Não há motivo para pânico. A barragem de Águas Claras, em Viamão, não tem risco de produzir uma tragédia, nem de perto, comparável com a de Brumadinho (MG) em caso de um eventual rompimento. Quem garante são os especialistas e gestores do grande reservatório de água em meio ao Banhado dos Pachecos, nas nascentes do Rio Gravataí, em resposta a uma alarmante entrevista do promotor de justiça Daniel Martini à TV Bandeirantes nesta semana. Na próxima terça, uma reunião sobre o assunto deve acontecer na sede do Assentamento Filhos de Sepé, em Viamão, reunindo os agricultores locais, Ministério Público estadual e federal, INCRA e o Comitê de Gerenciamento da Bacia do Gravataí.
Coordenador do Centro de Apoio Operacional de Defesa do Meio Ambiente, e agora responsável do MP gaúcho pela segurança de barragens, Martini alertou que, mesmo fora da lista de perigo organizada pela Agência Nacional das Águas (ANA), a barragem de Viamão representaria alto risco de prejuízos ambientais e materiais, como também vidas humanas.
— É uma barragem com volume maior de água armazenada do que em Brumadinho. Um turbilhão de água, em caso de rompimento, inundaria até a zona norte de Porto Alegre — declarou.
O principal argumento do promotor baseia-se em um estudo encomendado em 2014 pela Secretaria de Obras Públicas do Estado, que condenou a barragem construída em 1986 para abastecer, na época, somente as lavouras de arroz da região. O estudo apontava para o alto custo que teria a manutenção da barragem e para o desgaste da estrutura atual, propondo a desativação dela e a construção de uma nova, fora da área do Assentamento Filhos de Sepé, que atualmente se beneficia e gerencia aquele reservatório.
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O detalhe, desconsiderado pelo promotor, é que o relatório foi rechaçado pelo Comitê de Gerenciamento da Bacia do Gravataí ainda em 2014. Os técnicos do comitê apontaram uma série de inconsistências nos dados levantados pela empresa contratada, além dos prejuízos ambientais que o fim da barragem causaria a uma das regiões mais sensíveis da bacia.
— O estudo desconsiderou a importância ambiental daquele local para a mitigação de espécies, manutenção do banhado e a própria sobrevivência do cervo. A barragem foi construída junto da área que hoje abriga o Refúgio de Vida Silvestre Banhado dos Pachecos e, depois de mais de 30 anos, é uma realidade absorvida pelo ecossistema local — diz o presidente do comitê, Sérgio Cardoso.
: Barragem fica entre o assentamento e o refúgio de vida silvestre, nas nascentes do Gravataí
Na época, o comitê aconselhou ao INCRA, responsável pela barragem, que não aprovasse o estudo. Segundo Cardoso, o quadro catastrófico de cheia devastadora até a zona norte da Capital, em caso de ruptura, é puro alarmismo.
— Isso seria impossível. Trata-se de uma barragem de planície. Se ela rompesse, o maior volume de água seria absorvido pelas várzeas do Rio Gravataí, e ainda teria a RS-118, que serve como um dique, impedindo a passagem da água para o outro lado. Não faz nenhum sentido essa comparação com Brumadinho — critica Cardoso.
A barragem de Águas Claras reserva maior volume de água do que a barragem rompida em Minas Gerais dias atrás. São 17 milhões de metros cúbicos aqui, enquanto lá, havia 13,9 milhões de metros cúbicos de água e rejeito. Mas a diferença principal é na estrutura. O reservatório de Viamão tem o máximo de 4 metros de profundidade (14 metros em relação ao nível do mar), em uma área alagada de 500 hectares, enquanto em Brumadinho, a área alagada era de apenas 27 hectares, mas a uma profundidade de 87 metros. Logo, o rompimento daquela estrutura representou a liberação de uma energia muito maior do que a acumulada em Viamão.
— Nossa barragem é de planície, e está sobre um solo de banhado. São características bem diversas daquelas de Brumadinho — complementa o responsável pela gestão de águas do assentamento, Marthin Zang.
Estrutura obsoleta
Isso significa que a barragem de Águas Claras está em perfeitas condições? Não. Trata-se de uma barragem antiga e com formas de controle obsoletas.
A situação é alvo de inquérito civil aberto em 2014 pelo Ministério Público Federal, ainda em andamento. Depois da negativa do estudo daquele ano, a exigência do MPF é de que a barragem seja adequada à legislação vigente para a segurança deste tipo de reservatório de água. São exigidos um estudo técnico que, principalmente, contraponha aquele apresentado em 2014, a elaboração de um plano de segurança completo para a barragem, além da contratação de um serviço de inspeção especializado. Quem deve cumprir as medidas é o INCRA, mas até hoje, nenhum dos itens foi executado, e a alegação é a falta de recursos do órgão federal.
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Conforme a assessoria de comunicação do INCRA, foi solicitado à Justiça Federal a liberação de R$ 2 milhões atualmente depositados em uma conta judicial resultante de um processo envolvendo o assentamento de Viamão. A própria justiça já teria autorizado o uso dos recursos exclusivamente para ações que beneficiem o assentamento. Com este recurso, seria possível atender pelo menos duas das três principais exigências de adequação da barragem.
