A Câmara de Vereadores aprovou a permissão de instalação de clubes de tiro próximo de escolas e sem limite de horário para funcionamento, o que possibilita a circulação de armas 24h em Gravataí.
Reputo o momento da votação não poderia ser mais inadequado: um dia depois de estudante de 17 anos morrer e outros três alunos ficarem feridos após um ataque a escola em São Paulo feito por adolescente – o que já tinha acontecido em pauta sobre armas no ano passado; leia em A noite em que a Câmara ‘armamentista’ de Gravataí foi macabra; Vereadores sem vergonha de fechar o caixão.
O Projeto De Lei 121/2023, de autoria do bolsonarista-raiz que usa a alcunha de Policial Federal Evandro Coruja (PP), anula os efeitos de decreto do governo Lula sobre política antiarmas.
O governo federal tinha estabelecido uma distância mínima de um quilômetro entre clubes de tiro e estabelecimentos de ensino públicos ou privados, além de horário de funcionamento das 6h às 22h.
A sessão do ‘liberou geral’ mostrou que o ovo do bolsonarismo resta sempre chocando em Gravataí. O vídeo dos debates e os votos estão ao final deste artigo.
Antes vamos às informações.
O PL que “dispõe sobre o ordenamento territorial e horário de funcionamento de entidades de tiro desportivo no Município de Gravataí” prevê:
Art. 1º As entidades destinadas à prática e treinamento de tiro desportivo não estão sujeitas ao distanciamento mínimo de quaisquer outras atividades.
Art. 2º As entidades descritas no artigo 1º poderão funcionar sem restrição de horário.
As regras mais rígidas para clubes de tiros, derrubadas pelos vereadores de Gravataí, estavam previstas no decreto federal n° 11.615, de julho deste ano. Os clubes de tiro tinham até janeiro de 2025 – 18 meses contados da publicação do decreto – para fazer as adequações exigidas.
O projeto do vereador influencia na principal restrição sobre transporte de armamentos e emissão da Guia de Tráfego, documento emitido pela internet, no site do Comando do Exército, que autoriza aos proprietários o transporte de armas.
O governo de Jair Bolsonaro (PL) permitia aos colecionadores, atiradores e caçadores (CACs) andar com os armamentos municiados e carregados, em qualquer horário, do local em que estivessem armazenados até onde houvesse “treinamento, instrução, competição, manutenção, exposição, caça ou abate”. Não havia restrição de trajeto.
Com o decreto de Lula, os proprietários de armas só poderiam andar com elas desmuniciadas e descarregadas e dentro dos trajetos que foram informados no cadastramento para emissão da Guia de Tráfego.
O projeto de Gravataí, ao liberar o funcionamento 24h dos clubes de tiros, tem como consequência a permissão para circulação ininterrupta de pessoas armadas pela cidade.
Como explicou à CNN Bruno Langeani, mestre em Políticas Públicas pela Universidade de York (Reino Unido) e gerente de projetos no Instituto Sou da Paz, “sendo sócio de um clube de tiro 24 horas, na era Bolsonaro, se você fosse pego com uma arma de madrugada, podia justificar que estava voltando ou indo a um clube de tiro, mesmo em horários muito improváveis”.
Em Gravataí, se o prefeito Luiz Zaffalon (PSDB) não vetar o projeto, voltaremos à Era Bolsonaro.
Na justificativa do projeto, o vereador Coruja descreve os clubes de tiro como “espaços completamente fechados, sem acesso visual interno a partir do exterior e dotados de equipamentos de segurança, pois aprovados pelo Exército Brasileiro”.
– Além disso, o acesso e seus frequentadores são identificados e habilitados para prática ou interesse no esporte – argumenta.
O parlamentar defende que a restrição territorial e de horário imposta pela União “interfere na competência municipal” prevista pela Constituição, “que atribui ao ente local a promoção do adequado ordenamento territorial”.
“Além disso, a entidade de tiro, por ensinar alunos por intermédio de instrutores é uma instituição de ensino e distanciar atividades que atuam no mesmo ramo ofende a liberdade econômica”, entende, acrescentando que “leis municipais que fixaram distanciamento entre atividades já foram declaradas inconstitucionais por “ofender o princípio da livre concorrência lei municipal”.
