Num planeta governado por adultos infantilizados como Trump e Bolsonaro, meninas de diferentes países lideram uma rebelião pelo clima e marcam uma greve global de estudantes para 15 de março. O Seguinte: reproduz o artigo publicado pelo El País
A luta contra o aquecimento global é hoje liderada principalmente por garotas em vários países do mundo. Estudantes secundaristas, a maioria. Mulheres muito jovens, carregando um novo espírito do tempo no mundo sem tempo, em que só há 12 anos para tentar impedir que o planeta aqueça mais do que 1,5 graus Celsius e o futuro logo ali seja uma vida muito ruim para todos, impossível para os mais pobres e os mais frágeis. Jovens mulheres com muito pânico porque os pais e avós ferraram o planeta em que vão viver e se comportam como gente mimada e egoísta que faz apenas o que quer sem se preocupar com as consequências nem mesmo para seus próprios filhos e netos. Uma parcela da espécie humana chegou a um nível de individualismo que nem mesmo protege a prole naquilo que é fundamental – e o presente se torna absoluto. De repente os mais jovens perceberam que a sobrevivência está comprovadamente ameaçada e os governantes estão brincando no Twitter.
Esse movimento de crianças e adolescentes é movido pela compreensão dos muito jovens de que os adultos não são adultos. É o que eles têm dito. “Como nossos líderes comportam-se como crianças, nós teremos que assumir a responsabilidade que eles deveriam ter assumido há muito tempo atrás”, afirmou a sueca Greta Thunberg em dezembro, durante a Cúpula do Clima, realizada na Polônia.
Ela tinha apenas 15 anos, em agosto de 2018, quando decidiu fazer um boicote às aulas todas as sextas-feiras e se postar diante do parlamento, em Estocolmo, para dar o seguinte recado: “Estou fazendo isso porque vocês, adultos, estão cagando para o meu futuro”. Desde então, Greta, uma menina de rosto redondo em que as tranças escoltam as bochechas, tornou-se uma referência internacional na luta contra o aquecimento global e tem inspirado movimentos de estudantes em vários países. Em 15 de março, planejam realizar uma greve global pelo clima.
A novíssima geração de humanos teve a extrema má sorte de nascer num momento histórico em que os pais não conseguem lidar com a questão do tempo. Os adultos atuais cresceram bombardeados pelo imperativo do consumo que prometia prazer imediato, reiniciado a cada ato de compra, num looping infinito. O tempo passou a ser um presente estendido. Tudo o que existe é o agora do qual é preciso arrancar o máximo. É este o mundo em que cidadãos foram convertidos em consumidores. É este o funcionamento dos adultos atuais num momento histórico em que o aquecimento global, comprovadamente causado por ação humana, se não for barrado, mudará a face do planeta.
Quando os mais respeitados cientistas do clima alertam que há pouco mais de uma década para evitar que a Terra se torne um planeta hostil para a nossa espécie, que é preciso mudar os padrões de consumo já e, principalmente, pressionar os líderes para tomar as medidas mais do que urgentes, a reação parece ser a de seguir mantendo o presente ativo, incapazes de enfrentar uma ideia de futuro que não seja determinada por renovações do ato de consumo no pacto capitalista do presente contínuo.
Os muito jovens perceberam que a época em que as crianças fazem só o que querem por conta de pais com problemas para educar e dar limites começa a dar lugar a época em que as crianças percebem que os pais fazem só o que eles querem porque são incapazes de aceitar que seja necessário ter limites. Mesmo limites bem pequenos, como, por exemplo, reduzir o consumo de carne a apenas uma vez por semana, já que a pecuária é uma das principais causas do aquecimento global. Ou deixar o carro em casa e usar transporte público ou bicicletas. Ou reciclar as roupas. Há quem tenha preguiça até mesmo de se responsabilizar pelo lixo que produz.
