Uma vereadora bolsonarista de Porto Alegre, que não vou citar o nome, porque assim ensinam os filmes sobre conjurações do mal, saudou a morte do Papa Francisco.
Gostaria lesse ela artigo do jornalista Reinaldo Azevedo, Mau tempo para morrer, Francisco! A voz ainda universal da Igreja Católica.
Compartilho abaixo.
James Bond foi para o sacrífico em “007 – Sem Tempo para Morrer” (2023). Os fãs da franquia ficaram abalados, mas nem tanto. Um outro assumirá as suas funções. O ator Daniel Craig já havia deixado claro ser hora de passar o bastão. Aquele “smoking” nunca mais! Que um jovem na casa dos 30 assuma o lugar. Se o agente sempre estará a serviço da Coroa e dos bons valores, convém indagar: e com a Igreja Católica, vai acontecer o quê? Ninguém sabe direito, mas se pode dizer que esse não era um tempo para morrer. Havia um ideal? Não. Mas o real colhe um mundo cheio de perigos.
A palavra “papa” não virou metáfora por acaso: “o maior especialista em sua área”, “o número um do debate” entre uma infinidade de outros ou ainda “a voz mais qualificada e inquestionável em determinada matéria”. Não há no mundo, com comando unitário — ainda que Donald Trump sonhe grande (alerta de ironia) — nada que se iguale à Igreja Católica em tamanho, influência, representação mundo afora, inserção na sociedade e mesmo influência política.
Estima-se que os cristãos no mundo somem 2,4 bilhões de pessoas, com 1,4 bilhão de católicos. Os islâmicos estão entre 1,8 bilhão e 1,9 bilhão, mas inexiste uma autoridade central. Não é raro que nos esqueçamos de que, à sombra da Igreja Católica, estão, por exemplo, as maiores redes de saúde, assistência social e educação do planeta. Quando se fala de uma Igreja Católica “decadente”, convém que se indague se não há na expressão certa nostalgia do autoritarismo. Convenham: a instituição soube se adaptar à democracia, à ciência — ensinada em suas universidades e laboratórios — e mesmo à diversidade, a despeito, em muitos casos, da manifesta intolerância da hierarquia em determinados temas, que, não obstante, não se traduz em práticas persecutórias nos cultos.
Sim, é fato, há correntes católicas que estão por aí, neste momento, a espalhar obscurantismos, mas os valores que emanam da Santa Sé contrariam a voragem de reacionarismo que engolfa o Ocidente e as democracias. Francisco, ainda que recuando às vezes para avançar, a depender do tema — o “Bispo de Roma” é, em muitos aspectos um monarca, mas não absolutista —, levou adiante a mensagem da inclusão e da salvação pela fé, sem a qual não pode haver cristianismo.
Em 2007, escrevi na “Veja” uma longa resenha de um livro então recém-lançado pelo professor americano Rodney Stark, hoje com tradução em português: “O Crescimento do Cristianismo – Um Sociólogo Reconsidera a História” (Ed. Paulinas). Escrevi então:
“Depois de Jesus, é Paulo que vem à luz como o homem mais importante do cristianismo, verdadeiro fundador da teologia cristã. Com um édito do imperador Constantino, em 313, a seita minoritária, nascida entre judeus da Galileia, tornava-se uma religião do Império Romano. Cessava perseguição ao cristianismo, e aquele foi um dos marcos de uma longa trajetória. Como se operou o milagre? O sociólogo americano Rodney Stark sustenta que uma das raízes da expansão cristã é a caridade, elevada por Paulo à condição de primeira virtude. E a outra são as mulheres.
No livro, o professor lembra que, por volta do ano 200, havia em Roma 131 homens para cada 100 mulheres e 140 para cada 100 na Itália, Ásia menor e África. O Infanticídio de meninas – por que meninas – e de meninos com deficiências era moralmente aceitável e praticado em todas as classes. Cristo e o cristianismo santificaram o corpo e fizeram-no bendito porque morada da alma, cuja imortalidade já havia sido declarada pelos gregos. Cristo inventou o ser humano intransitivo, que não depende de nenhuma condição ou qualidade para integrar a humanidade a irmandade universal. As mulheres, por razões até muito práticas, gostaram.”.
