Junho recém começou e a ebulição política em Canoas não só antecipa a eleição como impõe ao governo uma agenda na Câmara além da crise; reconstruir a cidade, agora, também passa por um rearranjo político — torçamos para que em bases bem mais republicanas
A ‘segunda sem fim’ em que este 3 de junho se transformou — e ainda não acabou — vai manter-se na memória política da cidade por muito tempo. Foi o dia em que a oposição que começou lá em 2022 sob a solitária voz de Juares Hoy, então no PTB, pedindo o impeachment de Jairo Jorge, e se estendeu madrugada a dentro com muita conversa ao pé do ouvido depois que sete vereadores assinaram um pedido de CPI para investigar decisões do prefeito na crise da enchente.
Sete que podem virar nove, promete outro personagem deste fatídico dia: Márcio Freitas, do PRD.
Aos fatos, primeiro.
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Ainda no final de semana, o placar pró-CPI era desfavorável a ela. A oposição contava com apenas seis assinaturas para o requerimento que pede a instalação da investigação: além de Juares e Márcio, Jonas Dalagna (PP), Leadrinho (PRD), Airton Souza e Abmael Oliveira, do PL, defendiam a medida. “É o povo que quer”, repetiam, sem cansar, numa espécie de repique do mantra ‘o povo pelo povo’, visto à exaustão nos megafones virtuais das redes de extrema direita desde os primeiros dias da enchente de maio.
Cabe, aqui, o comentário. A CPI é política — e não deixará de sê-la mesmo que tenha a adesão das pessoas, ou do povo, para usar a palavra do momento. A quatro meses da eleição, no último ano de um mandato de idas e vindas com prefeito que sai e vice que entra para depois sair e voltar o primeiro, coroado ao avesso por uma enchente que a História registrará como uma das maiores tragédias climáticas em meio urbano de todos os tempos, este é inequivocamente o pior momento da popularidade de Jairo Jorge. Uma coisa mais a outra e temos o momento crucial em que a oposição e a CPI proposta por ela ganha a sétima e derradeira assinatura para uma verdadeira chacoalhada no tabuleiro político a menos de um dia de nos livrarmos, de vez, da água da enchente sobre os bairros Fátima e Rio Branco.
Faz lembrar a história da decapitação de Luís XVI em 1793 na França, mas isso é coisa para mais adiante.
15h05: habemos CPI
Exatamente às 15h05, Juares Hoy protocolou no sistema eletrônico da Câmara de Canoas o requerimento para instalação da CPI da Enchente. Eric Douglas, do União Brasil, que vinha mantendo contato com a oposição mas com certa resistência à CPI por considerar que pudesse ser usado para uma manobra política, aderiu.
Diferente do que vem circulando nas redes sociais de alguns líderes do movimento, notadamente candidatos e pré-candidatos conservadores, a criação da comissão de investigação não precisa ser votada. O regimento interno da Câmara, que regulamenta o artigo 33 da Lei Orgânica do Município, entende a CPI como um instrumento da minoria; basta dois requisitos para que seja formalmente proposta: sete assinaturas e um fato determinado.
O requerimento de Juares propõe três — um, a bem da verdade, mais amplo do que específico.
Conforme o documento, a CPI precisa investigar as ordens de evacuação dadas a moradores do bairro Rio Branco. Baseados nos vídeos compartilhados pelo prefeito em suas redes sociais; a retirada de pacientes internados no Hospital de Pronto Socorro de Canoas entre a sexta, 3 de maio, e a o sábado, 4; e os contratos feitos pelo governo para combate à cheia e limpeza da cidade. Somados, estes contratos atingem a cifra de R$ 127 milhões.
Esta questão dos contratos, reputo, é ampla para uma CPI. Em tese, a existência de um contato não é motivo para investigá-lo; essa atribuição, aliás, cabe ao Tribunal de Contas do Estado e aos demais órgãos de controle do dinheiro público, inclusive o Ministério Público e, eventualmente, a Polícia. Precisaria, então, algum indício de que algo está irregular para ser investigado — o tal ‘fato específico’.
Mas isso é tese.
Com sete assinaturas e a perspectiva de mais apoio, especialmente do vereador Adriano Agitasamba, do Avante, a CPI decola nesta terça, 4, com um plenário lotado — mesmo que não tenha sessão por lá.
A volta do online
Com a confirmação de que a CPI tinha as assinaturas necessárias para ganhar vida, a bancada aliada ao paço — que já vinha monitorando o assunto e a repercussão dele nas redes sociais —, tomou providências. A primeiras delas foi apresentar ao presidente da Câmara, Cris Moraes (PV), um pedido com 12 assinaturas para que as sessões passam a ser online desta terça em diante.
O argumento é a segurança.