“Todos acreditam que podemos resolver a crise (climática) sem esforço nem sacrifício”, escreveu Greta Thunberg em um de seus artigos. Hoje com 16 anos, ela demonstra a lucidez que falta na maior parte dos líderes mundiais. Este é um ponto importante do movimento dos estudantes pelo clima. Apesar de apontar a dificuldade dos adultos para mudar a vida cotidiana, assim como suas escolhas e a relação fundamental com o tempo, as crianças e adolescentes sabem que esta transformação não pode ser reduzida apenas a decisão de cada indivíduo. Os estudantes têm concentrado sua pressão sobre as autoridades públicas de cada país. São essas as lideranças que têm poder para barrar as grandes corporações, taxar os poluidores, determinar políticas capazes de interromper a escalada de destruição.
Não faltam estudos mostrando o que é preciso ser feito para evitar que o aquecimento global ultrapasse o 1,5 graus Celsius, condenando centenas de milhões de pessoas à fome e à miséria e varrendo do planeta maravilhas vivas como os corais. O que falta é fazer o que precisa ser feito, assim como cumprir os acordos já existentes. Se os avanços em escala global já eram difíceis antes, a recente ascensão de líderes de extrema direita em países estratégicos, como Donald Trump e Jair Bolsonaro, tornaram a situação desesperadora.
Esta também é uma característica da novíssima geração que está indo às ruas pelo clima. São crianças e adolescentes – e não são ingênuos. Em janeiro, no Fórum de Davos, na Suíça, Greta também não mediu palavras ao falar à plateia composta pela elite econômica global: “Algumas pessoas, algumas empresas, alguns tomadores de decisão em particular, sabem exatamente que valores inestimáveis têm sacrificado para continuar a ganhar quantias inimagináveis de dinheiro. E eu acho que muitos de vocês aqui hoje pertencem a esse grupo de pessoas”.
O que as crianças e adolescentes deste movimento crescente dizem é que, se quiserem ter onde viver, vão precisam tomar conta do mundo. Para contar. Já que os adultos que destroem o planeta não as contam.
Nunca houve nada parecido na história. Em nenhuma história. Os filhotes tentam salvar o mundo que os espécimes adultos destroem sistematicamente. Para além dos efeitos concretos sobre o futuro da humanidade, serão necessários muitos anos de estudos para compreender os efeitos desta inversão sobre a forma de compreender o mundo e seu lugar no mundo daqueles que serão adultos amanhã. Mas, para isso, é preciso antes ter amanhã.
O Brasil é o país mais biodiverso do planeta. Tem no seu território a maior porção da maior floresta tropical do mundo. Deveria estar na vanguarda do combate ao aquecimento global e à perda avassaladora de biodiversidade. Deveria ocupar seu lugar estratégico e se colocar na vanguarda de todos os movimentos pelo clima. Deveria. Mas não está.
E não está porque, depois de governos inconsequentes e estúpidos diante da crise climática, à esquerda e a à direita, o país tem hoje um governo de extrema-direita que, além de ser inconsequente e estúpido, também contém uma parcela de alucinados. O governo militarizado de Jair Bolsonaro pode conduzir o Brasil para o abismo. E, dada a importância da floresta amazônica, arrastar o planeta com ele.
É preciso ser muito claro neste momento e afirmar com todas as vogais e consoantes disponíveis que uma parcela do governo Bolsonaro é composta por gente que usa o poder de forma perigosa. Gente que brinca de guerra. Gente que brinca de arma. Gente com delírios de grandeza e desejo de destruição. Gente que tem tanto medo dos próprios demônios que enxerga o diabo em toda parte, de preferência no outro. Gente que enaltece torturadores, chama ditadores de estadistas e dá medalhas a milicianos.
Essa realidade fez com que o governo cada vez mais militarizado de Bolsonaro – já são oito os militares no primeiro escalão, sem contar o vice e o porta-voz, e dezenas contando os demais escalões, e crescendo… – criasse uma nova anomalia no Brasil. Depois de passar por uma ditadura de 21 anos, em que os generais permitiram e/ou ordenaram a tortura, o sequestro e o assassinato de civis, muitos ainda hoje desaparecidos, a cada vez que é anunciado um novo general no governo, mais gente sente alívio. A situação no Brasil chegou a um ponto – e com apenas dois meses de governo Bolsonaro – que qualquer pessoa com aparência de adulto e aura de autoridade gera alívio mesmo que apenas alguns meses atrás gerasse pânico naqueles que sempre defenderam a democracia.
