Compartilhamos o artigo de Lenio Streck, professor, parecerista, advogado e sócio fundador do Streck & Trindade Advogados Associados, publicado pelo ConJur, um dos principais sites jurídicos do país
A moda no jornalismo e em parte da comunidade jurídica é dizer: sou contra a anistia, mas é constitucional; já o articulista Demétrio Magnoli crava na Folha de S.Paulo: “Anistia não é legal, mas é legal”.
A discussão acerca da constitucionalidade da anistia para os golpistas condenados gera dia a dia novos elementos. Novos artigos, novas descobertas.
A nova é: sou contra a anistia, abomino-a, mas a Constituição não proíbe. A adversativa “mas”. Salvadora. Assim disse um conhecido jornalista da Globo News. Há também um advogado-professor, na mesma emissora, quem diz a mesma coisa: veja, sou contra a anistia, mas a CF não proíbe. Ah: ele também sustenta a constitucionalidade da PEC da Blindagem. Afinal, o que não é proibido é permitido…
Genial, não? Fazer o quê? Não é legal, mas é legal…!
Minha pergunta ao Demétrio e quejandos: quando, durante 2016, 17 18 e 19) discutíamos a presunção da inocência (ADC 44, 43 e 54), em que sustentávamos o cumprimento da Constituição na sua explicitude (e não na sua negativa!!!), Demétrio abominava a “clareza da CF”. Já sobre o que pensava o professor não há registros. Demétrio, por exemplo, não disse, à época, que a presunção não era legal, mas era legal… (porque ele, pessoalmente, trabalhou contra a presunção da inocência).
Relembro que Demétrio, em diversos textos e comentários públicos, argumentou que a interpretação estrita da presunção de inocência, que exige o trânsito em julgado para o início do cumprimento da pena, favorece a impunidade, especialmente em um cenário de lentidão do sistema judiciário brasileiro.
Isto é, sabemos o que você(s) fizeram no verão passado.
Sigo. Afinal, a nova moda é: se a CF não veda, quem pode proibir? Argumento insuperável, não é?
Só que a polêmica é falsa. Explico.
Vamos aos fatos: não é verdade que a CF não proíba. Aliás, há muitas coisas que a CF não proíbe. Aqui a combinação dos incisos XLIII e XLIV do artigo 5º., com o artigo 60 (cláusulas pétreas) deixa explícita a proibição. Além disso, há o artigo primeiro da CF. O poder emana do povo e não de um golpe de Estado.
Constituição é um sistema que não admite autocontradição
Porém, deixemos de lado a discussão sobre vedação explícita — porque desnecessária. A interpretação da Constituição deve estar inserida na sistemática do que se entende por Direito e sua função.
Há coisas que não precisam ser escritas. E as vezes nem estavam no radar do legislador. Por exemplo, a Código Civil de 1900 da Alemanha não falava do tráfego aéreo — afinal, o avião não havia sido inventado.
E a CF 88 não estabeleceu capítulo sobre golpe de Estado e sua punição. Interessante: a CF não proíbe golpe de Estado. Logo, seria permitido?
Nem sobre consumo de drogas. E a CF também não contém a advertência: “esta Constituição não pode se autocontradizer”. Afinal, nenhuma democracia comete haraquiri — e isto não precisa ser referido.
Por isso, não se pode admitir argumentos textualistas do tipo “a CF não proibiu anistia a quem tenta derrubar a democracia com violência, logo, é permitida”. Esse argumento é o mais raso que sem tem na hermenêutica. Chega a ser um truísmo.
Vamos exemplificar: o Direito é composto por regras e princípios (padrões interpretativos escritos e não escritos). Não está na CF e nem na lei o princípio da insignificância, mas todos os dias o aplicamos; o furto famélico não tem previsão, mas se aplica; todos os dias os tribunais aplicam o famoso venire contra factum proprium (ninguém pode se beneficiar de sua ´própria torpeza), aliás, bem encaixável para os golpistas, eis que:
cometem o crime de golpe (torpeza);
depois pedem clemência (anistia) para se beneficiarem;
subvertem a ordem constitucional e, depois, buscam recorrer à ordem constitucional para escapar às consequências de terem tentado subverter a ordem constitucional.
É acaciano.
Por isso o título deste artigo é “quando se mata os pais e depois se pede clemência por ser órfão”. Isso é velho. Começa no caso Riggs v. Palmer, nos EUA, em 1895. O neto mata o avô para ficar com a herança (havia um testamento); a lei não previa (não proibia) que alguém que matasse o testador não pudesse receber o que estava testado. O tribunal ferrou com o neto, usando o venire contra factum proprium. Não está(va) na lei nem lá, nem cá. Mas, usaram. E usamos. Pelo raciocínio dos pregadores da constitucionalidade da anistia, deveríamos parar de aplicar a insignificância e o venire contra factum proprium.
