JONAS TIAGO SILVEIRA

A morte e o deus da Daniela

Cheguei cedo para a fila da ONG que promove castração de animais a baixo custo, ao menos era o que eu achava, pois assim que desci do carro, já havia cerca de dez ou onze pessoas esperando.

Entre aquele mar de “tutores” e caixinhas de transporte, maioria com felinos, duas coisas fugiam do padrão: primeiro uma menina vestindo rosa, que circulava alegremente (e saltitando) pela volta das pessoas, pregando fatos sobre deus de forma teatral, reproduzindo algo que as pessoas deveriam aplaudir e incentivar em casa, como um cão que faz truques e aguarda aprovação do tutor. “Deus fez a lua, Deus fez a mamãe, Deus ajuda todo mundo”, cantarolava a pequena Daniela enquanto movia os braços e gesticulava. Aliás, o nome era conhecido pois ela fazia questão de se apresentar: “Meu nome é Daniela e eu sou muito feliz sobre Deus”.

O outro fato que fugia ao padrão, era um cachorro, no colo de seu dono e enrolado em uma coberta. O dono chorava sem parar, um homem por volta de seus 45 anos, de barba, boné e bem magro. Parecia que conforme chorava, algumas pessoas se sentiam incomodadas e desviavam o olhar, assim como um cão que aprontou alguma coisa e tenta desviar do olhar do tutor.

Larguei a caixa de transporte ao lado e me aproximei alguns passos até parar do lado do homem.

– Eu acho que ele morreu – disse, me olhando.

Respirei fundo e me aproximei do animal, tentei sentir batimento, respiração, achar alguma reação, mas nada, ele havia partido ali, no colo do tutor.

– Deus fez todas as coisas, Deus é maravilhoso com todos. Um dia nós vamos morrer, meu cachorro vai morrer, mamãe vai morrer, Deus que decide – pregava teatralmente a pequena Daniela aos saltos do outro lado, sem saber o que se passava ali.

Me agachei para ficar na altura do tutor que havia perdido seu cachorro e lhe dei um abraço. Fiquei pensativo sobre aquelas pessoas que desviavam o olhar ao ver aquele homem em um momento de dor, mas que jogavam confetes para a pequena Daniela repetindo como um papagaio frases que aprendeu em algum teatro de uma igreja. Um abraço, às vezes as pessoas só precisam de um abraço, de um apoio, de um pouco de atenção.

– Ele estava bem, tinha nove anos, mas acordei de noite e ele não estava na cama, estava na sala já sentindo dores, só esperei amanhecer, mas não deu tempo – dizia o homem ainda chorando.

– Qual era o nome dele? – perguntei.

– Léo – respondeu.

Ajudei ele a colocar o Léo sobre uma cadeira e o enrolar no cobertor. Nesta hora a clínica já estava abrindo suas portas.

– Moço – chamou a pequena Daniela sorridente – Não se preocupe, ele vai melhorar.

– Ele já morreu – disse o homem.

Daniela toda sorridente olha para mãe, como se aguardasse que ela soprasse alguma frase para ela continuar sua pregação, mas nada veio.

O homem entra com o animal para a consulta que agora já não era necessária, só uma formalidade de confirmar o óbito. Logo mais ele sai e fica aguardando uma carona para ir para casa com o corpo de Léo, que ele chamava de filho. Voltei ao lado e fiquei ali conversando até sua carona chegar.

Logo mais a fila começa a andar, as caixinhas e os tutores que as carregam vão desaparecendo gradativamente enquanto a pequena Daniela seguia repetindo as mesmas frases e colocando alguns improvisos: “Deus criou o mundo, Deus criou a lua, Deus que coloca o bebê na barriga da mamãe”.

Em seguida me chamaram, infelizmente não consegui ficar mais tempo para ver se o deus de Daniela e sua mãe também falava sobre amar ao próximo e ajudar os desamparados.

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