Rubem Fonseca morreu nesta quarta aos 94 anos, no Rio. O escritor que renovou a literatura brasileira no século 20 sofreu um infarto e foi levado ao Hospital Samaritano, mas não resistiu. Com estilo direto e seco, autor lançou livros clássicos, como os volumes de contos 'Lucia McCartney' e 'Feliz ano novo', além dos romances 'O caso Morel' e 'Agosto'. O Seguinte: reproduz o conto 'Um homem de princípios', do livro 'Calibre 22'.
Não gosto de matar barata, nem piolho, nem seres humanos. Não mato por ódio, ciúme, inveja, medo, casos em que o matador é também vítima desse sentimento, ou, se preferem, dessa percepção, ou noção, ou senso, ou consciência. Não conheço as pessoas que eu empacoto. Nada sinto por elas, mas tenho meus princípios.
O Despachante, que eu nunca via pessoalmente — não sabia se ele era branco ou preto, alto ou baixo, magro ou gordo —, enviou para mim do celular descartável uma foto com o nome e o endereço do freguês. O Despachante depositaria na minha conta metade do pagamento adiantado e a outra metade depois que eu fizesse o serviço.
O freguês, um sujeito gordo, calvo, na faixa dos quarenta anos, morava na Zona Sul, num prédio na quadra da praia, e todos os dias saía de manhã para tomar um cafezinho e comer pão de queijo, essa coisa engordativa, numa loja de conveniência (acho esse nome idiota) que ficava perto da praça que tem o nome de um poeta e prosador português do século XIX. Sei que as pessoas, em sua maioria, são ignorantes e não sabem de qual poeta estou falando. Isso é bom.
O prédio tinha porteiro dia e noite. Eles se revezavam de oito em oito horas. Ficavam atrás de vidros escuros, as pessoas da rua não os viam, mas eles as viam nitidamente. Na porta de entrada da grade que cercava o edifício havia uma pequena caixa protegida da chuva que recebia e transmitia a voz, e um pino de campainha para o visitante apertar. Se fosse um morador, o porteiro acionava um comando eletrônico e abria a porta. Mesmo sendo um parente do morador, o porteiro só o deixava entrar se recebesse autorização expressa antes. No caso de um desconhecido, o porteiro perguntava pelo alto-falante o nome e o seu objetivo. Se o desconhecido dissesse um nome que não constava da lista de todos os moradores que o porteiro tinha à sua frente, ele respondia secamente, “não mora aqui”. Esqueci de dizer que à noite uma luz se acendia com o foco dirigido para a porta de entrada.
Resumindo: eu tinha que chumbar o freguês em outro local que não fosse a sua casa.
Passei a ir bem cedo à loja de conveniência esperar o freguês. Ele chegava impreterivelmente às dez da manhã, ia direto para o balcão onde ficava a máquina de fazer café e o forno que assava o pão de queijo, fazia o seu pedido e sentava numa mesa. Sempre a mesma mesa. A garçonete trazia o café, o pacotinho de açúcar e o de chocolate e quatro pães de queijo. Quatro! Barrigudo daquele jeito, ele certamente comia escondido da mulher.
Sempre levo comigo a minha ferramenta, uma Beretta M9 com carregador de quinze balas, num coldre especial colocado abaixo da axila, sob o blusão. A empunhadura da Beretta ficava para baixo. Dentro da loja eu não podia chumbar o freguês. Meu desejo era que ele fosse para a praça do poeta, mas o freguês voltava para casa. A mulher desses caras gordos sempre manda neles. Aliás, todas as mulheres mandam no marido. Minha mãe não mandava no meu pai porque ela morreu no parto. Eu matei minha mãe? Meu pai também morreu cedo. Isso tudo eu conto algum dia.
Na terceira manhã em que eu observava dissimuladamente o gordo comer os pães de queijo no posto, ele se levantou para ir à caixa pagar a despesa, mas, ao passar perto da minha mesa, puxou uma cadeira e sentou-se dizendo “bom dia”.
Já disse que sou puta velha. Respondi calmamente: “Bom dia.”
“Meu nome é Xavier”, ele disse, “com xis”. “O meu é José. Muito prazer.”
A voz do freguês era tranquila, um pouco espessa.
“Vou ser breve. Percebi que o senhor nestes três dias aqui no posto me observa dissimuladamente. Isso significa que tem um objetivo, que eu suponho qual seja. Sei que o senhor é um… um matador profissional.”
Meneei a cabeça.
“Tenho uma proposta a lhe fazer”, ele disse. “Sim.”
“Posso fazer a proposta?” “Sim.”
“Quero que você mate a minha mulher. Pago o dobro, o triplo do que você iria receber se me matasse.”
Ele agora já não me tratava mais de senhor, acreditava que como eu seria seu empregado, ou servidor, não precisava mais ter deferência, consideração por mim.
“Quanto e onde?”, perguntei.
Ele tirou um maço de notas de cem dólares do bolso. “Me paga depois. Onde será feito o serviço?”
“Na minha casa. Vamos juntos, eu toco a campainha, ela espia pelo olho mágico, vê que sou eu e abre a porta. Ela não abre a porta para ninguém. O senhor mata a minha mulher. Sua arma tem silenciador?”
“Evidentemente”, respondi.
“Nós entramos, abrimos as gavetas e mexemos nos armários, para fingir que foi um assalto.”
“Essa ideia é muito boa”, eu disse.
“Depois eu te pago e vamos embora. Eu vou ao supermercado fazer umas compras, e você sai de novo escondido no carro. Quando eu voltar, vejo a minha mulher morta, chamo a polícia…”
“Perfeito. Quando?”
“Agora”, ele respondeu. “Vamos entrar pela garagem, o senhor fica escondido no banco de trás. O carro está aqui no posto. Já disse que vou ao supermercado e sempre volto carregado de compras, inutilidades que a megera me obriga a comprar.”
Megera. O cara não gostava mesmo da mulher.
Entramos pela garagem, subimos, saltamos no hall do andar dele.
Não sei se já disse, mas aquele prédio tinha apenas um apartamento por andar. Tirei a minha Beretta do coldre.
“Um momento, não toca ainda a campainha”, eu disse, “espera eu colocar o silenciador”.
Coloquei o silenciador, destravei a Beretta e dei um tiro na cabeça do Xavier. Eu sei o lugar na cabeça que apaga o freguês. Segurei-o para que não fizesse barulho ao cair.
Saí pela garagem, usando os óculos escuros do morto. Os vidros escuros não deixavam ver direito quem dirigia o BMW. Esses ricos só usam carros bacanas.
Deixei o carro perto do supermercado. Fui andando pela rua.
Eu tenho os meus princípios, já disse. Não mato mulher, criança e anão. E sou honesto.