Dias atrás uma amiga de esquerda, com histórico familiar de repressão na ditadura, me contava, assustada consigo mesma, que se acalmava a cada vez que o general Hamilton Mourão abria a boca. Não é a tal Síndrome de Estocolmo, mas o fato de que a certeza de estar na mão de perversos, de adultos infantilizados, de um pai que deixa os filhos brincarem de governarem o país porque também brinca de governar o país tornou a realidade muito apavorante. Como os generais em geral falam frases com sentido, além de sujeito, verbo e predicado, e mesmo que seja um sentido do qual se discorde, até pessoas críticas têm se agarrado a esses fiapos de sanidade para conseguirem dormir à noite.
Não se pode esquecer, porém, uma possibilidade e um fato. É possível que os generais também não estejam dormindo à noite, pensando em como manter a imagem das Forças Armadas a salvo num governo em que Bolsonaro parece ser menos controlável do que acreditavam, e agora que já se tornou tarde demais para dissociar a imagem das Forças Armadas da aventura arriscadíssima que é um governo Bolsonaro.
E é um fato que a política desastrosa para a Amazônia ganhou um corpo e um rosto justamente no projeto e na propaganda da ditadura militar, nos anos 70, quando a floresta teve grandes porções destruídas e povos indígenas dizimados para abrir estradas, construir hidrelétricas e implantar grandes plantas de mineração. Esse mesmo imaginário do “deserto verde” ou “da terra sem homens para homens sem terra”, dois dos slogans da ditadura que permanecem até hoje, nos quais os povos da floresta são considerados não humanos, é ainda o que norteia os discursos do governo Bolsonaro, intimamente conectado com o agronegócio predatório que pretende avançar ainda mais sobre a Amazônia.
O modo de operação pouco familiarizado com a democracia dos militares se revelou, mais uma vez, na preocupação com o encontro que o Papa Francisco vai realizar no Vaticano, em outubro, para debater a Amazônia com 250 bispos. Como revelou a jornalista Tânia Monteiro, no jornal O Estado de S. Paulo, os militares do governo militarizado de Bolsonaro temem que o “clero progressista” da Igreja Católica possa se tornar uma referência de oposição, ocupando o vácuo deixado pela incapacidade de articulação da esquerda pós-PT.
Os militares decidiram agir para impedir que críticas ao governo Bolsonaro ganhem fórum internacional no sínodo que vai debater durante 23 dias a crise climática causada por desmatamento e as ameaças aos povos da floresta. Uma das ações será tentar convencer o governo italiano a interceder junto à Santa Sé para evitar ataques diretos à política ambiental e social do governo brasileiro durante o Sínodo sobre Amazônia.
Entre os temas do encontro global, um assunto causa particular preocupação num governo que pretende tornar comercializáveis as terras públicas de usufruto exclusivo dos indígenas: “ O grito dos índios é semelhante ao grito do povo de Deus no Egito”. Segundo o Estadão, o general Augusto Heleno, ministro chefe do Gabinete de Segurança Institucional e supostamente o adulto com mais influência sobre o garoto Bolsonaro, saiu-se com essa: “Estamos preocupados e queremos neutralizar isso aí”. E ainda essa: “Achamos que isso é interferência em assunto interno do Brasil”.
Como é fácil perceber, ainda que os generais no governo militarizado de Bolsonaro demonstrem capacidade cognitiva, o que é um alívio no quadro de indigência intelectual do ministério, claramente estão desconectados dos desafios da crise climática. Também eles demonstram acreditar viver num mundo que já não existe. Parecem tão preocupados em apagar sua intervenção criminosa no passado recente que se tornaram incapazes de enxergar o futuro logo adiante.
A Amazônia é assunto do planeta porque, sempre que o Brasil destrói a floresta, reduz as possibilidade de controlar o aquecimento global. Tanto é assunto do mundo que o Brasil recebe bilhões de reais da Noruega e da Alemanha para manter a floresta em pé. Não fosse esse dinheiro, nem mesmo atividades básicas de fiscalização do Ibama teriam sido executadas no ano passado.
