3º NEURÔNIO

Valente Olenca

Mais de 10 mil famílias de Gravataí foram atingidas pelas inundações

Recomendamos a crônica poética de Carlos Albani, o “inventor do vento”, escritor, músico e professor da rede municipal de Gravataí


Olenca disse: “Nunca pensei que ia viver o Dilúvio da Bíblia”!

Eu disse: “E a lenda de Atlântida junto”.

Bairros e cidades submersas. Arcas e noés anônimos contra as águas encharcadas de desmatamento, gasolina, asfalto e lucro de nossas cabeças.

Olenca disse: “O arroio Barnabé virou uma lagoa, daqui a pouco vira mar”.

Eu disse: “Na Vila Rica dessa nossa aldeia, ainda não econtramos com o Tiradentes, mas me reencontro com a primeira escola onde pude lecionar História, há 16 anos”.

O frio e a chuva umedeceram os nossos ossos e somente o calor dos voluntários, de professoras e
professores, fazia-se de lenha na lareira da fraternidade.

Olenca disse: “Eu levantei tão triste, mas esse pão fresquinho, esse cheirinho de café, essa música doce e um batom nos lábios espantaram, ao menos por agora, as nuvens de tristeza do meu coração”.

A professora disse: “Enquanto comemos, cantamos e depois arrumamos os cabelos, que amor de mãe é assim, imitação de Cristo, talvez mais”.

E os pais e os que não tinham filhos, foram mães também naquela manhã, uns com os outros.

Olenca disse: “Da próxima vez, quero ouvir uma canção do Nelson Coelho de Castro”!

Eu disse: “Pode deixar, guria. Se eu conseguir aprender as notas, claro”.

Foi um lindo coral que formamos no dia 12 de Maio, Dia das Mães. Há nove anos, fisicamente, perdia a minha, mas por 30 minutos, tive dezenas de novas mães e elas um novo filho. Independente das crenças, era domingo dos navegantes também.

Ao mesmo tempo, vindos da cidade vizinha, recebia parentes, buscando abrigo em minha biblioteca, depois de fugirem da inundação das bromélias que o nosso rio alagou. Vieram da beira da ponte. Local onde um dia, muito antes da enchente, inclusive antes ainda da enchente de 1941, houve uma pequena cachoeira que dos mapas foi dinamitada.

Cantamos na escola das mães desabrigadas o Bob Marley, os Beatles, até o Mario Quintana e o Paulo Leminski. E as palmas delas nunca saíram do ritmo.

Foi um anjo quem me convidou para ir até lá. Mais do que ser ouvido, ouvir. Outros anjos espalhados pelo Rio Grande inteiro faziam o mesmo, no mesmo instante, e seguem fazendo até agora, possivelmente, muito melhor do que eu. É que cada gesto nosso ajuda as águas baixarem – afinal, foram
gestos humanos que as tranbordaram. Voaremos de novo, mesmo com as asas molhadas.

Gravataí-RS, 16/5/2024.

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