mas continuam a influenciar e moldar as crises ambientais e sociais contemporâneas.

Ao trazer à tona a relação indissociável entre colonialismo e ecologia, Ferdinand nos desafia a repensar as soluções para crises ambientais de maneira que também abordem as injustiças sociais e históricas. Aqui, emerge a necessidade de apropriação do conceito de justiça climática – um desdobramento do paradigma da justiça ambiental -, trazendo a percepção de que os impactos das mudanças climáticas atingem de forma e intensidade diferentes grupos sociais distintos.

A falha em proteger adequadamente as áreas mais vulneráveis da capital do RS reflete essa crítica, mostrando que a simples existência de leis não é suficiente se não forem acompanhadas por uma implementação justa e equitativa. Além disso, a resposta da administração municipal à crise das enchentes, conforme descrito anteriormente, ilustra a indiferença sustentada. Suas declarações sobre a falta de recursos e o crescimento desordenado das cidades ignoram as raízes estruturais das desigualdades e a necessidade de políticas públicas que abordem diretamente essas questões.

A dependência de soluções temporárias e emergenciais, em vez de um planejamento urbano adequado e contínuo, perpetua a vulnerabilidade das populações afetadas. Isso revela como, apesar de eventos de injustiça climática já serem perceptíveis no Brasil, o discurso da justiça climática ainda não foi incorporado de forma consistente no país.

Diante disso tudo, que caminho a cidade de Porto Alegre pretende seguir? Que saída construíremos diante dessa tempestade? Do ciclone colonial se fará um pretexto para reforçar as dominações e as opressões coloniais ou uma oportunidade para se voltar às origens dessa crise e encontrar possibilidades de olhar para a crise climática com os olhos daqueles que são mais vulneráveis a ela?

Infelizmente, a apatia dos dirigentes estatais e o investimento em uma guerra ideológica digital baseada em fatos imaginários, tão simetricamente opostos às necessidades materiais daqueles mais afetados pela tragédia, parecem servir de alarme de que o mais nefasto ainda está por vir.

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