Em nota, o Gabinete de Segurança Institucional, comandado pelo general Augusto Heleno, fez uma afirmação digna do famoso slogan da ditadura para a Amazônia – “Integrar para não Entregar”: “Parte dos temas do referido evento (Sínodo da Amazônia) tratam de aspectos que afetam, de certa forma, a soberania nacional. Por isso, reiteramos o entendimento do GSI de que cabe ao Brasil cuidar da Amazônia Brasileira”. O planeta realmente espera que o Brasil cuide da Amazônia, e espera há bastante tempo. Os povos da floresta, que são quem melhor cuida, em geral contra os interesses dos diferentes governos no poder e apesar dos sucessivos massacres, também esperam que o Brasil decida cuidar da Amazônia.
Se o Governo Bolsonaro quiser acionar a manipuladora ideia da “ameaça à soberania nacional”, pode começar suspendendo os grandes projetos de mineradoras estrangeiras na Amazônia
Se o governo militarizado de Bolsonaro quiser acionar a manipuladora “ameaça à soberania nacional”, os tais “gringos que estão invadindo a Amazônia”, que peçam antes ao presidente para suspender a presença das corporações transnacionais na Amazônia, assim como os projetos destruidores. Pode começar com a gigantesca exploração de ouro da mineradora canadense Belo Sun na Volta Grande do Xingu, uma catástrofe anunciada que teve como consultor o general Franklimberg Ribeiro de Freitas, hoje mais uma vez à frente da Fundação Nacional do Índio (Funai), num evidente conflito de interesses que, como de hábito, foi ignorado. Os povos da floresta agradecerão. Os brasileiros urbanos conscientes também.
Enquanto no Brasil é preciso debater os destinos da Amazônia neste nível primário, como se ainda vivêssemos no século 20, os estudantes se organizam para lutar pelo planeta, dando lições de cidadania a governantes muito mais velhos. Em novembro, 15 mil estudantes australianos boicotaram as aulas para dizer às autoridades públicas que era obrigatório combater o aquecimento global. O primeiro-ministro australiano, Scott Morrison, reagiu mal: “O que queremos nas escolas é mais aprendizagem e menos ativismo”. Algo que podemos imaginar Bolsonaro dizendo com ainda piores palavras, talvez ameaçando mandar os estudantes para a “ponta da praia”, como ele costuma mencionar, referindo-se ao lugar clandestino onde eram torturados e assassinados os opositores mortos pelo regime de exceção que ele tanto exalta.
Os jovens australianos responderam ao seu ministro com um cartaz nas ruas: “Nós seremos menos ativistas se vocês fizerem menos merda”. As manifestações de estudantes exigindo ações dos adultos diante da crise climática multiplicaram-se, especialmente na Europa, chegando a ter dezenas de milhares de manifestantes em países como Bélgica, Holanda, Alemanha, Suíça e França.
No centro dos numerosos protestos da Bélgica está uma adolescente de 17 anos chamada Anuna De Wever. Inspirada num vídeo gravado por Greta, no qual a sueca estimulava os estudantes a fazer uma greve climática diante da inércia dos adultos, ela e sua melhor amiga gravaram seu próprio vídeo. Como contou ao BuzzFedd News, esperavam apenas 20 pessoas num protesto marcado para o início de janeiro. Apareceram 3.000. E os protestos cresceram até dezenas de milhares semana após semana.
A ministra do meio ambiente da Bélgica mentiu aos estudantes e ao país, afirmando que os serviços de inteligência haviam informado que os protestos eram um complô para derrubá-la. Foi obrigada a reconhecer a mentira e a renunciar. Às autoridades desconcertadas, que tentaram justificar sua incompetência diante do maior desafio global cobrando dos manifestantes estudo e disciplina, os estudantes responderam com um cartaz bem objetivo: “Eu farei a minha lição de casa quando você fizer a sua”.
