CARLOS WAGNER

As pontas soltas no caso da peregrinação de Luciane, a dama do tráfico amazonense, por Brasília

A imprensa deixou algumas pontas soltas que precisam ser atadas na história da passagem de Luciane Barbosa Farias, 37 anos, pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, pelo Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania e pelo Congresso, em Brasília (DF). Conhecida como a dama do tráfico amazonense, Luciane é uma das dirigentes do Comando Vermelho (CV) do Amazonas, ao lado do seu marido, Clemilson dos Santos Farias, o Tio Patinhas, que cumpre pena de 30 anos em Manaus (AM) por tráfico de drogas, homicídios e outros crimes. Ela própria recorre em liberdade de uma condenação a 10 anos de prisão por lavagem de dinheiro e outros crimes. Nos dias 19 de março, 2 de maio e 6 e 7 de novembro, Luciane esteve em Brasília, participando de reuniões nos ministérios, representando os interesses da ONG Instituto Liberdade do Amazonas (ILA). Em uma das reuniões esteve presente Elias Vaz, secretário de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça. Ela não se avistou com o ministro da Justiça, Flávio Dino. Mas tirou fotos com vários deputados no Salão Verde da Câmara, entre eles Guilherme Boulos (Psol-SP) e Daina Santos (PCdoB-RS). Essa história veio a público no dia último 13, segunda-feira, no Estadão, e desde então tem ocupado as manchetes dos principais jornais impressos, sites, TVs, rádios e outras plataformas.

Vamos falar sobre as pontas soltas, uma gíria usada pelos velhos repórteres para dizer que faltam detalhes importantes na matéria. A primeira ponta que precisa ser atada é a seguinte. O escândalo da presença de Luciane em reuniões nos ministérios não tem nada a ver com o fato dela ser parente de um preso. Mas por ela ser, como revelam investigações da Polícia Civil do Amazonas, dirigente ativa e muito conceituada entre os criminosos do Comando Vermelho. Os repórteres calejados sabem dessa diferença e da necessidade de alertar o leitor para ela. Outra ponta solta. Brasília se perfila entre as cidades do país com mais jornalistas por metro quadrado. Como só foram descobrir meses depois que uma importante liderança de uma das maiores facções criminosas do Brasil andou perambulando pela Capital Federal? Mais ainda: as audiências para Luciane foram marcadas por Janira Rocha, advogada e ex-deputada do Rio de Janeiro. Documentos da polícia provam que a advogada recebeu R$ 23 mil do CV pelos seus serviços. Todo repórter sabe que onde aparece o nome da advogada Janira tem rolo. Outro fato: o governador do Amazonas, Wilson Lima, 47 anos (União), é jornalista e radialista, portanto, sabe o valor de uma informação. É do seu conhecimento que há uma guerra no seu estado envolvendo as facções Primeiro Comando da Capital (PCC), de São Paulo, CV, sede no Rio de Janeiro, e o Cartel do Norte (antiga Família do Norte), de Manaus. Lutam pela exclusividade no transporte da cocaína da Colômbia pelos rios amazônicos e pela venda da droga no varejo das cidades da região. É de se supor que os serviços de inteligência das polícias civil e militar do Amazonas tenham permanentemente no seu radar o paradeiro de uma figura do quilate de Luciane, a dama do tráfico amazonense. Se ela andasse pela Colômbia não seria novidade. Agora, em Brasília é de se estranhar. O governador não sabia de nada? Nós jornalistas temos escrito e falado que foi uma tremenda falha da segurança os ministérios da Justiça e Direitos Humanos não terem detectado a presença de Luciane. Não tenho dúvidas disso. Mas também temos culpa no cartório por não termos descoberto essa história há mais tempo.

Outra ponta que falta amarrar. Que motivos levaram Luciane a peregrinar pelos gabinetes de Brasília? Antes de responder à pergunta vou dar uma explicação que considero relevante aos meus colegas e leitores. Aprendi com os repórteres que fazem a cobertura policial que os bandidos sem nada dentro da cabeça estão mortos. Os que estão no comando das quadrilhas são chamados de “cabeção”, como o chefão do CV, Luiz Fernando da Costa, o Fernandinho Beira-Mar, que cumpre mais de 150 anos de cadeia em uma prisão federal. No final da década de 90, ele refugiou-se na fronteira do Brasil com o Paraguai e de lá entrou na Colômbia, onde fez um acordo com os cartéis produtores de cocaína. Fiquei vários meses no encalço de Beira-Mar na fronteira e conheci e conversei com pessoas da cúpula do CV. Esse pessoal não ocupa postos de comando por serem os mais corajosos. Ocupa por serem os mais articulados. Por qual motivo concordariam em mandar para Brasília alguém como Luciane, que já tem uma condenação e é conhecida como a dama do tráfico? Para provocar o governo federal? Voltando a nossa história.

Seja lá qual for o motivo pelo qual Luciane foi a Brasília, foi por decisão da direção local do CV. Qual era o propósito? Precisamos descobrir o motivo do investimento que fizeram. Não é fácil. Mas também não é impossível. Uma conversa em off com a advogada Jandira pode render uma boa matéria. Todas as matérias que temos publicado têm focado no uso do episódio pelos bolsonaristas para atacar o governo federal. E nas explicações do governo sobre o que aconteceu. O que sugiro é que se avance no assunto, abordando o lado policial. Lembro o seguinte. Recentemente, o ministro da Justiça, Flávio Dino, fechou vários acordos com o governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro (PL), colocando em prática uma série de medidas com o objetivo de asfixiar a circulação de dinheiro entre as facções criminosas e as milícias cariocas, além do tráfico de armas, munição e cocaína do Paraguai, da Colômbia, do Peru e da Bolívia – há matérias sobre o assunto na internet.

O acordo entre Dino e o governador Castro precisa ser lembrado nas matérias que temos feito sobre essa história. O ministro também está envolvido na expulsão dos garimpeiros das reservas indígenas na Floresta Amazônica, em especial da terra dos yanomami, uma vasta área na fronteira de Roraima com a Venezuela – há matérias na internet. Há muitas outras pontas soltas nessa história que podiam ser citadas. Mas não é o meu principal objetivo. A minha intenção foi alertar os colegas, especialmente os jovens repórteres, que essa história é muito mais que uma disputa entre os bolsonaristas e o governo. É necessário mostrarmos a real grandeza dos fatos. Tudo é possível. Inclusive que Luciane tenha se deslumbrado com as luzes de Brasília e enfiado os pés pelas mãos. Se isso aconteceu, a dama do tráfico amazonense vai ter problemas com a cúpula nacional do CV. Colegas, podem apostar. O lado policial dessa história é bem interessante.

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