Aliás, nem o controle de constitucionalidade difuso (judicial review) estava escrito na Constituição americana. Interessante: o precedente Marbury v. Madison (1803) é o mais utilizado no mundo.
Anistia e o promotor que denunciou Gulliver por salvar a rainha: crítica ao textualismo feita já no século 18
A tese de que a anistia (qualquer delas, a ampla e a light) é constitucional porque a Constituição não proíbe (sic) é nitidamente textualista. E falsa. A literatura faz blague com o textualismo (interpretação ao pé da letra, se quiserem entender melhor). Nas Viagens de Gulliver, o promotor processa Gulliver por ter urinado no palácio. A lei dizia: urinar em prédio público, pena de morte. Ocorre que Gulliver urinou no palácio para salvar a rainha. Veja-se o textualismo raso ironizado por Swift. Se confrontado com a discussão da anistia, Swift daria belas gargalhadas sobre “anistia não está proibida, logo…”.
Shakespeare faz o mesmo, em Medida por Medida. O personagem Ângelo, que substitui o Duque, condena a morte Cláudio, usando uma lei que nunca fora aplicada, que dizia: fornicar antes do casamento, pena de morte. Logo depois, o mesmo Ângelo se transforma em um voluntarista, prometendo a libertação de Cláudio se a sua irmã com ele fornicasse.
São coisas elementares na hermenêutica. Mesmo numa perspectiva textualista-positivista — que Ferrajoli, ao rejeitá-la, chama de paleojuspositivista — a norma isolada nada quer dizer. Se há um truísmo no direito[1] é o de que não se interpreta em fatias. Já o literalismo é autocontraditório, como no exemplo da proibição de cães no parque e, com isso, o juiz possa proibir o cão guia do cego. E permitir jacarés. O princípio da não contradição aristotélico não precisa estar escrito na Constituição. E nem do regimento interno do Parlamento.
Essa discussão tem de ser feita à luz do sistema constitucional e do significado da democracia. Esses elementos é que dão o sentido às normas em debate. Há uma coisa chamada hermenêutica da função, que advém de uma junção de minha leitura de Wittgenstein, Fuller e MacIntyre. Não preciso dizer certas coisas, se o sentido advém de um raciocínio lógico. Se eu proíbo cães, tenho de ver o telos (Aristóteles). Não posso chegar ao sentido contrário ao da própria lei.
Isto quer dizer: em nome da democracia e da Constituição, não posso interpretar o fenômeno jurídico de forma antitética ao seu telos. Seria como aceitar a dar clemência ao pobre órfão que perdeu os seus país, ignorando que foram mortos pelo próprio “órfão”. Direito não pode ser um conjunto de argumentos falaciosos. Isso é antijurídico.
Nunca esqueçamos da turma que pretendeu interpretar o artigo 142 da CF, dando-lhe o sentido de que o poder moderador estava a cargo das forças armadas.
Legalismo ad hoc ou conveniente que não resiste a uma adequada hermenêutica da Constituição
Para além do equívoco propriamente dito (a CF contra a própria CF), há outro grande problema para os que defendem a tese textualista de que a anistia não está proibida é a coerência. Nas práticas jurídicas vemos, por exemplo, que o livre convencimento continua a ser praticado até mesmo para fulminar recursos das partes.
Só que o CPC expungiu a palavra “livre” do artigo 371, por emenda supressiva durante o processo legislativo! Por que, nesse caso, o textualismo não vale? Quantos embargos já foram fulminados desde 2018, quando o CPC entrou em vigor? Veja-se, assim, um exemplo que desmonta a tese exegético-textualista.
Não podemos cair em um certo legalismo de conveniência, raso e sem autoconsciência, que transporta uma espécie de “soberania do parlamento” a uma ideia de “vale tudo”. E trata isso como se fosse o “default”, óbvio, da interpretação constitucional. Não é. Porque a filosofia já demonstrou de há muito que não há subsunção. Aplicação mecânica. Logo, uma espécie de textualismo literalista deve ser defendido como argumentos, porque também é uma postura interpretativa.
Que não se sustenta. Porque é anti-histórica e anti-filosófica. Mas que fosse: que se a defendesse como o que é, uma opção teórica. Só que não o fazem. É simplesmente casuísmo. Defenderiam anistia se fosse uma invasão feita por comunistas, anarquistas, enfim? Ou, melhor dizendo, o que diriam se parlamentares de esquerda se movimentassem para anistiar invasores comunistas, anarquistas, enfim? Será que não diriam que o sentido original da Constituição proíbe? Perguntas. Cartas para o articulista e para a Coluna Senso Incomum.