Quando se afirma que o governo Bolsonaro é uma vanguarda do atraso, é importante ter a dimensão de que a qualidade das lutas também determinam – e muito – a qualidade do país. Há vários anos o debate tem sido não só interditado como desqualificado no Brasil, o que é outra forma de interdição. Na semana passada, alunos e professores de escolas de vários países fizeram um protesto pela falta de conteúdos ligados à crise climática, o tema que deveria atravessar todos os outros também na sala de aula. “Ensine a verdade”, diziam os cartazes. Ou: “Nossas crianças podem lidar com a verdade. Você pode?”. Um professor comentou, durante a manifestação em Londres: “Às vezes me pergunto: qual é o sentido de ensinar quando ninguém está ensinando a verdade sobre o futuro?”.
No Brasil, os estudantes das escolas públicas precisam se rebelar para ter ensino com qualidade mínima e respeito aos seus direitos mais básicos, como aconteceu em 2015 e 2016. Os alunos brasileiros têm um dos piores desempenhos do mundo em disciplinas como português e matemática. E a maioria dos professores não ganha o suficiente sequer para viver com dignidade, quanto mais para se atualizar e estudar.
Nos dias atuais, porém, nem mesmo essa luta básica, óbvia, é possível travar, porque há que se preocupar com os falsos problemas. Um grupo de delirantes e/ou oportunistas decidiu inventar que o problema das escolas era ideologia de gênero e outras bobagens inventadas por ideólogos de extrema direita. Criaram, entre outras aberrações, o Escola Sem Partido, um projeto autoritário que toma o partido do que há de pior num momento em que todos deveriam estar concentrados nos problemas reais que arrancam as possibilidades de milhões de crianças e adolescentes brasileiros. Para conseguir o que querem mentem, criam notícias falsas como as mamadeiras com bico em formato de pênis, professores ensinando crianças a fazer surubas, a falta de caráter dessas pessoas não encontra limites. E o governo não é o limite, porque hoje eles são governo.
Assim, em vez de lutar pela educação para enfrentar a crise climática, como estão fazendo os estudantes de países de outras partes do mundo, exigindo ciência e pensamento de qualidade nas escolas, no Brasil é preciso lutar para que a teoria científica da evolução de Charles Darwin, base para a compreensão das espécies e de muito do que foi possível compreender sobre a vida desde então, continue a ser ensinada como aquilo que é, uma teoria científica – e não uma teoria alternativa ao mito religioso do criacionismo. Os cada vez mais numerosos fundamentalistas evangélicos deveriam abrir mão dos medicamentos que salvam suas vidas e dos celulares onde espalham seu ódio antes de equiparar a ciência à religião, desrespeitando a ambas.
Em vez de concentrar todos os esforços do país em melhorar a qualidade da educação, Bolsonaro está preocupado em censurar as questões do ENEM. O ministro da Educação manda um email para as escolas dizendo que os alunos precisam cantar o hino nacional no início do ano letivo, os professores devem ler uma carta que termina com o slogan da campanha de Bolsonaro e a direção deve gravar o momento despachando um trecho do vídeo para Brasília. A ministra da Mulher diz que meninas vestem rosa, meninos azul. O ministro das Relações Exteriores afirma que o aquecimento global é um complô da esquerda. O ministro do Meio Ambiente diz que a discussão sobre “se há ou não aquecimento global é secundária”. O “secundária” já seria terrível, mas ele ainda coloca dúvida sobre aquilo que é um consenso científico mundial e que cada um já consegue perceber no seu cotidiano.
Os debates importantes, os que realmente podem representar avanço para o país, têm sido adiados porque é preciso se defender dessa gente que lança frases sem lastro na realidade, mas que hoje têm poder para afirmar mentiras como verdades. As melhores mentes do país são obrigadas a concentrar esforços em descobrir uma maneira de impedir que delírios virem lei. E enquanto isso o Brasil perde e perde e perde. Já não é mais nem pelo básico que se luta, mas para impedir que a realidade seja convertida num delírio. Luta-se também para que as palavras recuperem seu significado.
Os estudantes brasileiros, pela importância do Brasil na redução das emissões de gases que provocam o aquecimento global, deveriam ter protagonismo na greve climática marcada para 15 de março. Mas até este momento não têm. Porque vivem num país em que os adultos no poder são tão precários, mas tão precários, que é preciso explicar para o ministro do Meio Ambiente que não há nada mais importante neste momento histórico do que saber quem é Chico Mendes. É preciso ficar repetindo e repetindo o óbvio para que a estupidez não vire inteligência.
