MOISÉS MENDES

Um dia, seremos apenas uma lacração

Quem não se preparar para qualquer conversa pensando no corte, será condenado ao fracasso. O corte frequenta debates políticos, CPIs, palanques de todos os tipos, conversas na internet e qualquer ambiente em que houver troca de ideias ou apenas ataques.

Há gente que só tem relevância por causa dos cortes. Uma pessoa não é nada hoje sem um bom corte. Pablo Marçal, por exemplo, o coach que quase matou mais de 30 pessoas num temporal em São Paulo, é o próprio corte. Ele é o que aparece no corte, sem o temporal.

O corte é a edição de um trecho de uma fala ou de um momento filmado. Lacrar é preciso. Pode ser favorável ao autor do corte como também pode ser contra alguém. Pode durar de cinco a 20 segundos. Mas o bom corte raramente tem mais do que um minuto.

O corte tem a síntese da mensagem a ser passada. Por exemplo, um ataque de um político a outro: “Você nunca trabalhou, seu babaca”. E o outro responde: “Mas eu nunca estive preso como você, seu falastrão”.

Pronto, dois cortes foram produzidos, para os dois lados, com a síntese que o mundo do Tik Tok pede: parece dizer muito e não diz nada, mas a lacração foi produzida. E em vídeo. O bolsonarismo adora cortes. Trump é o propagador de cortes. Milei cresceu porque usa a síntese dos cortes.

Estadão, que promoveu um debate com candidatos a prefeito de São Paulo, percebeu pela primeira vez um fato que pode virar tendência: perguntas feita por um político a um oponente nem sempre foram respondidas. Para evitar o corte que o outro faria da fala. Estão se defendendo dos cortes alheios.

Jornalistas, políticos, jogadores de futebol, professores, todos fazem cortes que são disseminados em vídeos nas redes sociais. O corte é, dependendo do resultado, a tal frase fora do contexto. Ou é o núcleo do contexto, ou não é nada, mas tem a pretensão de ser.

O corte é o fenômeno do rebaixamento dos debates e das ideias, produzido a partir de um recurso clássico do jornalismo: o destaque para algo que sintetiza uma fala, para facilitar a vida de quem ouve, vê ou lê algo seja facilitada. O corte deveria condensar uma ideia ou um fato.

Distorcido, o corte é a arma da mediocridade. Consagrou-se como o recurso pensado com antecedência para que resulte na lacração. O corte é uma arma na mão do fascismo que usa resumos para disseminar gritos de guerra, ódio, mentira e difamação.

A extrema direita brasileira descobriu que as CPIs são ambientes para cortes. Discursos na tribuna da Câmara e do Senado são feitos para produzir cortes. Brigas, enfrentamos nos corredores do Congresso, provocações.

Dois exemplos de falas para cortes, nesse debate do Estadão. O primeiro, de Boulos sobre Marçal: “Às vezes eu fico em dúvida se você é só mau caráter ou é psicopata, você vem aqui para mentir, para lacrar para a rede social”.

E agora o corte de Marçal sobre Boulos:  “Você é um rebaixado, agora quer bancar o santo, converteu, agora é assembliano, não usa drogas. Qual a música que você vai pedir no Fantástico pelas três vezes que você foi preso?”.

Boulos apresenta-se como professor, e Marçal como empreendedor que prosperou pela meritrocracia. Em tempos de lacração, o que vale mais? Um professor ou um influencer milionário?

Pablo Marçal pode ser apenas um corte, e nada além disso, e terá cumprido sua missão. Marçal é o resumo do corte, o caso exemplar do sujeito que não precisa dizer nada em encadeamento, mas apenas frases soltas. Desde que rendam cortes.

A Bíblia também expõe esse esforço pela procura da síntese. Os versículos são cortes com frases curtas e numeradas. Mas Moisés e Jesus não tinham o vídeo. O vídeo é o instrumento do corte no século 21 da hegemonia da imagem.

Cada pessoa será o que é, e não o que pensa ser, dependendo dos cortes. No futuro, seremos apenas uma síntese do que também os outros acham que devemos ser. Seremos só um sujeito com poucos predicados em uma frase. Apenas um corte, mas sempre em vídeo.

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