A Câmara de Vereadores analisa o Projeto de Lei 20/2025, que autoriza a criação da Loteria de Gravataí (LOG). A iniciativa, proposta pelo vereador Dilamar Soares (Podemos), promete destinar recursos ao Hospital Dom João Becker e a programas sociais, mas surge em meio a um cenário nacional de explosão de apostas online, classificada por especialistas como uma “epidemia de saúde pública”.
A LOG permitirá ao município explorar jogos lotéricos em parceria com os governos estadual e federal, seguindo modelos como sorteios, raspadinhas e apostas esportivas. A operação ficará a cargo da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico e Turismo (SMDET) ou de empresas privadas credenciadas, que deverão comprovar práticas de “jogo responsável” e sistemas antifraude.
Pelo menos 30% da arrecadação será destinada ao Hospital Dom João Becker, enquanto prêmios não reclamados em até cinco anos irão para programas de assistência social e esporte.
– Não há dia em que não receba reclamações de filas na saúde. É preciso encontrar meio de financiar a saúde pública. Essa é uma forma de aliviar o caixa público sem aumentar impostos – defendeu o vereador Dila, citando a decisão do STF de 2020 que permitiu a estados e municípios explorarem loterias.
Brasil gasta R$ 68 bi em apostas online
A LOG chega num momento crítico: dados de 2024 revelam que os brasileiros gastaram R$ 68,2 bilhões em apostas online só no último ano, equivalente a 0,62% do PIB. Para classes D e E, as apostas já consomem 1,4% do orçamento familiar, segundo a consultoria Strategy.
– É uma epidemia silenciosa – alerta o psicólogo Altay de Souza, pesquisador do tema, em reportagem da Agência Pública.
– As plataformas são projetadas para viciar, especialmente em países desiguais como o Brasil, onde pessoas buscam soluções rápidas para problemas financeiros – completa.
Um relatório da Anbima mostra que 8-10% dos apostadores acreditam que bets são “investimentos”, confundindo sorte com estratégia.
Casos reais: de sonho a pesadelo
Uma reportagem de janeiro da revista piauí expôs histórias como a de uma corretora de imóveis de Gravataí que perdeu R$ 1,8 milhão em três anos jogando Aviator e Tigrinho. Ela começou com apostas de R$ 50, chegou a ganhar R$ 72 mil, mas perdeu tudo após uma sequencia de empréstimos e dívidas com agiotas.
– O algoritmo primeiro te fascina, depois te aprisiona – desabafou à reportagem.
O fenômeno atinge até adolescentes: Gabriel (nome fictício), de 16 anos, gastou R$ 400 (oito dias de salário) em uma hora no Tigrinho.
– Quando perdia, acordava querendo recuperar – contou à Agência Pública.
Professores já relatam alunos usando o Pé-de-Meia (bolsa de estudos do governo federal) para apostar.
Regulação frágil e marketing agressivo
A Lei Federal 14.790/2023 trouxe regras para apostas, mas especialistas criticam falhas. Em 2023, empresas de bets fizeram lobby em 78 reuniões ministeriais, segundo a Fiquem Sabendo. Enquanto isso, influencers e artistas promovem cassinos digitais com cachês milionários.
– O marketing explora a ilusão do dinheiro fácil – alerta o psicólogo Altay de Souza, à Pública.
Na Holanda, jogos como o Tigrinho são proibidos, mas no Brasil proliferam sem controle. Até o Brasileirão foi batizado por uma casa de apostas em 2024.
O dilema de Gravataí
Enquanto a Prefeitura pode ter a LOG como alternativa de financiamento para saúde, o que poderia ajudar até na construção de um novo hospital projetado pela Santa Casa, entidades como o Instituto Alana pedem cautela e especialistas apelam por regras seguras.
– Precisamos de mecanismos rígidos para proteger vulneráveis em qualquer modalidade de apostas – defendeu Marcelo Lau, especialista em cibersegurança, em entrevista à Agência Pública.
A LOG exige que operadoras adotem certificações de “jogo responsável”. Mas, para a corretora que perdeu quase R$ 2 milhões, a lição é clara: “Dinheiro fácil não existe. Só existe o jogo fácil de te enganar”.
Ao fim, é fato que o mercado de apostas é uma realidade nacional, seja institucionalizado e regulado ou não. Nosso site tem anúncio de bet, por exemplo. O que não nos furta de alertar para a necessidade de um amplo debate sobre o tema.
– Sou favorável à legalização completa do jogo. Imagine um cassino em Gravataí, quanta receita geraria. No caso da LOG, estou propondo o debate com base no que já é permitido. E indico o uso de recursos na saúde para financiar o SUS, que atende inclusive quem já joga e não vai deixar de jogar – argumenta o vereador Dila.
Aposta certa é que o projeto vai restar em polêmica.