A perspectiva do órgão é lançar um edital em março para a contratação do serviço de inspeção daquela estrutura. O promotor Daniel Martini reforçou à TV Bandeirantes que é fundamental uma fiscalização pelo Estado naquela barragem.
— O Estado hoje não pode confiar apenas no próprio empreendedor, nos laudos produzidos pelo próprio empreendedor — disse.
Em 2016, houve uma ação de fiscalização estadual, e a Defesa Civil garantiu que não havia risco à população.
A barragem fica entre o Assentamento Filhos de Sepé e o Refúgio de Vida Silvestre Banhado dos Pachecos. Daquela água, depende a maior área cultiva a de arroz agroecológico da América Latina, e por isso, o gerenciamento da barragem é feito pelos assentados. Em 2013, eles apontaram ao Comitê Gravataí a preocupação com a estrutura. Enquanto o INCRA não atende às exigências do MPF, os próprios agricultores têm garantido a manutenção das instalações.
— Foi colocada, já entre 2014 e 2015 uma grande quantidade de pedras para reforçar os pontos críticos da barragem, e voltamos a colocar outra carga no ano passado. A pedra tem o papel de proteger a estrutura contra o desgaste provocado pela água — aponta Zang.
São 16 comportas ao longo da barragem, e duas delas romperam em 2016. Com limitação de recursos, a associação dos agricultores custeou a troca das comportas danificadas.
— Foi um investimento de R$ 50 mil, mas é como, em uma casa, trocar as torneiras sem mexer no encanamento — diz.
: Estrutura construída em 1986 hoje mantém o equilíbrio ecológico na área de banhados
Importância ecológica
Pensando nisso, entre 2015 e 2016 um projeto para reforma de todas as comportas, com renovação das tubulações, foi elaborado pela cooperativa dos agricultores de assentamentos locais e entregue ao INCRA para captação de R$ 150 mil, via BNDES. O projeto foi aprovado pelo governo, mas até hoje não decolou.
De acordo com Marthin Zang, o volume de água necessário para o cultivo do arroz reduziu na última lavoura. Foram plantados em torno de 400 hectares a menos em relação ao ano anterior. Foi uma das formas encontradas para reduzir o volume de água acumulada na estrutura da barragem.
No início de cada inverno, a barragem é esvaziada até a cota 11 (1 metro de profundidade), que é a medida considerada pela Secretaria Estadual do Meio Ambiente (Sema) fundamental para manter as características do banhado e do ecossistema local. Quando inicia o período de chuvas, ela então enche para, entre outubro e março, além de pensar no uso daquela água nas lavouras, os agricultores liberarem diretamente no canal do Rio Gravataí 300 litros por segundo de água que acaba reforçando o abastecimento público em toda a região.
— Nós nunca pensamos só na lavoura. O papel desta barragem para a manutenção da flora, fauna e para a recuperação dos banhados originais é fundamental. A barragem concentra água das nascentes das Águas Claras, no pé da Coxilha das Lombas. É um ambiente riquíssimo para a biodiversidade da bacia do Gravataí. Foi construída pelo homem, mas já faz parte do ambiente natural de uma região — argumenta agrônomo.
AS DIFERENÇAS
: A Barragem de Águas Claras concentra um volume de 17 milhões de metros cúbicos de água — é superior a Brumadinho —, mas esta quantidade de água está armazenada em uma área alagada de 500 hectares, com profundidade máxima de 4 metros, em uma região de planície, no Banhado dos Pachecos.
: A Barragem de Brumadinho concentrava 13,9 milhões de metros cúbicos de água e detritos em uma área alagada de 27 hectares — 18 vezes menor que Águas Claras —, com profundidade de 87 metros — 21 vezes mais profunda que em Águas Claras — e em uma área acima do solo.
: A Barragem de Águas Claras foi construída em 1986 com a finalidade de armazenar água para o abastecimento de lavouras de arroz em uma grande propriedade que havia naquela região. No final dos anos 1990, a área foi desapropriada e, em 1998, foi criado o Assentamento Filhos de Sepé. Em 2002, foi criado o Refúgio de Vida Silvestre Banhado dos Pachecos, também dentro da antiga propriedade. Hoje, os dois ambientes dependem da barragem, que desde então, nunca recebeu obras significativas na sua estrutura. Ainda assim, não consta na lista de barragens preocupantes no país, conforme a Agência Nacional de Águas (ANA).
: A Barragem de Brumadinho foi construída em 1976 para ceber rejeitos da produção mineradora da região. Foi incorporada pela Vale e, em 2015, teve a atividade finalizada. Já não recebia novos detritos, e vinha sendo monitorada periódicamente. Era classificada como de baixo risco de rompimento pela ANA.
: Um eventual rompimento da Barragem de Águas Claras provocaria um dano ambiental significativo, porque, literalmente, secaria uma grande área de banhado, eliminando um importante ponto de mitigação de aves e outras espécies, comprometendo também todo o equilíbrio ecológico da região. Também traria consequências ao abastecimento público da região em período de estiagem. Os danos à população, asseguram os especialistas, seriam mínimos.
: O rompimento da Barragem de Brumadinho era apontado como de alto risco de poluição pela ANA, em virtude dos detritos armazenados nela. A tragédia, além das mortes, provocou destruição de importante região de Mata Atlântica. Em torno de 270 hectares foram perdidos.