O padre Batista Nunes Vieira, da Paróquia Santo Hilário, do bairro Neópolis, de Gravataí, pediu-me para tratar da polêmica sobre a recepção de Lula a Maduro, que também repercutiu na Câmara de Vereadores de Gravataí e a sessão você assiste clicando aqui.
Antes que pareça uma provocação, o religioso tem como característica posições equilibradas; reputo está no centro da ferradura ideológica.
Para atender ao amigo, associo-me ao jornalista Reinaldo Azevedo, em Erro com Maduro traga diagnóstico e propostas de Lula. “Pra quê? Pra nada!”.
Lula fez um bom discurso da abertura do encontro com os presidentes da América do Sul. Não há erro, entendo, nem de diagnóstico nem de propostas, e o presidente brasileiro poderia estar, vá lá, faturando uma boa notícia, mesmo com a sequência de desastres que está em curso na Câmara. Nesse equilíbrio instável, tendente ao desequilíbrio, convém não cometer erros óbvios, contratados antes mesmo de acontecer. Foi o caso da recepção especial que Lula decidiu fazer a Nicolás Maduro, ditador da Venezuela.
Falo um tanto do discurso antes de voltar ao ponto. Está correto o diagnóstico que Lula fez das dificuldades enfrentadas pela região:
“Com o esvaziamento da Organização Mundial do Comércio, o multilateralismo retrocede e crescem as posturas protecionistas nos países ricos, limitando nossas opções.
Todos sofremos as consequências da guerra. O conflito na Ucrânia desestabilizou o mercado de energia e de fertilizantes e provocou a volatilidade dos preços dos alimentos, deteriorando nossas condições de vida.
Quando as cadeias de suprimento globais foram afetadas por esse conjunto de fatores, nossas carências em infraestrutura e nossas vulnerabilidades externas foram expostas.
A região parou de crescer, o desemprego aumentou e a inflação subiu. Alguns dos principais avanços sociais logrados na década passada foram perdidos em pouco tempo.
No Brasil e em outros países, recentes ataques a instituições democráticas, inclusive às sedes dos poderes constitucionais, nos ofereceram uma trágica síntese da violência de grupos extremistas, que se valem de plataformas digitais para promover campanhas de desinformação e discursos de ódio.
Face a tantas mudanças e desafios, que papel queremos para a América do Sul?
Nenhum país poderá enfrentar isoladamente as ameaças sistêmicas da atualidade. É apenas atuando unidos que conseguiremos superá-las.”
Ao exaltar as potencialidades da América do Sul, Lula também não incide em fantasia:
“Nenhum país poderá enfrentar isoladamente as ameaças sistêmicas da atualidade. É apenas atuando unidos que conseguiremos superá-las.
Nossa região possui trunfos sólidos para fazer face a esse mundo em transição.
O PIB somado de nossos países neste ano deverá chegar a 4 trilhões de dólares. Juntos somos a quinta economia global. Com uma população de quase 450 milhões de habitantes, constituímos importante mercado de consumo.
Possuímos o maior e mais variado potencial energético do mundo, se levarmos em conta as reservas de petróleo e gás, hidroeletricidade, biocombustíveis, energia nuclear, eólica e solar e o hidrogênio verde.
Somos grandes e diversificados provedores de alimentos.
Contamos com mais de um 1/3 das reservas de água doce do mundo e uma biodiversidade riquíssima, pouco conhecida.
Em nosso solo se encontra rico e variado conjunto de minérios, incluídos aqueles que, como o nióbio, lítio e cobalto, são essenciais para projetos industriais de última geração.
Somos uma região de paz, sem armas de destruição em massa, e na qual os litígios são resolvidos pela via diplomática.
Nos próximos anos, vamos sediar eventos dos principais foros de governança global, como a reunião do Fórum de Cooperação Econômica Ásia-Pacífico, no Peru, a Cúpula do G20, a reunião dos BRICS e a COP 30, do clima, no Brasil.
Precisamos chegar a esses espaços unidos, como interlocutores confiáveis e buscados por todos.”