“Ah, quer dizer que não há horror na história da Igreja?” Há, sim. E muito. Mas supor que foi ele a causa da expansão do cristianismo, convenham, não parece uma sustentação muito inteligente. Stark nota, por exemplo, que, no casamento cristão, que é indissolúvel, as obrigações do marido não são menores do que as das mulheres. A unidade da família é garantida com a proibição do divórcio, do incesto, da infidelidade conjugal, da poligamia e do aborto — a principal causa, então, da morte de mulheres em idade fértil. Tais práticas ajudaram a formar a família, a propagar a fé e, vejam vocês!, a proteger as mulheres da morte e da sujeição. Quando Constantino assina o Édito de Milão, a religião dos 12 apóstolos já somava 6 milhões de pessoas.
Por que a morte do papa, o chefe da dita “decadente” Igreja Católica, se torna a notícia mais importante do mundo, em meio a tantos desatinos? Porque, parece, a instituição, sob o comando do Sumo Pontífice, guarda alguns arcanos do que boa parte do planeta entende por pacto civilizatório. Escrevi então naquela resenha sobre o livro de Stark:
“Se o cristianismo conferiu uma ética nova à cultura greco-romana, tomou dela emprestados alguns séculos de especulação filosófica. De sorte que se constituiu, no tempo, como a memória de dois humanismos, de duas visões totalizantes: a helênica, grega, e a dos Evangelhos. Querem ver? Apostamos nas virtudes do exame de consciência; estamos ocupados em controlar nossos impulsos para ser reconhecidos como pessoas a serviço do bem e da verdade; esforçamo-nos para demonstrar que preferimos ser colhidos pela injustiça a praticá-la; aspiramos a valores espirituais acima dos materiais e apreciamos tal qualidade dos outros; boa parte de nós acredita numa justiça divina que sucede à morte, e os que não chegam a tanto demonstram seguir um modelo perfeito ao menos na ideia. Somos, de fato, não só cristãos, mas também herdeiros involuntários do filósofo grego Platão. E onde essas ideias não se transformaram em leis, em códigos leigos, o poder se impõe pelo terror, pela ditadura, pela violência institucionalizada, pela morte e, frequentemente, assim se procede em nome de Deus. Não há humanismo leigo que tenha sido tão poderoso na história humana como três palavras que salvam: consciência, arrependimento e perdão.”
Mau tempo para morrer
Não estou aqui, obviamente, a negar as muitas iniquidades promovidas ao longo da história por hierarquias ou fanatismos católicos – ou, se quiserem, posso escrever: “hierarquias ou fanatismos religiosos” – de todas as religiões, pois. “E como teria sido ou seria um mundo sem elas?” Bem, não se pode contar essa história, apenas imaginá-la, como naquela música… A suposição de que a razão prática e os interesses objetivos matam menos do que é a fé uma bobagem demonstrável por números. Os grandes morticínios da história humana nada tiveram a ver com as disputas sobre a suposta vontade de Deus, ainda que fanáticos possam, eventualmente, atribuir à inspiração divina seus delírios homicidas.
Francisco representava, nestes dias brutos, uma voz que chamava a valores da cristandade que, em muitos aspectos, remetia à irmandade da fé, além dos condicionamentos de raça, nacionalidade ou classe social, daí que tenha criticado a perseguição aos imigrantes, a concentração de riqueza, a agressão ao meio ambiente, a intolerância com a diversidade. Francisco defendeu a ciência como emanação da caridade de Deus. E onde as duas se encontram: na ética. Eis aí o que parece, de verdade, um cristianismo de salvação.
Concluo
Consta que Stálin indagou quantas divisões militares tinha o papa quando lhe disseram que este estava descontente com algumas de suas atitudes. As divisões do líder religioso mais importante do mundo, no que respeita à ordem global, são hoje as morais e as éticas, inclusive para os que não creem.
A rigor, o Papa é o único líder, religioso ou não, cuja voz tem um alcance realmente universal. Para pregar a salvação ou para condescender com iniquidades.
Vai ser o quê?