RAFAEL MARTINELLI

Você vai ajudar a matar uma Nina hoje?; Os fogos de artifício e a humanidade no penhasco

Corpo de Nina, cachorrinha que morreu devido aos fogos, em 2018, no colo da tutora

A cachorrinha Nina, de dois anos, morreu de susto com os fogos de artifício estourados por vizinhos de sua dona, em São Paulo.

Foi em 2018, viralizou na época.

Lembrei da história trágica e revoltante ao reler artigo do jornalista Juan Arias, publicado à época em sua coluna no El País.

“(Nina) poderá se tornar o símbolo de uma tomada de consciência em favor dos animais, num momento em que levanta uma onda de polêmica nas redes”, torceu o veterano e premiadíssimo cronista.

Algo mudou?

Compartilho o impecável artigo de Arias e, abaixo, sigo com minhas impressões, mais simplórias, testemunhais e locais.

A foto da mulher com Nina morta em seus braços reflete a dor que sentem milhões de pessoas quando veem morrer um animal querido. Já os comentários nas redes sobre a dona da cachorra, identificada como Nunes Tha, foram conflitantes. Há quem se tenha solidarizado com ela e os que a recriminam por não ter se prevenido ante a eventualidade do medo de seu animal com os fogos.

No Brasil, talvez pela primeira vez, houve prefeituras que eliminaram os fogos ou os promoveram em silêncio como espetáculo somente para a visão.

Essa tomada de consciência, alimentada pelos chamados feitos por internautas, ocorreu em vários Estados do país. E as motivações não foram somente o sofrimento que os fogos e rojões causam aos animais domésticos, mas também às crianças pequenas e aos doentes nos hospitais.

É uma tomada de consciência que poderá aumentar e que seria um gol em favor da sensibilidade dos brasileiros, pois, apesar de acusados muitas vezes de se excederem nos maus-tratos aos animais, o país talvez seja o que mais e melhor legislou contra a violência exercida contra eles.

Em um mundo e uma sociedade onde cada vez existe menos respeito em relação aos humanos, alguém poderia considerar estranha essa tomada de consciência em favor dos direitos de uma simples cachorrinha. No entanto, a Humanidade foi crescendo ao longo dos anos, lenta, mas certeiramente na defesa dos direitos das minorias.

Na Roma antiga, os pais, quando um filho nascia, decidiam se era apto ou não para viver. Se não o consideravam apto, jogavam-no contra um penhasco. Em nossa civilização, somente em 1924 foi promulgado em Genebra o primeiro estatuto dos direitos da infância, ratificado em 1959 pelos 77 países que formavam então a Organização das Nações Unidas. Hoje os pais não só não podem decidir sobre a vida ou a morte de seus filhos, como também nem sequer puni-los com castigos corporais. A infância nunca esteve tão protegida.

Mesmo assim, os direitos da mulher são mais recentes do que pensamos. Até não faz muito tempo a mulher estava submetida em tudo ao marido. Não podia em muitos lugares viajar sem sua permissão nem ter uma conta bancária. E é recente em muitos países a liberdade de voto para as mulheres. Somente em 1947 a Comissão de Direitos Humanos da ONU decretou a obrigatoriedade do voto feminino. E ainda hoje não se concede às mulheres em muitos países, começando pelo Brasil, o direito a abortar por opção consciente.

Uma mulher espanhola, casada, maltratada fisicamente pelo marido, ao ser interrogada pela polícia admitiu que, sim, ele lhe batia, mas “só o normal”.

A consciência sobre os direitos das pessoas tem sido uma luta de anos e de sacrifícios que ainda prosseguem hoje com os diferentes, os gays, os negros, os transexuais, os refugiados. O fato de que essa luta se veja muitas vezes ainda dificultada pelos preconceitos atávicos não impede que siga em pé, ainda que cambaleando. Está viva, como revela a luta das mulheres pela conquista de sua autonomia e o combate pelos direitos dos animais.

Por isso, a morte de Nina por causa da selvageria não só dos fogos de artifício artísticos, mas dos simples e inúteis rojões de alguns vizinhos, poderia bem ser um símbolo desse contraste de uma Humanidade que luta por abrir maiores espaços de liberdade para todos, embora seja às vezes com quedas e retrocessos. Em matéria de defesa dos direitos pessoais e coletivos ninguém poderia dizer que “tempos passados foram melhores”, já que nunca houve maior sensibilidade do que hoje.