Uma coisa é certa: ainda não se encontrou um caminho para que a América do Sul fale ao mundo como uma voz concertada. Sim: é preciso dar um primeiro passo. O tempo dirá se o encontro desta terça teve esse papel. O brasileiro fez um elenco de propostas:
“Nesse sentido, e sem prejuízo de outras propostas que discutiremos ao longo do dia de hoje, sugiro à consideração de vocês as seguintes iniciativas:
– colocar a poupança regional a serviço do desenvolvimento econômico e social, mobilizando os bancos de desenvolvimento como a CAF, o Fonplata, o Banco do Sul e o BNDES;
– aprofundar nossa identidade sul-americana também na área monetária, mediante mecanismo de compensação mais eficientes e a criação de uma unidade de referência comum para o comércio, reduzindo a dependência de moedas extrarregionais;
– implementar iniciativas de convergência regulatória, facilitando trâmites e desburocratizando procedimentos de exportação e importação de bens;
– ampliar os mecanismos de cooperação de última geração, que envolva serviços, investimentos, comércio eletrônico e política de concorrência;
– atualizar a carteira de projetos do Conselho Sul-Americano de Infraestrutura e Planejamento (COSIPLAN), reforçando a multimodalidade e priorizando os de alto impacto para a integração física e digital, especialmente nas regiões de fronteira;
– desenvolver ações coordenadas para o enfrentamento da mudança do clima;
– reativar o Instituto Sul-Americano de Governo em Saúde, que nos permitirá adotar medidas para ampliar a cobertura vacinal, fortalecer nosso complexo industrial da saúde e expandir o atendimento a populações carentes e povos indígenas;
– lançar a discussão sobre a constituição de um mercado sul-americano de energia, que assegure o suprimento, a eficiência do uso de nossos recursos, a estabilidade jurídica, preços justos e a sustentabilidade social e ambiental;
– criar programa de mobilidade regional para estudantes, pesquisadores e professores no ensino superior, algo que foi tão importante na consolidação da União Europeia; e
– retomar a cooperação na área de defesa com vistas a dotar a região de maior capacidade de formação e treinamento, intercâmbio de experiências e conhecimentos em matéria de indústria miliar, de doutrina e políticas de defesa.”
A carta intitulada “Consenso de Brasília” é bem mais genérica do que isso. Mas essa é a natureza das coisas. Como anfitrião e como organizador da reunião, cumpre a Lula ser mais detalhistas e pontual nas pretensões. Os demais chefes de Estado terão de pensar as propostas junto a seus respectivos governos: boa parte das pessoas não tem noção do que sejam CAF, Fonplata ou Banco do Sul e como podem agir. A atuação do BNDES no exterior ou em associação com outros organismos de fomento não é coisa pacificada por aqui.
É matéria complexa, como se sabe, a criação de uma “unidade de referência para os negócios”. De novo: é preciso começar por algum lugar. O item 5 faz alusão às propostas econômicas de Lula, mas é mais genérico e fluido:
“Comprometeram-se [os países] a trabalhar para o incremento do comércio e dos investimentos entre os países da região; a melhoria da infraestrutura e logística; o fortalecimento das cadeias de valor regionais; a aplicação de medidas de facilitação do comércio e de integração financeira; a superação das assimetrias; a eliminação de medidas unilaterais; e o acesso a mercados por meio de uma rede de acordos de complementação econômica, inclusive no marco da ALADI, tendo como meta uma efetiva área de livre comércio sul-americana.”
Um erro é um erro é um erro
A reunião com os países da América do Sul até poderia ter sido um contraponto aos desatinos que estão em curso na Câmara. Mas não aconteceu. Por que não? Porque um erro é um erro é um erro. E nada o faz ser um acerto.
O evento foi tragado pelo esforço de Lula de “normalizar” Nicolás Maduro para a vida democrática. Vamos ver:
– jamais se deveria ter dado protagonismo àquele que era o único ditador entre os líderes reunidos;
– a afirmação de que o autoritarismo venezuelano é uma questão de “narrativa” é um desses equívocos que não se cometem duas vezes. E o presidente insistiu na tese nesta terça.
Este que escreve jamais caiu na conversa do tal Juan Guaidó. Sempre achei uma maluquice que um grupo de países decidisse que o presidente não é mais fulano, e sim beltrano. As sanções impostas à Venezuela acabam tendo efeito muito limitado aos governantes e à elite que é intima do regime, mas punem severamente a população.