Numa palavra, ainda, para além das ironias de Swift e Shakespeare sobre o textualismo e seus problemas, lembro aqui do caso de 1866 envolvendo os escravos Lino e Lourenço, na Comarca de Rio Pardo (RS) [2]; também já escrevi sobre o caso da Escrava Honorata, estuprada pelo “seu senhor”, em que o promotor supera o textualismo e denuncia o estuprador (a lei dizia que o escravo só poderia ir à juízo por meio de seu dono). É a história nos dando lições!
Post scriptum: a tal da anistia light do Paulinho da Força e o duplo haraquiri
A vergonha não está apenas na anistia 4.0 (essa que não é legal, mas é legal — sic!!). Sobre essa falei acima. A vergonha reside também na eventual ANISTIA LIGHT (anistia 1.0?), pela qual se faria (ou fará), via legislação, a redução das penas dos crimes de tentativa de golpe e abolição violenta. Um rebaixamento de nossa própria dignidade, digo eu, que ajudei a elaborar a lei de defesa.
Assim, o crime de tentativa de golpe ficaria com pena de 2 a 8 anos e o de abolição de 2 a 6 anos. Também haveria uma (inacreditável, porque bizarra) proibição (sic) de somar os dois crimes. Pergunta-se: a proibição de usar o concurso material seria só para esses crimes? Milhares de pessoas presas no sistema prisional por causa de concurso material também serão beneficiadas? Ou só os golpistas?
Explicando: no Brasil, vingando o projeto de anistia light (cujo nome foi trocado para projeto da redução das penas — sic) capitaneado por Paulinho da Força, Hugo Mota, Michel Temer, Aécio Neves, dentre outros, teremos o seguinte: tentar dar golpes de Estado ou tentar abolir o EDD acarreta uma pena do tamanho (ou até menor) do que furtar um botijão de gás entre duas pessoas. É de ri. Ou chorar. Acreditem se quiser.
A vergonha não tem limites. Trata-se de uma desmoralização do direito. Podem chamar essa redução de penas do que quiserem. É anistia o que estão fazendo! A rosa não perde seu perfume se lhe trocarem o nome. Isso é elementar. O inusitado: querem fazer revisão criminal por meio de uma lei — e isto é desvio de finalidade. Inconstitucional às últimas!
Para se ter uma ideia da bizarrice: vingando o projeto, será mais grave adulterar um chassi de automóvel em coautoria do que tentar dar um golpe. Mais: receptar animais tem a gravidade de uma tentativa de abolição violenta do Estado Democrático. Isso é a sério?
Existem mais de 700 mil pessoas presas no Brasil. Pergunto ao Paulinho da Força e ao Temer:
“Haverá redução das penas de todo esse povo? Passaremos pano para golpistas e seremos duros contra os que cometeram furtos ou roubos de celulares ou fizeram contrabando de cigarros?”
Por que não fazem logo uma PEC para retirar da Constituição a isonomia? Ah, é clausula pétrea. Pois bem. Mas por que a redução de penas, como desvio de finalidade de anistia, é possível?
Pior: o ex-presidente Michel Temer disse, em vídeo para o todo o Brasil, ao lado de Paulinho da Força e Aécio Neves, que o governo estaria a favor desse acordo. Chegou a falar que o STF estaria de acordo com esse acordo (sic). Pedro Serrano deu uma forte resposta a isso, dizendo que:
“É um imenso erro. Tenho certas críticas às nossas togas que vivem, às vezes, interferindo em assuntos que não deveriam. O papel do judiciário é aplicar a lei. Ponto. E aplicar a CF. Se há uma PEC ou um projeto de lei que seja inconstitucional , cabe ao Judiciário declarar inconstitucional. Não tem que ficar participando de negociações”.
Se é verdade o que se dito — e se o que Temer disse faz algum sentido —, tratar-se-á de um haraquiri da democracia brasileira. Não quero acreditar nisso.
Na realidade, estamos em face do perigo de dois haraquiris: uma anistia 4.0 é um haraquiri da democracia feita pelo parlamento; uma anistia 1.0, com acordo do governo, é um haraquiri governamental — que até agora não desmentiu Paulinho da Força. De todo modo, meu senso republicano não deixa acreditar, nem um pouquinho, na fala de Temer, de que haja a participação do STF. Sou um otimista.
E nada mais há a falar. Apenas que quem mata os pais não pode pedir clemência pela orfandade. Em nome da democracia, queriam o seu fim (talvez porque não está proibido pela CF acabar com a democracia!!!); agora, em nome da mesma democracia, querem o auto perdão. Bizarro.
:
[1] Cf. A Anistia e Aberração Sistêmica. Correio Brasiliense, 14 de setembro de 2025 (Lenio Streck, Pedro Serrano e Mauro Menezes).
[2] Escrevi na Revista Brasileira de Direito Civil Contemporâneo, sob o título “Dois casos na escravatura dos Estados Unidos e do Brasil: perspectivas do direito civil e do direito constitucional”, v. 16, p. 41-60, 2018.