Olhar as coisas com a ponderação que a passagem do tempo permite, torna possível a reavaliação de fatos, acontecimentos e personagens. Um dos personagens centrais da nossa política, que merece ser melhor reconsiderado é o presidente Fernando Henrique Cardoso, o criador do Brasil moderno – e não só devido ao Plano Real, que trouxe nossa economia de volta à realidade, mas por outros aspectos menos mencionados. Obviamente, reconhecer os méritos do governante FHC não é virar as costas para os escândalos de corrupção que jogam o PSDB na lama. Um levantamento recente mostra o PSDB como o terceiro partido mais corrupto, enquanto o seu rival, o PT é, apenas, o nono, com o agravante de que, ao contrário de membros de outros partidos, os tucanos conseguem escapar facilmente da justiça, mesmo quando as provas abundam – como nos mostra o caso recente envolvendo Aécio Neves. Assim, minha defesa não é do partido ao qual FHC pertence, mas do governante que ele foi.
FHC foi o legítimo criador da socialdemocracia brasileira, depois aprofundada por Lula, antes da retomada do desenvolvimentismo após a crise de 2009. O desenvolvimentismo se caracteriza, especialmente, pela intervenção do Estado na economia produtiva – dando generosos subsídios para empresas amigas (no caso recente, Odebrecht, OAS, JBS, Grupo X, etc.), ao mesmo tempo em que coloca em segundo plano o aspecto social, esfera na qual os países desenvolvidos têm focado a atuação do governo. Lula manteve, em linhas gerais, essas políticas de FHC, até 2009, quando estourou a Crise Mundial do fim da década passada. Em uma crise daquele tamanho, políticas intervencionistas do tipo desenvolvimentista até podem ser úteis, mas elas foram mantidas e aprofundadas mesmo quando a crise já havia passado. Esse desenvolvimentismo de Lula após 2009, aprofundado por Dilma, mais uma vez, nos levou a uma nova década perdida (assim como o desenvolvimentismo da Ditadura Militar nos levou aos terríveis anos 80).
A socialdemocracia de FHC e de Lula, até 2009, por outro lado, nos levou a um dos períodos de crescimento econômico e progresso social harmonioso nunca antes vivenciado pelo país. FHC implantou e consolidou grande parte da progressivíssima Constituição de 88 (a que, não custa lembrar, o PT votou contra). Ao mesmo tempo em que investe forte no social, esse modelo, procura seguir uma política econômica menos intervencionista e mais “ortodoxa”, como dizem os economistas, tendo por base a austeridade fiscal. Nos anos 1990, nós tivemos:
1) a consolidação do SUS. Pela primeira vez, os miseráveis brasileiros tiveram acesso à saúde. Lembrem que, antes, apenas os empregados CLT tinham direito a utilizar os hospitais públicos, através do extingo INAMPS.
2) criação do FUNDEF, que permitiu universalizar a educação fundamental. Pela primeira vez, municípios pobres tinham acesso a recursos para manter suas escolas. Nos anos 90, 4% do PIB ia para educação pública. Nos anos dourados do desenvolvimentismo dos anos 50 a 70, 1,5%.
3) implantação da aposentadoria rural. Pela primeira vez, os milhões de trabalhadores rurais brasileiros tiveram direito a um fim de vida menos sofrido. Também se criou o LOAS, que garantiu um salário mínimo mensal para idosos pobres, mesmo que nunca tenham contribuído para a previdência, e, também, para pessoas com deficiência.
4) pela primeira vez, foram criados programas de transferência de renda, como o Bolsa-Escola. O exitoso e meritório Bolsa Família foi uma expansão e unificação desses programas criados por FHC. Esses programas permitiram ao Brasil ter, hoje, uma das menores taxas de insegurança alimentar fora dos países desenvolvidos.
Se isso não é socialdemocracia em relação ao descaso dos governos desenvolvimentistas aos miseráveis, que então formavam a maior parte da população brasileira, então, eu não sei o que é. Não fosse a crise política, econômica e moral que nos assola atualmente e a qual o desenvolvimentismo nos trouxe, é possível que o Brasil, hoje, estivesse se aproximando, finalmente, do Primeiro Mundo. Isso se tivéssemos nos mantido no virtuoso caminho trilhado entre 1994 e 2009.