Também é papo furado essa história de que os EUA, afinal, não podem tolerar uma ditadura… Antes que Lula lembrasse nesta terça o tratamento que as potências dispensam à Arábia Saudita, eu mesmo o fiz. As crianças do Iêmen são massacradas com armas americanas.
Mas não se colocará fim à hipocrisia do mundo nem se vai torná-lo melhor tentando passar goela abaixo da verdade a farsa de que a Venezuela é uma democracia.
Lula fez bem em reestabelecer as relações entre os dois países. Maduro é o presidente que as circunstâncias permitiram que seu país tivesse. Ele próprio abriu um princípio de diálogo com parte da oposição. Como líder regional, não cabe a Lula dizer qual deve ser o regime político dos demais países. Tem de buscar os melhores acordos para os brasileiros — o que passa, muitas vezes, por socorrer vizinhos. No discurso na Fiesp, lembrou, por exemplo, que, se o Brasil conseguir ajudar a Argentina, a ação é do interesse da nossa indústria e dos nossos empregos.
Realismo, não fantasia
Assim, o presidente brasileiro poderia ter se fixado no realismo, não na fantasia. Não é papel do Brasil impor um regime democrático à Venezuela, mas afagar uma ditadura, atribuindo as críticas àquele regime a uma mera “narrativa”, bem, era, como escrevo no primeiro parágrafo, um erro contratado antes de acontecer.
A simples presença de Maduro, reconheça-se, já era um incômodo. Por quê? Houve uma tentativa de golpe no Brasil no dia 8 de janeiro, e o governo não matou ninguém porque buscou a solução pacífica mesmo diante de crimes evidentes. Lula não desmentiu a afirmação feita pelo general Gustavo Henrique Dutra, que era o chefe do CMP (Comando Militar do Planalto) no dia 8 de janeiro, segundo a qual o próprio presidente concordou que não era o caso de as forças de segurança entrarem na área anexa ao QG do Exército em Brasília, onde se acoitavam os golpistas, porque poderia correr sangue. Lula teria respondido: “Seria uma tragédia”. E os criminosos foram presos no dia seguinte.
Na Venezuela, centenas morreram não porque tivessem invadido a Assembleia, a sede da Justiça ou o Palácio de Miraflores, mas porque protestavam nas ruas. Há relatos abundantes de tortura. Atribuir o desastre econômico daquele país apenas a seus inimigos é outra tese insustentável.
“Ah, isso tudo é coisa da mídia reacionária”. Sim, anda mais reacionária do que nunca no geral. E, no entanto, a Venezuela segue sendo uma ditadura, e isso não é uma invenção. Romper relações com o país é uma estupidez. Adular o seu regime é uma tolice e um tiro no pé.
E como o capeta costuma escolher sempre o monte maior, como dizia Terenciano, seguranças brasileiros agrediram jornalistas que tentavam fazer perguntas a Maduro na saída do encontro.
O Itamaraty lamentou. A Secretaria de Imprensa do Planalto prometeu “medidas”. A Abert protestou. Até parecia um pedacinho da Venezuela no Brasil. Até pareceu, por alguns instantes, que Lula, um democrata, não havia vencido um fascistoide facinoroso em 2022.
O governo brasileiro permitiu que uma reunião virtuosa fosse engolida por Maduro. E eu me lembrei do poema “Gaúcho”, do poeta Pernambuco Ascenso Ferreira:
“Riscando os cavalos!
Tinindo as esporas!
Través das coxilhas!
Sai de meus pagos em louca arrancada!
— Pra quê?
— Pra nada!”
Prestigiar um ditador corresponde a ignorar a decisão tomada pela maioria do povo brasileiro no ano passado: escolheu um democrata. Adular Maduro pra quê? Pra nada! Mas a um custo político enorme.
Que se note: a imprensa estrangeira foi bem mais benevolente com os salamaleques a Maduro e preferiu chamar a atenção para o fato de que Lula rompe o cerco que os EUA fizeram ao presidente venezuelano. É tudo também verdade. O brasileiro jamais deixou de ser uma figura de prestígio mundo afora. Mesmo em seus dias mais difíceis. Mas convém não dar ração a fascistoides no ambiente doméstico. Especialmente por intermédio de um líder autoritário. Pra quê? Pra nada!