Na noite da terça-feira, 16, estava “batendo” um texto para o blog quando resolvi dar um tempo para comer alguma coisa e tomar uma cerveja gelada que estava me provocando na cervejeira. Peguei uns pedaços de churrasco, sobras do almoço de domingo, que estavam na geladeira, esquentei no micro-ondas, abri a lata de cerveja e comecei a comer e a pensar como iria “abotoar” o texto. Não dei bola para os grossos pingos de chuva que começavam a cair e muito menos para o vento que os acompanhava. A Defesa Civil havia alertado para a possibilidade de chuva e ventos fortes em Porto Alegre (RS) naquela noite. Mas a minha experiência de repórter na cobertura de tempestades, principalmente aquelas que aconteceram quando estava de plantão na redação, me ensinava que apenas uma determinada faixa da cidade costuma ser atingida com mais severidade nessas ocasiões. Não me passou pela cabeça que, desta vez, a minha casa estaria dentro da tal faixa. Só percebi que estava no olho da tormenta quando os pingos de chuva engrossaram ainda mais e o vento começou a dobrar e arrancar as árvores. Foi uma hora e pouco de temporal. No final, a cidade parecia que tinha sido alvo de um ataque de artilharia. Muita destruição por toda a parte. Pelas contas das duas maiores operadoras de distribuição de energia elétrica do Estado, a CEEE Equatorial e a RGE, em números redondos 1,5 milhão de estabelecimentos estavam sem eletricidade, a maioria na Região Metropolitana de Porto Alegre. Claro, eu fazia parte das estatísticas.
Antes de seguir a conversa vou contar uns fatos que considero importantes. Uma coisa é um repórter estar dentro de uma redação e participar da cobertura dos estragos causados por uma tempestade. Nessas horas, o volume de trabalho é tão grande que mal dá tempo de pensar sobre as informações que chegam. Outra coisa é estar fora da redação e ter tempo para conversar com as pessoas, observar e sentir a agonia da espera das soluções que não vêm. Trabalhei em jornal diário de 1979 a 2014. E a tempestade de terça foi a primeira que me pegou fora da redação. Mais uma explicação: usei as palavras “bater” e “abotoar” no sentido de digitar e concluir um texto porque sou um velho repórter de 73 anos e herdei essas expressões dos tempos que comecei na profissão, quando as antigas máquinas de escrever dominavam as redações. Dito isso, vamos a nossa conversa. A primeira coisa que notei. A Equatorial e a RGE informavam para a imprensa o número de consumidores que já tinham a sua energia restabelecida. Os colegas jornalistas simplesmente colocavam esses números nas matérias e nos noticiários (rádio, TV e outras plataformas). Na minha época fiz isso muitas vezes. Hoje eu leio esses números, ouço os noticiários, olho as coisas ao meu redor e fico com a sensação de que alguma coisa está mal explicada. Não vou chamar as duas empresas de mentirosas, não tenho provas. Mas posso informar ao leitor que os números não foram auditados e que são de única e exclusiva responsabilidade da Equatorial e da RGE. Adotando esse procedimento o repórter não está fugindo da sua responsabilidade. Mas avisando ao leitor que não tem como verificar se as informações são verdadeiras. Costumo dizer que, viajando pelos rincões do Brasil e por países vizinhos fazendo cobertura de conflitos agrários e crime organizado, eu já vi coisas que até Deus duvidaria da sua existência. Lembrei-me da frase na manhã de quarta-feira (17), quando saí de casa para dar uma volta pela cidade e ter uma ideia do tamanho do rolo em que estava metido. Já próximo ao meio-dia cheguei a um supermercado. Fiquei surpreso com o enorme número de pessoas que encontrei no local, porque a Defesa Civil estava repetidamente recomendando, pelos meios de comunicação, que a população ficasse em casa. Por que todos estavam ali? Simples, o supermercado tinha um gerador de energia e as pessoas estavam tentando recarregar a bateria dos seus celulares, laptops e luzes de emergência. Quando descobri isso, disse a um grupo de senhoras: “Por que nunca pensei nisso?”
A maneira como as pessoas resolvem os seus problemas na hora do aperto é uma grande escola de jornalismo, tenho repetido esse alerta nas conversas com colegas nas redações do interior do Brasil. Nas coberturas dos conflitos agrários sempre avisava o motorista para que houvesse sempre pelo menos meio tanque de gasolina no carro. Por quê? As distâncias eram enormes e eram raros os postos de abastecimento. No auge da confusão deixada pela tempestade de terça-feira, eu olhei o marcador de gasolina do meu carro e vi estava para entrar na reserva. Comecei a procurar um posto. Passei por uns 10, todos fechados por falta de energia elétrica. Antigamente, as bombas de combustíveis podiam ser operadas manualmente. Hoje, os equipamentos são sofisticados e só funcionam com energia elétrica, me informou um entendido no assunto. A luz do marcador de gasolina começou a piscar quando finalmente encontrei um posto aberto. Entrei e pedi para abastecer. O gerente disse: “Não aceitamos cartão e Pix, só pagamento em dinheiro vivo”. Perguntei por quê. Ele respondeu: “O nosso sistema não está funcionando”. Respondi: “Engraçado, porque os sistemas das três lojas que existem no posto estão operando com cartão e Pix”. Ele insistiu: “Mas o nosso, não”. Argumentei que os caixas eletrônicos não estavam funcionando e eu não tinha de onde tirar dinheiro vivo. Pelo menos que colocassem um cartaz avisando. Ele apontou o dedo em direção a um pequeno cartaz pendurado em uma das bombas: “Tá ali o cartaz”. Sai de lá irritado e fui em busca de outro posto. Encontrei a uns quilômetros adiante. Antes de entrar na fila para abastecer perguntei ao gerente se aceitavam cartão ou Pix. Ele disse que sim, mas fez uma observação: “Só estamos vendendo a gasolina mais cara”. Saí da fila e comecei a rumar para casa. Não foi pelo dinheiro. Mas pelo desaforo. No caminho de casa resolvi fazer mais uma tentativa de abastecer. Desta vez deu tudo certo. Paguei o preço de mercado do combustível no cartão e ainda tive sorte de encontrar um caixa eletrônico funcionando.
Citei esses dois casos que considerei um abuso contra o consumidor. Mas aconteceram muitos mais na cidade. Os analistas de estragos causados por tempestades mais otimistas calculam que a população de Porto Alegre vai sofrer pelo menos por duas semanas com falta de energia elétrica, internet e outras carências. O maior problema é a falta de estrutura da CEEE Equatorial e da RGE para atender situações de emergência. A CEEE era uma empresa estatal que foi privatizada recentemente pelo governo do Estado com a promessa de melhorar os serviços. Por muito motivos os serviços pioraram, o tiro saiu pela culatra e o governador Eduardo Leite (PSDB) tenta explicar a situação a cada entrevista. Por se tratar de um político experiente, o prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB), sabe que a tempestade vai influenciar nas eleições municipais deste ano, quando deverá concorrer à reeleição. Quanto a mim, vou terminar aquele texto que interrompi para tomar uma cerveja e comer uma carne.