“Analisamos 923 episódios do podcast do ex-estrategista de Trump para entender o que ele fala sobre nossas eleições”. Recomendamos a reportagem da Agência Pública.
Uma vitória de Jair Bolsonaro (PL) no Brasil — improvável de acordo com as pesquisas eleitorais — pode tranquilizar os republicanos às vésperas das eleições de meio de mandato, nas quais os americanos vão eleger congressistas federais e estaduais, em novembro deste ano. Quem diz isso é um dos convidados do podcast War Room, apresentado por Steve Bannon, referência da extrema-direita internacional.
– Ano que vem a gente tem França e Hungria, em abril ou maio. Depois temos Bolsonaro em outubro e então as eleições de meio de mandato [nos Estados Unidos]. Esse é o tabuleiro de xadrez. Será fascinante, correto Matthew? – perguntou Bannon.
– Se o Bolsonaro vem com uma grande vitória, a gente deve se sentir melhor para as eleições de meio de mandato – disse o comentarista político Matthew Tyrmand, membro do conselho do Projeto Veritas, uma organização conservadora que usa câmeras secretas contra grupos e indivíduos, incluindo jornalistas.
– Todos os movimentos são interconectados e interdependentes – explicou.
Bannon havia pedido ao seu convidado que explicasse a importância do ano de 2022 em episódio que foi ao ar em 24 de novembro de 2021.
Em ao menos outras seis ocasiões, Bannon colocou o Brasil ao lado de outros países que enfrentaram eleições polarizadas neste ano. Na Hungria o trumpismo saiu satisfeito, mas na França e na Colômbia a esquerda ou a centro-esquerda se mostraram vencedoras, o que torna o Brasil ainda mais importante para os planos da extrema-direita dos Estados Unidos.
– O Brasil, com essa disputa do Lula contra Bolsonaro, vai ser o último bastião de nós tentando dizer alguma coisa – disse Bannon no programa de sete de julho deste ano.
– Acho que a eleição mais importante do mundo é a do Brasil – afirmou Tyrmard em outro episódio.
– O que vai acontecer no próximo ano com os franceses e brasileiros está conectado [com o futuro dos EUA], porque as coisas tendem a acontecer de certa forma no Ocidente Cristão e Judeu – disse Bannon ao fim de 2021.
As eleições nesses países seriam tão importantes para a extrema-direita que toda a “elite global” estaria mobilizada para dar a vitória à esquerda, argumentam os comentaristas do podcast.
– Falando sobre 2022, por que o Facebook está dizendo que vai aumentar seus esforços, entre aspas, anti desinformação, para as Filipinas, para o Brasil, para a França, para a Hungria, para as eleições de meio de mandato dos EUA? É porque o Facebook está tentando moldar o mundo em sua nova ordem – disse Jason Miller, fundador da rede social Gettr.
O apresentador e seus convidados também opinaram sobre a política brasileira: criticaram o Supremo Tribunal Federal (STF), órgão que protagonizou conflitos com o atual presidente, e disseram que Lula é ligado ao Partido Comunista Chinês. O CCP (sigla em inglês para o partido) é citado em ao menos 552 episódios dos 923 analisados pela Agência Pública. O Brasil é citado em ao menos 96 episódios — desses, 94 também citam a China.
Em 12 de dezembro de 2021, Bannon disse que o STF é “cheio de comunistas declarados”, o que seria um problema, já que o tribunal “controla o mecanismo de supervisão das eleições” — na verdade, as eleições são promovidas e fiscalizadas pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
– Eles [STF] estão usando urnas que vêm da Venezuela. O povo quer cédulas auditáveis e em papel no Brasil – acrescentou o apresentador sobre o sistema eleitoral brasileiro, que nunca teve fraudes comprovadas.
Também é mentira que as urnas brasileiras venham da Venezuela, como mostrou o Estadão Verifica.
Jason Miller também criticou o tribunal no programa:
– Obviamente, meus amigos da Suprema Corte no Brasil estão tentando sufocar a liberdade de expressão. Eles não querem ver quem gosta do presidente Bolsonaro ter voz. Eles não querem que ninguém que goste do presidente Trump tenha voz – disse em 20 de outubro do último ano.
A Pública revelou que a Gettr patrocinou eventos com pré-campanha bolsonarista e levou carro de som aos atos de 7 de setembro no Rio de Janeiro, onde Miller esteve presente.
Já Luiz Inácio Lula da Silva, líder nas pesquisas de intenção de voto, foi definido por Bannon como “um gângster internacional” e o “mais corrupto de todos”. Lula é citado em 11 episódios e o nome “Bolsonaro”, em 30 — desses, 26 citam o Brasil. Bannon também se refere à família Bolsonaro como “os garotos do Brasil” (“the boys from Brazil”, em inglês).
O filho do presidente, Eduardo Bolsonaro, foi mencionado em três programas. Em entrevista à BBC, Bannon disse que dá conselhos “sobre como [desenvolver] um movimento nacionalista populista na América Latina”.
Nos trechos sobre o Brasil nos 96 episódios, a importância da reeleição de Bolsonaro para a extrema-direita (20) e o recorde de imigrantes indocumentados que entram nos EUA pela fronteira sul (19) são os temas mais presentes.