Os estudantes suíços, por exemplo, estão exigindo que nenhuma escola use aviões em suas excursões de estudos, já que voar tem grande impacto sobre o meio ambiente. A própria Greta, que parou há anos de comer carne e de comprar qualquer coisa que não seja absolutamente essencial, deixou de voar em 2015. Desde que a filha começou a se preocupar com a crise climática, sua mãe, uma famosa cantora de ópera, desistiu da carreira internacional por conta da pegada de carbono da aviação. A pergunta é óbvia: como debater questões como estas, num país como o Brasil, em que estudantes têm dificuldade para chegar à escola por falta de transporte?
Talvez começando por entender que é obrigatório debater. Acreditar que a crise climática é um tema para estudantes ricos de países ricos é um erro. E um erro perigoso. Enfrentar a crise climática não é luxo, é necessidade urgente de todos. Nada aumentará mais a desigualdade e atingirá os mais pobres do que a crise climática. O aquecimento global atravessa todos os temas e todas as áreas, inclusive a racial e a de gênero. No Brasil, possivelmente as mais afetadas serão as mulheres negras, o contingente mais frágil e oprimido da população. É isso que as crianças e adolescentes estão dizendo. Mas, também por deficiência de educação, e não só nas escolas públicas, a maioria dos estudantes brasileiros tem dificuldade para fazer as conexões e compreender que, ao lutar pela floresta amazônica, estará lutando pela redução da desigualdade e por mais acesso aos recursos e às políticas públicas.
Nos Estados Unidos, por exemplo, a greve pelo clima de 15 de março está sendo organizada em sua maioria por meninas, muitas delas negras. A Organização Mundial da Saúde já mostrou que as mulheres serão as mais atingidas pelos desastres naturais causados pelo aquecimento global e também serão as mais atingidas porque em muitas sociedades ainda cabe a elas a responsabilidade de conseguir água, energia e alimento. São também as mulheres as primeiras a perderem oportunidades quando os recursos naturais se tornam escassos. “Se você é vítima de um sistema de opressão, você é mais afetado pela crise climática. E isso vale para as mulheres", disse Jamie Margolin, uma ativista climática americana de 17 anos, ao BuzzFeed News. “Temos que nos levantar e levantar nossas vozes.”
Há uma particularidade que torna o enfrentamento da crise climática ainda mais difícil no Brasil. O crescimento acelerado dos evangélicos neopentecostais nas últimas décadas fortaleceu a crença no apocalipse bíblico. Para uma parcela deles, que apoiou massivamente a eleição de Bolsonaro, as catástrofes provocadas pelo aquecimento global não foram causadas por ação humana, mas sim estão previstas na Bíblia como os acontecimentos que prenunciam o Armagedom. Ou, mesmo que tenham sido causadas por ação humana, já estava escrito. É bastante possível que seus líderes não acreditem nisso, apenas usem uma interpretação literal da Bíblia para melhor controlar os corpos e barganhar poder. Mas há uma massa de fiéis que acredita. E que cresce.
Tudo o que pode ser visto como catástrofe climática causada pelo uso de combustíveis fósseis, para essa linha do evangelismo é apenas cumprimento da profecia bíblica. São eles que pressionam para mudar a embaixada do Brasil em Israel para Jerusalém, porque esta cidade seria o palco do Armagedom. Mais uma vez é preciso sublinhar que os articuladores desta ideia têm interesses bem mais imediatos e mundanos, que revestem com uma retórica bíblica para santificar o que é totalmente terreno.
Não é permitido esquecer que Bolsonaro foi batizado no Rio Jordão, em Israel, em 2016, e que pastores como Silas Malafaia promovem excursões para Israel. Para esta camada de evangélicos que só cresce no Brasil, a catástrofe é bem vinda, já que eles têm certeza que serão salvos porque são os únicos puros. Salvar-se, portanto, seria apenas uma questão de ter a fé certa. A deles, claro. Como então demandar razão neste país? Talvez seja preciso avisá-los que o rio Jordão está se tornando mais e mais estreito devido à seca causada pela crise climática. Se o processo continuar, logo será preciso encontrar outro rio para batismos espetaculares.
