jeane bordignon

Uma história de dentes

A foto acima prova que eu fui uma garotinha dentuça. Podia até fazer cosplay da Mônica, porque também era baixinha e gorducha. Mas essas duas características não me incomodavam tanto na pré-adolescência. Os dentões é que estavam se tornando um problema a ponto de eu não querer mais ser fotografada. São raros os cliques dessa época. Nem adiantava fechar a boca, ficavam as duas pontas brancas para fora, eu parecia um roedor.

Isso foi no começo dos anos 90. Aparelho dentário era luxo nessa época, algo muito caro para as condições da minha mãe professora do Estado e meu pai pedreiro autônomo. Para minha sorte, uma colega da mãe avisou que o Exército da Salvação tinha uma clínica popular que colocava aparelho móvel num valor mais acessível. Não me importava que o aparelho fosse móvel, que fosse mais simples, eu queria um sorriso “normal”.

E assim, a mãe e eu pegamos o “Poa-Ponte-Anchieta” rumo à Avenida São Pedro pela primeira vez, fazendo o caminho que se tornaria rotina pelos próximos anos. A primeira consulta me trouxe a alegria de saber que sim, o aparelho poderia botar meus dentões no lugar! Então fui fazer a famosa “pasta” com fotos da minha arcada bem exposta e o raio-x panorâmico. Esse raio-x trouxe uma imagem diferente da esperada, e uma expressão que entraria na minha vida para sempre: agenesia dentária.

Agenesia é a ausência de um órgão ou parte do corpo, devido a uma falha genética. No meu caso, devido a um gene herdado do meu pai, não tenho o segundo pré-molar nem o segundo molar. Em nenhum dos quatro quadrantes. É, são oito dentes que deveriam aparecer naquele raio-x (eu tinha 11 anos, então esperava que ainda iam nascer), e não havia nem sombra deles. Oito dentes. Notícia suave para receber prestes a entrar na adolescência, né?

Eu ainda tinha três pré-molares de leite, que agora sabíamos porque não haviam afrouxado até então. Três? É que um (o inferior da direita, curiosos) tinha sido extraído uns dois anos antes por uma dentista que jurou que o dentinho estava mole. E ela não fez um raio-x antes. Mas pelo lembro, estava só um pouco frouxo. Enfim, eu tinha três dentes que quando caíssem, não teriam permanentes embaixo. Era como ter três bombas-relógio na boca, porque dentes de leite nascem para serem provisórios. Literalmente, podiam explodir a qualquer momento.

Naquela minha pouca idade, não havia muito que se fazer em relação à agenesia, até esperar os sisos. Então o tratamento foi focado nos dentões mesmo. Comecei a usar o aparelho, que era um monte de resina e arame, com as partes superior e inferior grudadas, me sufocava, um horror. Mas quando eu reclamava, a mãe dizia sempre: “Muita gente quer usar aparelho e não tem condições…” Não ficava mais confortável, mas me fazia dar valor.

E o sofrimento valeu, porque depois de um tempo, nem parecia mais que um dia eu tinha sido dentuça! Só não estava feliz como pensei que estaria, porque o medo de ficar banguela me assombrava, apesar dos dentinhos de leite estarem resistindo bravamente. Lá pelos 14 ou 15, não sei ao certo, os sisos superiores apareceram no raio-x. Tão inclinados que estavam quase deitados, não nasceriam normalmente. A sugestão dos dentistas (eu era um caso bastante estudado na clínica) foi extrair os pré-molares de leite, para que os sisos tivessem espaço para sair e ao mesmo tempo, empurrassem os molares para o lugar desses faltantes. É, meus sisos viram estepes, assumindo o lugar de primeiro molar.

Fiz esse procedimento e continuei com o aparelho móvel, que também daria uma força para alinhar a nova arcada. Mas não adiantou muito, porque os sisos estavam tão inclinados que tiveram pouca força para empurrar os molares, que ficaram no meio do caminho. E na questão dos dentões, o aparelho já parecia ter cumprido seu papel. Comecei a ficar incomodada, e cansada daquela rotina. Perto dos 18 anos, como os sisos inferiores não tinham dado sinal e os dentistas diziam que eu teria que esperar até os 24 para planejar implantes, porque os dentes do juízo ainda podiam aparecer, encerrei essa fase por conta própria.

Obviamente, eu quis passar um tempo sem pensar nos assuntos dentários. E aquele pobre dentinho de leite, cada vez mais mirrado, deixava? Nada, só aumentava minhas inseguranças que não eram poucas. Sempre tendi pra introversão e ansiedade, desde criança, e até pouco tempo não tinha parado para pensar o quanto a questão dos dentes fez com que eu me retraísse ainda mais. Eu tinha vergonha dos meus dentes desalinhados, e medo do dente de leite cair a qualquer momento.

Tanto isso é verdade que minha vida andou muito depois que retomei o tratamento dentário. Com 21 para 22 anos, o dentinho começou literalmente a cair aos pedaços. Procurei um dentista especialista em implantes, para ouvir que antes eu precisaria usar aparelho fixo, para acertar os espaços, principalmente do outro lado (daquele primeiro dente extraído na infância) e da arcada superior. Só com tudo ajeitadinho podíamos partir pra cirurgia.

E foi um alívio quando extraí aquele último dente de leite e coloquei o aparelho fixo. Logo em seguida comecei meu estágio no jornal, algum tempo depois tive meu primeiro namorado. A vida só andou, porque fui ganhando segurança. Aos 24 anos, finalmente coloquei os parafusos no maxilar, e seis meses depois, recebi meus sonhados dentes.

Importante ressaltar que não era só uma questão estética. A falta dos dentes prejudicava minha mastigação. Passei anos mastigando mais pro lado esquerdo por causa da falta daquele primeiro dente, lá da infância. Depois, quando o último dentinho ficou frágil, sobrecarreguei o lado direito. Nem imagino o estado nas minhas articulações da mandíbula.

Acreditam que, depois de botar os implantes, eu descobri que não gostava de verdura porque não conseguia mastigar as folhas? Agora como feliz!

Isso que ainda tenho um trabalhinho na mastigação, porque, se não lembraram, ainda faltam quatro dentes. Minha sorte é ter a boca pequena. Daí nem parece que estou desfalcada. Já sou feliz com essa dentição com jeito de completa. Mesmo que seja esquisita e com umas ajeitadas daqui e dali. É tão bom poder mastigar bem! Sem desmerecer a tristeza daquela menina dentuça, mas dera os dentões fossem meu maior problema…

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