Também se destacam propagandas da Gettr (12) — feitas por Bannon ou Miller —, agradecimentos à audiência do público brasileiro (10) e propagação de informações falsas sobre a pandemia (6), como a defesa da ivermectina contra a covid-19, que não tem respaldo científico.
A Pública analisou todos os episódios do podcast War Zone em um período de cerca de um ano. O primeiro episódio que cita o Brasil data de 23 de setembro de 2021, e o último, de oito de agosto de 2022.
América Latina é o “quintal” dos EUA
A retórica do “nós versus eles” domina o podcast. Análise das transcrições dos 923 episódios feita pela consultoria de dados Novelo Data a pedido da Pública mostrou que este é o tópico mais presente. O apresentador e seus convidados dividem as pessoas em dois grupos, o deles e o de seus inimigos. A análise feita pela Novelo — chamada modelagem de tópicos — identificou que os pronomes (nós, eles, deles) se destacam no discurso ecoado pelo podcast, o que é incomum e pode indicar a importância da construção dessa dualidade para o programa.
Ao fazer a comparação entre o que eles – Bannon e seus convidados – defendem e o que seus inimigos pregam, os participantes do programa se apoiam em temáticas como a China, a guerra da Ucrânia e a fronteira sul dos EUA.
Dizem que a China está tentando “roubar” o continente americano dos Estados Unidos, o que deveria forçar o país adotar espécie de Doutrina Monroe atualizada — a Doutrina Monroe foi o marco das relações dos EUA com a América Latina desde o final do século 19, prevendo eliminar a influência de países europeus e se tornar a potência predominante no continente.
Na avaliação deles, o atual presidente dos Estados Unidos Joe Biden não estaria sendo duro o suficiente contra interesses chineses, permitindo que o maior inimigo dos EUA tomasse conta de seu “quintal”, como eles se referem à América Latina em alguns programas. A “ofensiva comunista” estaria sendo tão forte no Ocidente que o Brasil seria o último grande país que não cedeu ao regime. “Nós temos que estabilizar o nosso continente”, concluiu o apresentador em oito de janeiro deste ano.
– Se eles [chineses] conseguirem dominar o Brasil, poderão usar isso para controlar todo o continente sul-americano. Agora você tem Brasil, Venezuela e Cuba. Essa é uma linha direta para os Estados Unidos. E, claro, o CCP [partido comunista chinês] entende isso – acrescentou Jack Posobiec, editor sênior do programa, que está presente em ao menos outros três episódios que citaram o Brasil.
Bannon concordou e disse que a América Latina “é o quintal que pode virar o jardim da frente” no episódio do dia 20 de outubro de 2021>
– Eles [chineses] vão lutar para [dominar] todo o lugar.
Em 15 de janeiro deste ano, Jason Miller disse que as viagens que fez ao Brasil mostraram que “o CCP está tentando aumentar seu crescimento e influência [no país]” por meio de uma “massiva campanha de oposição contra o presidente Bolsonaro”. Miller, que aparece no programa para fazer propaganda da rede social que fundou, a Gettr, também falou sobre liberdade de expressão.
– Na América do Sul, nosso quintal, a [liberdade de expressão] está muito crítica – afirmou.
– Eles [chineses] compram as elites nesses países [latino-americanos], particularmente as elites de esquerda. O mais corrupto de todos é o Lula, o criminoso que foi pago pelo Partido Comunista Chinês pelas commodities [brasileiras] no início deste século. A corrupção é uma das razões pelas quais ele esteve preso. Ele é o criminoso nº 1 e está concorrendo contra o Bolsonaro – disse Bannon em 30 de dezembro do último ano.
Em outro episódio, o apresentador foi ainda mais incisivo:
– ula é o garoto-propaganda da esquerda marxista internacional – disse em 12 de dezembro de 2021.
– Ele roubou com as duas mãos da Petrobras e tudo mais, aí foi enviado para a prisão. Ah, [a prisão] mais tarde foi revertida por um juiz de esquerda – acrescentou.
As condenações de Lula pela Lava Jato foram anuladas pelo STF, que considerou que o juiz Sergio Moro havia sido parcial. A decisão beneficiou políticos de diversos espectros políticos.
– Lula é como o Partido Comunista Chinês. Ele faz parte de uma organização criminosa transnacional. Esses caras não são governos, são bandidos, assim como Biden – finalizou Bannon.
A retórica da suposta dominação chinesa foi reforçada pelo ex-chanceler Ernesto Araújo, único brasileiro entrevistado nos episódios analisados. Em 4 de janeiro deste ano, Araújo defendeu que “a China está em toda parte na América Latina” e controla o sistema político brasileiro.
Para enfrentar essa “guerra”, argumentam Bannon e seus convidados, é necessário ser “agressivo”, característica que tornaria Bolsonaro um exemplo de comportamento:
–É uma lição para os partidos separatistas de direita na Europa. Você tem que segurar a linha e ser tão agressivo quanto [o ex-presidente dos EUA, Donald] Trump, [o primeiro-ministro da Hungria, Viktor] Orban e Bolsonaro. Esse é o caminho para a vitória. Não seja mole – defendeu Matthew Tyrmand em 24 de novembro de 2021.
A Comissão que investiga a invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021 está de olho nas relações internacionais da ultradireita americana, segundo informou em entrevista à Pública o deputado Jamie Raskin, do partido democrata.