Fiz uma promessa de não escrever mais textos sobre outros assuntos que não fossem a respeito de futebol. Ultimamente, alguns textos, brincadeiras e postagens que fiz nas redes sociais geraram um profundo aborrecimento nos outros. E, posteriormente, em mim. Entendo que quando há a emissão de algum tipo de opinião, há uma imediata reação no receptor. A reação pode ser em forma de divergência ou crítica. Discordo de pessoas adoráveis. Pessoas maravilhosas divergem das minhas ideias. Eu não tenho problema com as críticas. Entretanto, não consigo suportar duas coisas: gente que eu gosto, dei força e ajudei desprezando a minha convivência — podem desprezar meus textos, os que menos gostam deles são os colegas, sabe-se lá por quais razões — e jornalistas pedindo que não tenhamos senso crítico, ou seja, que “é melhor relaxar e viver a vida”, como se uma coisa excluísse a outra.
Escrevo por prazer. Tenho senso crítico, que passa longe de “julgar”, classificação atribuída pelo senso comum mais burro possível. Tenho lá minha dose de incoerência, que também passa longe de desonestidade intelectual, como por exemplo, pregar a pluralidade, a diversidade e o (sic) amor e, ao mesmo tempo, rejeitar as opiniões de outras pessoas só porque elas têm pensamentos divergentes. Quando eu voltasse a escrever, seria sobre isso. Sobre minha ausência nos textos, sobre este aborrecimento que se transformou em mágoa — meu rótulo de rancoroso não é lenda, temos nossos defeitos. Seria sobre o absurdo, a desonestidade, a imaturidade, a injustiça e a ingratidão que proliferam nestes tempos estranhos de redes sociais. Sobre a hipocrisia de “ativar a opção deixar de seguir” por causa de opiniões e, ao mesmo tempo, defender a liberdade das pessoas. Porque ninguém está acostumado com o diferente, nem quem diz que adora o diferente. Quebro a promessa e volto a escrever. Não é sobre isso, mas é quase.
A intenção é estabelecer uma conexão entre o que ocorreu comigo e me motivou a abandonar os textos com aquilo que o Tiago Leifert escreveu sobre política e esporte. A proposta do jornalista é isolar o evento esportivo dos acontecimentos cotidianos e tratá-lo somente como diversão e entretenimento. Lá pelas tantas, Tiago escreve que é preciso “imunizar o pouco espaço que ainda temos de diversão”, ou seja, atribuir às competições desportivas a finalidade de apenas entreter o indivíduo.
É interessante pegar origens para embasar a falta de contexto histórico do texto. Em 1936, nos Jogos Olímpicos de Berlim, Jesse Owens ganhou quatro medalhas de ouro, no auge da propaganda nazista, que pregava, entre outras coisas, a supremacia da raça ariana. Owens era negro e foi cumprimentado por Hitler. Em 1980, houve boicote norte-americano à Olimpíada de Moscou. Quatro anos depois, a União Soviética não foi a Los Angeles. Em 1968, os atletas Tommie Smith e John Carlos subiram ao pódio no México erguendo o punho, imitando o gesto dos panteras negras, numa época de intensos conflitos raciais nos Estados Unidos. Sócrates foi um dos maiores atletas brasileiros e sua significação transcendia a sua habilidade dentro de campo. Estes são alguns exemplos de como esporte e política se misturam, se fundem, coexistem. Possivelmente, a força do esporte de alto rendimento não seria a mesma não fosse a presença da política, do protesto e da interferência dos fatos da sociedade.