Coruja também aponta como interferência federal indevida a restrição de horários, “o que dificulta o acesso ao esporte”. Conforme o vereador, já é jurisprudência no STF a garantia do município fixar o horário de funcionamento de estabelecimentos comerciais.
O político conclui a justificativa apontando como questão principal do projeto “a obrigação do Estado em fomentar práticas desportivas e não dificultá-las, conforme expressa previsão constante no art. 217 da Constituição Federal”.
Antes da votação, Nilo Roberto Toledo, representante da Federação Gaúcha de Tiro Prático (FGTP) usou a Tribuna Popular da Câmara para defender a importância dos clubes de tiro.
Assista à manifestação – bastante ponderada – e o debate entre os vereadores, onde o ovo do bolsonarismo chocou mais uma vez na Câmara, com defesas do uso de armas e falas como “estão nos tirando a liberdade”, “se o estado não defende, o cidadão tem que se defender” e outras diatribes como estar “estressado” e ir atirar no clube.
Abaixo do vídeo sigo com a conclusão e os votos.
Sigo eu.
Minha posição é a mesma do discurso, não da prática do presidente Lula, que ao publicar o decreto antiarmas defendeu que todos os clubes de tiro fossem fechados.
– Nós temos que fechar quase todos os clubes de tiro e só deixar aberto os que são da Polícia Militar, Exército ou Polícia Civil. É a organização policial que tem que ter lugar para treinar tiro. Não a sociedade brasileira – disse.
Fato é que, na realidade, os armamentistas deveriam agradecer ao presidente pela política ‘antiarmas’ em vigor.
O decreto – que não suspende porte de armas – é permissivo demais.
Imagine que ainda é permitido ter 2 armas para defesa pessoal e comprar 100 cartuchos por ano.
Na irresponsabilidade planejada do governo Bolsonaro (de armar com fins políticos, e a tentativa de golpe de 8 de janeiro, cercada de CACs, é a principal evidência), era permitido ter 4 armas para defesa pessoal – uma em cada bolso, uma em cada perna? – e 800 cartuchos por ano.
No caso dos atiradores desportivos, ainda é permitido ter 16 armas, sendo 4 de uso restrito, e 180 mil cartuchos por ano. No governo Bolsonaro era possível ter um arsenal de 60 armas, até 30 de uso restrito.
Um caçador pode ter 6 armas, 2 de uso restrito, e 3 mil cartuchos. Antes podia ter 30 armas, 15 de uso restrito e 100 mil cartuchos por ano.
Ao fim, não dá para esquecer de lembrar que todas as armas que circulam no mundo ‘nasceram’ legais, antes de restar na mão de criminosos. Assim, por lógica, mais armas circulando pela rua, mais armas próximas do crime – além do indiscutível: mais armas, mais mortes.
É só comparar os Estados Unidos das Armas e a Europa, que tem o mesmo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH): nos EUA onde se comprar arma na esquina, há 5 homicídios a cada 100 mil habitantes; entre os europeus com porte restrito, menos de 1.
Antes dos votos, uma última história.
Hoje circulou card pelo WhatsApp criticando os vereadores que votaram contra como ‘antiarmas’ e ‘esquerdistas’. Aqueles com os quais falei curtiram a propaganda gratuita.
– Aparece como “frequentemente encaminhado”, né? Eu ajudei a repassar – ironizou Thiago De Leon.
Concordo. Deste clube antiarmas considero uma honra fazer parte.
Veta, Zaffa!
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OS VOTOS
Votaram contra o projeto os vereadores Cláudio Ávila (União Brasil) e Thiago De Leon (PDT). Se abstiveram Anna Beatriz da Silva (PSD), Carlos Fonseca (PSB) e Márcia Becker (MDB). Paulo Silveira (PSB) foi ausência: saiu do plenário e voltou só após a votação.
Votaram a favor Alan Vieira (MDB), Alex Peixe (PTB), Áureo Tedesco (MDB), Bino Lunardi (PDT), Bombeiro Batista (Republicanos), Claudecir Lemes (MDB), Clebes Mendes (MDB), Demétrio Tafras (PSDB), Fábio Ávila (Republicanos), Fernando Deadpool (Patriotas), Dilamar Soares (PDT) Evandro Coruja (PP), Mario Peres (PSDB) e Roger Correa (PP).
O presidente da Câmara, Alison Silva (MDB), só vota em necessidade de desempate, mas manifestou apoio ao projeto.