É um atentado à laicidade do Estado e um equívoco pedagógico e jurídico o Projeto de Lei 51/2025, proposto pelo vereador Mano do Parque (PL), que institui a leitura da Bíblia como “recurso paradidático” nas escolas de Cachoeirinha.
Sob o véu de promover “cultura, história e arqueologia”, o projeto escancara um proselitismo religioso que a Constituição Federal rejeita.
A justificativa do parlamentar repousa em falácias. Afirmar que a Bíblia é “mais relevante que todos os livros paradidáticos” por suas vendas ignora que relevância educacional não se mede por rankings comerciais, mas por rigor histórico, científico e pluralismo.
A tentativa de apresentá-la como fonte neutra de “história, geografia e arqueologia” é especialmente perigosa: a Bíblia é, antes de tudo, um texto sagrado para determinadas tradições religiosas, não um manual científico. Confundir esses campos é um desserviço à educação.
Os problemas, no entanto, vão além da pedagogia.
Há uma inconstitucionalidade flagrante. Como já destacaram o filósofo Carlos Cury (PUC-MG) e o jurista Alexandre Bahia (UFMG), em entrevistas ao G1 após lei semelhante entrar em vigor em Belo Horizonte, na semana passada, o projeto viola o artigo 19 da Constituição, que veda ao Estado “estabelecer cultos religiosos ou igrejas” ou “privilegiar” qualquer religião.
Ao eleger explicitamente a “Bíblia Sagrada” (termo cristão), o projeto despreza tradições judaicas, islâmicas, afro-brasileiras, indígenas ou ateias. A alegação de que a adesão é facultativa (Art. 2°) não resolve o cerne do problema: o Estado não pode promover uma fé específica com recursos públicos.
Verifica-se também incompetência legislativa. A União detém a competência exclusiva para definir diretrizes da educação nacional (CF, Art. 22, XXIV). Municípios não podem criar disciplinas paralelas ou impor conteúdos que desvirtuem a base curricular nacional. O projeto duplica o ensino religioso já existente (facultativo e não confessional), ferindo o pacto federativo.
Alerta-se, ainda para o risco de segregação. Como alerta Cury, a proposta gera discriminação prática. Crianças que optarem por não participar (por objeção familiar ou convicção) serão marcadas como “diferentes”, criando fraturas desnecessárias em ambiente escolar. A escola pública deve ser espaço de acolhimento, não de constrangimento religioso.
Caso o absurdo sobreviva à análise de constitucionalidade das comissões permanentes da Câmara, mesmo seja evangélico o prefeito Cristian Wasem (MDB) deve vetar a proposta. Ao menos é o que indica o rigor jurídico que teve ao encaminhar veto ao projeto, também de origem legislativa, que previa o mapeamento da comunidade LGBTQIAPN+ em Cachoeirinha; leia em Prefeito Cristian veta mapeamento da população LGBTQIAPN+ em Cachoeirinha mas sugere forma de aprovação legal do projeto; o teste.
Mano do Parque é um bom vereador e tem méritos fiscalizadores, mas projetos como este revelam uma face preocupante: a submissão ao populismo religioso de ‘bolsonarismo-raiz’, que troca o interesse público por aplausos de nicho, curtidas nas redes antissociais e, talvez, votos.
Como lembra Bahia, o STF já derrubou lei similar no Amazonas (2021) por ferir a laicidade. Não há “janela pedagógica” que justifique rasgar a Constituição.
A Bíblia pode ser estudada no contexto do ensino religioso não proselitista ou como obra literária em aulas de história das religiões. Isolá-la como “recurso paradidático” privilegiado é cruzada disfarçada. Educação plural exige respeito à diversidade de crenças – inclusive o direito de não ter nenhuma.
Ao fim, reputo cabe à Câmara de Vereadores ou ao Executivo frear esse retrocesso. Laicidade não é anti-religião: é a garantia de que todas (e nenhuma) tenham espaço igualitário.