Claro que Leifert sabe disso. O que ele quis dizer, ignorando tais acontecimentos históricos, foi que o palco do campo não é lugar para manifestação política. Que a faixa de “Fora Temer!” tem que dar lugar a “Vamo, Mengo!”. Que o esporte seja um elemento desvinculado totalmente da vida social. Que o esporte seja lazer e o protesto seja trabalho. É claro que a vida do indivíduo pressupõe ligações visíveis e invisíveis entre os diferentes elos que compõem a sociedade. Também me parece óbvio que os campos de atuações não funcionam como bolhas intransponíveis, onde as coisas de outros campos não entram. O mesmo indivíduo atua em diversos campos: ele trabalha, tem seus amigos, seus colegas de trabalho, vai ao futebol, ao bar e à festa da família. Ele forma, no seu microcosmo, uma partícula social que atua com base em elementos convergentes — afinidades, parentesco, proximidades — e divergentes — pensamentos políticos, desportivos, preferências e modos de vida. Esta partícula transita em diferentes setores com as mesmas divergências e convergências. Ela chega ao estádio de futebol.
O argumento de que futebol é diversão soa, no mínimo, superficial. Assim como a praia e o boteco, o estádio de futebol é um ambiente democrático. Um ambiente de visibilidade democrática. Como a rua, local dos protestos. Sugerir a ausência de qualquer manifestação democrática no campo de jogo é induzir o cidadão a uma espécie de alienação compulsória. Uma apologia à alienação.
Tiago Leifert representa a transformação do jornalismo esportivo em entretenimento. Ele consolidou a forma de tratar o esporte com mais leveza, distanciando-se da abordagem mais noticiosa para adotar um viés menos sisudo. Acho que Leifert tem méritos nisso. Ele apresentava o futebol para além do fã, o futebol para quem não gostava de futebol. Assim, aumentava a audiência, diminuía-se a especificidade do assunto, algo que obteve como resposta, por exemplo, a disseminação das análises mais específicas na internet. A partir de Leifert, este padrão passou a ser hegemônico na Globo e em suas afiliadas. Dois exemplos claros: o atual modelo dos gols do Fantástico — e aqui precisamos lembrar também que Tadeu Schmidt foi essencial para que isso acontecesse — e as edições do Globo Esporte. Respeito este tipo de abordagem, embora não seja de minha preferência.
Atualmente, Leifert apresenta o Big Brother e o The Voice. Voltou-se totalmente para a área de entretenimento e não há problema nenhum. Problema é querer separar as coisas e isolar o futebol como uma célula própria, imune — parafraseando o próprio — aos outros sistemas e pensamentos existentes.
Leifert propõe que a urgência das manifestações não alcance o terreno sagrado da alienação compulsória do futebol. Funciona mais ou menos como um unfollow temporário na política. É fingir que os problemas não existem. É deixar o país, ir pra longe, desistir da profissão, da família, pra viver aquelas duas horas de fantasia, imaginação e de “vida ideal”, aquela que parece ser plena, sem estresse, sem julgamentos, sem críticas. Há, portanto, uma relação inusitada do texto de Tiago Leifert com aquilo que provocou o meu silêncio temporário. Um silêncio encorajado por decepção. Por não querer mais ouvir ou ler que minhas críticas são reclamações e não críticas. Que meu senso crítico é recalque. Que minha acidez é falta do que fazer. Que “live and let live” e “deixa todo mundo fazer aquilo que todo mundo quiser” são os caminhos que preciso seguir. Que eu tenho que trocar minha metralhadora por uma bandeira branca. Que a vida precisa ser leve. É querer uma vida a passeio, por 90 minutos ou por seis meses. Porque, diz o Instagram, que a vida tem que ser leve. Que o espírito precisa ser pacífico. Que a plenitude precisa ser silenciosa. Que isso é paz. Paz sem voz não é paz, é medo. Ou um mundo imaginário que eu não conheço, não quero e que, com todos os defeitos que tenho, não prego. Não varro sujeira pra debaixo do tapete e nem acredito no pote de ouro.
Millôr Fernandes dizia que “imprensa é oposição; o resto é armazém de secos e molhados”. Tem fiambre de sobra. Ele vem do Tiago, da Europa, da colônia, do nosso vizinho…
Carlos Guimarães é jornalista (PUCRS); comentarista esportivo (Rádio Guaíba); mestrando em Comunicação e Informação (UFRGS); especializado em Jornalismo Esportivo (UFRGS).