— Quando fazemos um móvel ou uma peça em madeira, é para durar — garante Rogélio Schreiber, 58 anos.
Este é o diferencial dos irmãos Schreiber. Rogélio e Luís Ernani, de 59 anos, mantêm viva uma tradição que se confunde com a história de Morungava. Filhos do seu Adão — e não há viva alma no distrito que não o conheça —, eles formam a terceira geração à frente do Artesanato Morungava. Os irmãos garantem: será a última. Mas, se depender da força de vontade e dedicação desta dupla, vão longe.
O exemplo está em casa. Aos 84 anos, o Adão faz questão de estar na fábrica de segunda a sábado, ainda exibindo extrema habilidade em criar peças artesanais em madeira. Cabe a ele, que também herdou, junto com os irmãos, o ofício do pai, José Carlos Schreiber, emoldurar as conhecidas fachadas e peças de decoração nos ambientes montados pelo artesanato. No outro pavilhão da fábrica, está o chão do Luís Ernani, que participa da confecção, uma a uma, de cada mesa para churrasco, cepo, banco, balcão ou o que for entre móveis em madeira.
— Aos 14 anos eu comecei a trabalhar com carteira assinada com meu pai, e o meu irmão, um ano mais novo. Como todos que iniciam nesse trabalho, comecei aprendendo a usar o torno, a pintura. Hoje nós já somos aposentados e seguimos tocando a empresa — explica Rogélio, que é o responsável pelas vendas e montagens externas.
Impossível não notar o Artesanato Morungava logo na entrada da Rua Papa João XXIII, que dá acesso ao centrinho de Morungava. Ali está a loja, o estoque e as duas oficinas. O cheiro da madeira domina o ar, com o som das máquinas que moldam cada peça.
— Hoje em dia, o nome artesanato até nem é o mais adequado a tudo o que fazemos, porque tivemos que expandir bastante o nosso ramo para crescermos. A diferença é que o nosso trabalho é único, sempre sob encomenda — explica Rogélio.
O que começou com a produção de peças em madeira, hoje é uma produção não apenas de móveis, mas também de galpões, decks para piscinas, aberturas, cercas ou pergolaros. Eles também fazem casas, mas, diante da concorrência, segundo Rogélio, com produtos de menor qualidade, saíram deste ramo.
— A minha casa, nós que fizemos. E dura muito tempo mesmo. A durabilidade é motivo de orgulho para nós — resume.
: Adão Schreiber, hoje aos 84 anos, segue firme na produção artesanal | GUILHERME KLAMT
Nesta segunda, depois da conversa com a reportagem, por exemplo, ele estava pronto para partir até o distrito de Tainhas, na Serra, onde faz, desde os móveis e a decoração de uma fazenda até as baias dos cavalos e um galinheiro com todo o luxo que os bichinhos têm direito. É assim também em outra fazenda de Aceguá, na Fronteira.
São propriedades de dois dos melhores clientes do Artesanato Morungava, confirma o Rogélio.
— São pessoas que acabam ficando amigas. Contam sobre o nosso trabalho para outras pessoas e vamos aumentando o nosso alcance — diz.
Uma relação que confiança que levou o trabalho dos irmãos Schreiber até a Itália. Lá, há uma churrascaria toda feita a partir do Artesanato Morungava. Dali até vendas maiores, foi tranquilo. Até dois anos atrás, a empresa familiar viveu uma década de fartura. Foram dez anos fornecendo produtos para a rede Carrefour. Um verdadeiro fenômeno comercial em todo o país.
— O que o pessoal de São Paulo e Rio gosta dos nossos produtos, é incrível. Se dependêssemos só do Rio Grande do Sul, seria muito difícil de nos mantermos — conta o Luís.
No Brasil inteiro
A relação com a rede começou com as vendas para lojas de Porto Alegre. De repente, outros gerentes perceberam que quem tinha os produtos de Morungava vendia muito mais do que os outros no setor de bazar. Como resultado, a rede adotou o Artesanato Morungava em todas as lojas.