As pessoas anônimas da Internet que choraram com a mulher que mostrava em seus braços sua Nina morta de susto revelam uma sensibilidade que certamente nenhum de meus avós teve. O mundo melhorou. Não importa que haja quem continue negando isso. A evidência irá se impondo. Tristemente, a luta pelos novos direitos nem sempre se alcança sem vítimas inocentes. Nina foi uma delas.

Sigo eu.

Talvez otimista demais, como Arias.

Me encontro na célebre expressão do romancista francês Romain Rolland, citada por Gramsci, “o pessimismo da inteligência não deve abalar o otimismo da vontade”.

Como ativista da causa, vegetariano há 20 anos, vegano por 10, já vi muita crueldade contra os animais, mas também muito amor, dedicação, luta e resultados.

Há mudanças que considero rápidas.

Era jornalista e editor do histórico CG, o diário Correio de Gravataí, quando, do meio para fim da década de 2000, perdemos bons patrocínios por publicar “O rodeio na ótica do touro”, sensacional reportagem de Eduardo Torres, um primor de fatos que testemunhavam animais machucados durante evento.

A ‘sociedade’ de Gravataí achou um absurdo tratar do tema.

Roberto Gomes de Gomes, dono do CG, e hoje diretor do Seguinte:, nos chamou para fumar um cigarro e sentenciou:

– Nos f. hoje, mas vocês estão à frente no tempo. As pessoas só não estão preparadas para isso.

É uma passagem que até hoje me emociona. O que agora arranca sorrisos, na época representou uma grande perda financeira para uma empresa que tinha responsabilidade com mais de uma centena de funcionários.

Hoje, mesmo siga eu um crítico, preciso reconhecer que, ao menos em Gravataí, aumentaram – e muito – os cuidados com os animais que participam de rodeios.

E todo mundo parece concordar com esse zelo.

Lembro que, também como editor e colunista do CG, fiz campanha aberta para aprovação de projeto, da vereadora Anabel Lorenzi, que proibia animais em circos.

Aprovado, o projeto inspirou lei estadual, a partir de projeto do deputado estadual Miki Breier.

Não foi fácil. Lembro de, em minha coluna, sugerir que um parlamentar que defendia a “tradição” de animais explorados em circos circulasse pela cidade, no sol, dentro de uma jaula, na carroceria de um veículo, como acontecia com um leão, todos os anos, em propaganda de circo que se instalava em Gravataí.

Certa vez não deixei entrar na sede do jornal dono de circo que trazia um filhote de tigre na coleira.

Quem hoje não considera um absurdo manter animais fora do habitat, maltratados, sujeitos ao tempo, comendo cachorros, levados de cidade a cidade por circos mambembes?

Pois aconteceu ‘ontem’.

Chegando no ‘hoje’, Gravataí nos últimos anos proibiu carroças, lei oriunda de projeto de Márcia Becker.

Também a partir de projeto da ‘vereadora da causa animal’ foi aprovada e transformada em lei a proibição de uso de fogos de artifício barulhentos, com multas de até R$ 2 mil; leia em Gravataí proíbe fogos de artifício barulhentos sob pena de multa de até R$ 2 mil; Saiba onde denunciar.

Outros políticos já tinham tentado – como Dimas Costa e Rosane Bordignon – e não conseguido emplacar lei tão abrangente e punitiva.

Ultimamente, políticos descobriram que soltar fogos em campanhas eleitorais pega tão mal quanto uma ‘carroceata’ feita por candidato no passado, que deixou rastro e fedor pelas ruas da aldeia.

Não dá para esquecer de lembrar que são investidos mais de R$ 1 milhão por ano na unidade de saúde animal de Gravataí.

A equipe do ex-canil municipal precisa fazer milagres com esse dinheiro, mas 20, 30 anos atrás um prefeito seria deposto caso destinasse tal quantia para o bem-estar animal. Hoje, no máximo ganha no Grande Tribunal das Redes Sociais alguns haters que, enquanto xingam o espelho, tem dificuldade de gostar até da própria mãe.

Ao fim, reputo o cuidado com os animais só avança. Arias acertou em seu otimismo. Infelizmente, como o atraso é grande, e a luta é dura e diária. ainda perderemos muitas Ninas. Apelo: aja, ou ao menos fale sobre isso, reflita. Ajude a conscientizar. Não seja você responsável por tristezas como essa. Ou cúmplice, só assistindo. Não solte fogos de artifício. Denuncie no 153.

O Zeitgeist, o ‘espírito do tempo’, nos convoca para isso.

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