Ontem tive que dar o braço a torcer a um militar. O encontro tinha data e local marcados mas certeza que ele estaria lá eu não tinha. Fui de carro, sei lá como ele iria, se de blindado ou tanque. Sei, tanque não é comum sair às ruas, e quando sai até o regime pode mudar. Mas eu estava tranquilo, ele podia estar lá mas não ia querer nada comigo, um civil qualquer. A chance dele e eu ficarmos frente a frente era grande: ele e eu obedecíamos ordens. As dele, mais severas, próprias da disciplina férrea a que ele seus companheiros de farda estão acostumados a cumprir. As minhas, não tão inflexíveis assim, mas se não cumpro essa ordem de agora posso me ferrar, talvez morrer. Ao nos aproximar do local, logo avistamos alguns militares. Mas o encontro decisivo não era ali na entrada. Certamente ele estaria entrincheirado no interior do prédio imenso. Que não era um quartel. Desde a última vez que estive num quartel, quando fui dispensado do serviço militar por processo de arrimo de família, nunca mais pisei em qualquer ambiente desses. E depois, com o convívio com a ditadura, reforcei meus anticorpos para não me deixar contaminar com mandos e desmandos deles. Agora estava ali, sem receio mas com pé atrás. Passei por mais outros militares, agrupados aqui e ali. Fui barrado e me pediram documento, olhando firme na minha cara. Sem temor, retribuí o olhar com firmeza igual. Adiante, disse ele. Segue, Fraga, disse eu pra mim mesmo. Em seguida notei que outros civis também tinham atendido à mesma ordem. Como podíamos ser muitos invasores, eles também não eram poucos. Nós e nossos tênis, eles e seus coturnos. Nós e nossas bermudas, eles e suas fardas. Nós e nossos acenos, eles e suas continências. Nós e nossos passeios, eles e suas marchas. Mais alguns trechos delimitados e eu saberia com quem teria o embate. Na grande área, as viaturas deles estacionadas e as nossas num zigue-zague obediente. Ele e seus companheiros de tropa sabem como conduzir a gente, comandos através dos olhos, da boca, até das mãos. Haveria arma? Não haveria? Seria usada comigo? Devagar, Fraga, sem gestos bruscos, sem olhares provocativos. Segui mais um pouco e outro ajuntamento de militares. Um deles ordenou que apresentasse documento. Retruquei que já havia apresentado antes e de novo um olhar duro foi disparado. Um obus direto da retina dele pra minha. Sorte que a mira dele não era tão boa, passou de raspão. Fui liberado e segui em frente. Enquanto seguia, pensava na rejeição que tenho com militares. Sou um pacifista, eles não. Sou avesso a ordens, eles não. Não gosto de conflito, eles adoram. Eles já torturaram e deram sumiço em muita gente entre 64 e 84; eu, por conta própria, vez em quando apenas sumia de casa por uns tempos. Eles agora estão aos milhares no governo, engessando e dando despesa à democracia, até ministros incompetentes são; eu continuo no meu desgoverno pessoal. Eles têm orgulho do seu estúpido chefe maior; eu sou um dos milhões e milhões que o detestam e querem o impiti dele. Foi aí que esse turbilhão sem sentido parou junto à camuflada figura dele em posição de sentido. Ia ser com ele a batalha, então. Meu corpo se retesou, apreensivo. Eu estava em desvantagem: ele em pé, eu sentado. Veio mais para perto, se apresentou e disse qual era a missão dele. Mesmo com todo amor à pele, não pude recuar. Logo estava apontando algo pontudo para mim, a menor de todas as baionetas que um militar poderia empunhar. Ia cravar aquilo em mim e eu tive que dar permissão para o ataque dele. Mandou que eu afastasse a roupa do local onde iria me golpear, queria ver minha carne atingida. Felizmente foi tudo muito rápido, e não houve nem mortos nem feridos nesse entrechoque. Satisfeito em ter cumprido sua missão contra um civil, me dispensou e apontou o caminho para me afastar dele. Com a marca da baionetinha no corpo, saí o mais rápido dali, pra minha vidinha sossegada e distante do verde oliva. Foi assim, no dia da minha 2ª dose da vacina, a única vez que dei o braço a torcer a um milico.