A fábrica chegou a empregar mais de 30 funcionários, garantindo uma carreta carregada com mesas de churrasco, bancos e cepos — os carros-chefe da produção — por semana. Em um ano, eles chegaram a vender 1,2 mil cepos em peroba.
— Um gerente de Campinas ficou impressionado. Disse que nunca viu o que nós conseguimos, que foi vender uma carreta inteira de móveis em uma semana — orgulha-se Luís.
: Mesas de churrasco são a especialidade da casa e a paixão dos paulistas e cariocas | GUILHERME KLAMT
De Porto Alegre a Manaus, cabia ao Rogélio, pessoalmente, montar o ambiente para churrasco, que inevitavelmente, virava quase uma embaixada gaúcha em todos os cantos do Brasil.
— Muitos amigos que viajam ou moram fora do Estado nos contam do orgulho que dava ver o nosso trabalho valorizado lá fora. Esse reconhecimento faz toda a diferença — comenta Rogélio.
A relação com os gigantes supermercadistas encerrou em 2017. Foi um baque, garante Rogélio, mas é também da tradição dos Schreiber resistir. Em mais de 60 anos de empresa, jamais tiveram qualquer financiamento bancário ou ajuda governamental. Na verdade, há apenas uma exceção. E ela está guardada no álbum de fotografias antigas da família.
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Lá pelo começo dos anos 1970, no segundo governo Dorival de Oliveira, o prefeito cedeu um caminhão para o seu Adão partir para uma feira em Pelotas com os guris, que já lidavam com a madeira, carregados com os produtos do Artesanato Morungava. Era o início de uma expansão que, garantem os irmãos, tornou o trabalho conhecido em todo o Rio Grande do Sul e sabe-se lá onde mais.
Hoje a empresa tem 12 funcionários e fornece para redes como o Tumelero e Redlar. Vendem a tradição e também a atualização aos tempos modernos. Todos os produtos só saem de Morungava com o certificado de madeira legal.
— Usamos somente produto certificado e madeira de reflorestamento, como pinus e eucalipto. É uma exigência dos tempos atuais e que faz com que a nossa empresa se mantenha no mercado — explica.
Os cepos, por exemplo, que eram fabricados com peroba — agora com o corte proibido —, foram adaptados para o eucalipto.
Uma hidrelétrica em Morungava
E se o cheirinho de madeira remete às coisas tradicionais e memórias do passado, nos fundos da atual oficina do Artesanato Morungava está mais do que a história do estabelecimento. Ali, fica guardada também a história do distrito. A Prainha de Morungava fazia, até anos atrás, parte do terreno dos Schreiber. Foi ali que a antiga serraria de José Carlos Schreiber começou.
O avô dos irmãos Rogélio e Luís Ernani tinha uma atafona para produção de farinha e o trabalho com toras de madeira. A atafona faliu. Prosperou o ofício que mantém os Schreiber até hoje. O lago que atualmente é lugar para banho era o local onde as toras de madeira na primeira metade do século XX ficavam mergulhadas para não estragarem antes de irem para o torno.
: A antiga serraria tinha na atual Prainha de Morungava parte fundamental da produção | GUILHERME KLAMT
Naquele tempo, a energia elétrica ainda não havia chegado a Morungava. E como era uma necessidade para a serraria, os Schreiber inovaram. A prainha se tornou uma pequena hidrelétrica.
— A partir dali, se gerava energia para a produção do nosso avô e também para as casas de Morungava. O pai conta a correria que era quando arrebentava uma correia ou acontecia qualquer problema. Todo o povoado aqui dependia dali. Era o pai que fazia a cobrança da luz dos moradores — recorda o Rogélio.
Os Schreiber estão entre as primeiras famílias que se instalaram no distrito rural de Gravataí. E a partir deles, tantas outras famílias.
— Tem guri aí que começou trabalhando aqui com a gente e hoje já é aposentado, com seus 47 anos. Gente que veio de Glorinha sem nada e conseguiu aqui o seu sustento. Tem gerente de banco que hoje está em Tramandaí e começou trabalhando com madeira aqui. Essa sempre foi uma responsabilidade nossa, que queremos manter por um longo tempo — diz.