Se as novas gerações (e também as velhas) dos povos da floresta fossem escutadas, elas poderiam dar aula para os estudantes que se rebelam pelo clima na Europa. Também na Amazônia o protagonismo das mulheres nas lutas de indígenas, quilombolas e beiradeiros é cada vez maior – e as lideranças são cada vez mais jovens. O profundo conhecimento dos povos da floresta, imprescindível para enfrentar a crise climática, e a rebelião que sua luta representa, porém, têm sido sistematicamente caladas. O projeto de Bolsonaro, como ele afirmou várias vezes, é que indígenas e quilombolas se tornem “ser humano como nós”. Se o “nós” é ele, pode se imaginar o ganho de conhecimento que as gerações da floresta terão.
Sem a maior floresta tropical do mundo, a vida humana no planeta não tem nenhuma chance. No Brasil, como nos outros países amazônicos da América Latina, os povos da floresta estão lutando quase sozinhos para mantê-la em pé. E morrendo. Os filhos destes lutadores têm precisado assumir a luta dos pais assassinados. As jovens garotas que lideram a rebelião dos estudantes pelo clima na Europa têm o desafio de fazer a ponte com as jovens garotas da floresta amazônica, o centro geográfico onde o futuro próximo está sendo disputado. E vice-versa.
Greta Thunberg e Anuna De Weve, duas das principais lideranças estudantis na Europa, trazem muitas novidades ao ativismo climático. Greta, a garota que inspirou dezenas de milhares de estudantes a se unir pelo clima, tem diagnóstico de transtorno espectro autista. Embora não tenha sido esse o objetivo, seu ativismo pelo clima mostra a potência política de uma diferença. Em entrevista à revista NewYorker, ela disse: "Eu vejo o mundo um pouco diferente, a partir de outra perspectiva. Tenho um interesse especial. É muito comum que as pessoas, no espectro do autismo, tenham um interesse especial. Posso fazer a mesma coisa por horas”. Ou por anos, como já ficou provado.
Anuna é menina na certidão de nascimento, tornou-se menino durante a escola fundamental e hoje se define como “gênero fluido” e prefere os pronomes femininos. Ela relaciona a luta pelo clima diretamente com a identidade de gênero. Aquilo que para muitos é imutável, para ela é possível mudar, percepção que parte da sua própria experiência de ser. "Ter gênero fluido sendo jovem faz com que eu veja o mundo um pouco diferente", disse. "Eu não olho para o mainstream e o que eles pensam. Começo a ter meus próprios valores, princípios próprios, e penso no que não está dando certo neste mundo e o que posso fazer e melhorar em vez de apenas fechar os olhos.”
Velhos ativistas do clima estão perplexos – e animados. “O movimento que Greta lançou é uma das coisas mais esperançosas em meus 30 anos de trabalho na questão climática. Ele lança o desafio geracional do aquecimento global e desafia adultos a provar que são, na verdade, adultos”, disse Bill McKibben, fundador da 350.org, ao The Guardian.
Num mundo em que as decisões ainda são majoritariamente tomadas por homens, as garotas levantaram a voz. Os milhares de meninos de sua geração que vão para a rua com elas não parecem ter problemas com o protagonismo feminino dos protestos. Meninas como Greta, Anuna e outras tantas, porque elas são muitas, não querem ocupar o lugar dos adultos. Não é disso que se trata. O que elas querem talvez seja ainda mais difícil. Ao denunciar a infantilização dos governantes, ela reivindicam que os adultos se “adultizem”.
O afiado cronista brasileiro Nelson Rodrigues, que era também um exímio frasista, ao ser perguntado que conselho daria aos jovens, disse: “Envelheçam!”. As crianças que estão sendo obrigadas a tomar conta do mundo dizem hoje aos adultos: “Cresçam!”.
Chegamos a este ponto: as crianças precisam pedir aos adultos que sejam adultos. Que tenham limites e se responsabilizem. Ou, em suas palavras: “Parem de cagar no planeta em que vamos viver”.