A dívida histórica é imensa, mas a ação tradicional — baseada na superexposição pública, competição e dinheiro — não atrai. Será possível reinventar a política a partir de processos mais participativos e menos egocentrados? O Seguinte: recomenda e reproduz o artigo publicado pelo Outras Palavras
Acompanho e participo da política no Brasil há décadas. Vejo dois mundos: o das organizações de base, aquelas que mobilizam pessoas diretamente, em ativismos de diversos tipos, é majoritariamente feminino. No universo da política representativa, no entanto, o número de parlamentares, prefeitas e governadoras ainda é muito pequeno, mesmo depois de duas décadas de políticas de cotas para as candidaturas feminas.
Claro que há o efeito histórico da posição secundária que as mulheres tiveram na cena pública por milênios. Há também pouco compromisso dos partidos com as mulheres candidatas, não lhes dando prioridade nas disputas. Há muitos motivos, porém acredito que não seja apenas uma dificuldade de fora para dentro. Talvez elas, nós, não queiramos ESSE poder que está disponível.
A hipótese que coloco em discussão é a de que o poder político tradicional, à imagem da sociedade patriarcal, não atrai a maioria das mulheres. Ele é personalista, baseado na superexposição pública, na competição e no dinheiro. Muitas vezes está longe de algo que faça “sentido” real, como o é a liderança em ações de base. Só uma mínima percentagem de mulheres que atuam politicamente em outras esferas é seduzida pela disputa parlamentar ou pelo poder executivo, que exigem muitas “concessões”.
O padrão quase intransponível da política brasileira de necessidade dos “fundos de campanha” expõe candidatos e candidatas a uma busca por recursos nem sempre lícitos. Enfrentar as máfias reinantes custa caro e o exemplo de Dilma Roussef, que ousou enfrentar o execrável Eduardo Cunha e sua gangue, evidencia isso. Poucas mulheres querem se envolver com esse desafio. Sem dúvida que um poder mais feminino faria uma imensa diferença, mas nossa presidenta é exemplo de que o contexto é extremamente difícil.
Será que processos políticos mais participativos, menos egocentrados, com responsabilidades mais coletivas, com mais negociação e menos enfrentamento, seriam mais atraentes à alma feminina? O engajamento delas em associações de bairro, em movimentos de base vinculados ao cuidado, em defesa da Natureza ou em dinâmicas sociais contemporâneas, com liderança compartilhada, mostra isso. Elas estão mais engajadas onde podem fazer a diferença na construção do bem viver, onde podem partilhar desafios coletivos em uma trama de governança mais cooperativa e horizontal.
Claro que é necessário perseverar nas cotas para as mulheres na política e em todos os espaços, pois a dívida histórica é imensa. Elas, porém, estão percorrendo também outros caminhos e sabem que as mudanças que permanecem são aquelas construídas no dia a dia, culturalmente, no longo prazo. Elas questionam cada vez mais o sistema, a visão de mundo, a sociedade patriarcal e querem um mundo mais feminino, mais solidário, mais democrático, mais sustentável. Isso inclui perceber o grande poder transformador que é interior, pessoal, que liberta a opressão que está em si e ajuda o mundo a se tornar melhor de se viver. Honrando as mulheres que hoje estão na política tradicional, observo que a maioria de nós prefere atuar em esferas menos espetaculares, em casa e no trabalho, na comunidade, em espaços em que se trabalha de forma mais coletiva.
Isso não é poder?