Com a mobilização proposta pelas lideranças pró-CPI, há o temor de tumulto durante a sessão. Terça passada, 28 de maio, Cris teve que encerrar os trabalhos por que as galerias lotadas impediam tornavam impossível a manifestação de quem não fosse a favor da investigação.
A medida não impede a instalação da CPI que, repito, sequer precisa ser votada. Mas já deu pano para manga para que os vereadores que a apoiam fossem chamados de ‘medrosos’ nas redes — nem sempre com a ‘fofura’ deste blog.
Assinaram o requerimento para as sessões online os vereadores Emílio Neto e Maria Eunice, do PT; pastor Duarte e Link, do Republicanos; Jefferson Otto e Patteta, do PSD; Laércio Fernandes, do Podemos; Patrício e Aloísio Bamberg, do PSDB; Cézar Mossini, do MDB; Alexandre Gonçalves, do PDT; e Gilson Oliveira, do Democracia Cristã — outro cotado para um racha na base e eventual apoio à CPI, formando os tais 9 que Márcio afirma ter.
O procedimento da CPI
Sem necessidade de votação, a CPI precisa ser apenas instalada por determinação da presidência, o que deve acontecer na sessão desta terça, 4 — repito, mesmo que seja de forma online. A oposição manteve o pedido para que o público se mobilize e vá ao prédio da Câmara às 9h, quando a sessão está marcada para iniciar, e promete participar de forma presencial, do plenário, das discussões virtuais.
Uma vez instalada, a CPI deve ser formada com base no artigo 22 do Regimento Interno da Câmara que, por sua vez, regulamenta o artigo 33 da Lei Orgânica. Ambos determinam que a comissão terá sete integrantes — mas não sãos mais claros sobre como será a escolha destes integrantes, nem sobre a presidência ou relatoria do feito.
Pela praxe, que é como o Direito define as normas não escritas mas praticadas por tribunais, a presidência caberia ao primeiro proponente da CPI — no caso, Juares Hoy. É assim na Assembleia Legislativa, é assim no Congresso. Mas como não está claro no regramento canoense, pode haver um entendimento diferente.
Sobre a composição da CPI, o regimento prevê que as demais comissões sejam proporcionais às bancadas. Se esta regra for seguida, temos na Câmara, hoje, 7 partidos com 2 vereadores cada e 7 partidos com 1 cada.
Nesta lógica, PL, PP, Republicanos, PSDB, PSD, PT e PRD indicariam integrantes à comissão; DC, PV, MDB, União Brasil, PDT, Podemos e Avante, não.
A decisão sobre isso, salvo a hipótese improvável de um acordo, caberá à maioria, em votação no plenário.
Tudo, enfim, é política
Ninguém se surpreenda se a CPI for parar no tapetão — nos próximos ou mais distantes dias. É a política que, em Canoas, frequenta os tribunais como se de casa fosse.
Politicamente, a oposição está empoderada com a inegável vitória sobre o paço — que é a própria criação da CPI. E com 7 ou 9 votos em plenário, parece cedo para determinar que levará à cassação de Jairo Jorge — ao fim e ao cabo, a intenção nem tão oculta de 10 em 10 líderes políticos que falam ‘em nome do povo’ nas redes sociais.
O lado bom da moeda deste empoderamento é dar à Câmara — e à própria oposição — um protagonismo na crise. O lado ruim é exatamente este protagonismo — ou o uso dele, melhor dizendo. A Câmara e a minoria dentro dela tem o dever e o direito de investigar o que presume errado; e como já disse em mais de um tuíte e até aqui no blog, reputo que seria uma atitude de grandeza do governo explicar o que houve no HPSC, pelo simples fato de que as dúvidas existem.
A democracia é o regime da vaia; o autoritarismo nefasto é que só admite os aplausos. Mas aqui devo retomar a história da decapitação de Luís XVI, durante os anos finais da Revolução Francesa. Uma crise econômica arrastada levou as classes populares à uma improvável aliança com a burguesia para combater a aristocracia. Mas os interesses de cada um eram, de fato, diversos; derrubar o regime os unia, não o futuro. Daí surgiu o chiste de que ao capturarem o rei, Luís XVI, o povo gritou ‘prende!’, a burguesia disse ‘mata’ e as elites entenderam ‘guilhotina’.
É uma piadinha e, nem por isso, menos reveladora.
O risco da CPI, ou o lado oposto da moeda do protagonismo de oposição, é vermos uma discussão sobre revanchismo político e não sobre o futuro da cidade — ou sobre os erros eventualmente cometidos durante a crise da enchente. Não são os personagens da Câmara que me fazem temer o risco, mas a proximidade da eleição. É um momento em que muitos enxergam que tem algo a ganhar, que não podem perder, que agora é a hora de mostrar força, e por aí vai.
Lá fora do palacinho, em todo o lado Oeste da cidade, o povo que não merecia a enchente segue limpando suas casas e mastigando revolta, descontentamento e até desilusão. Fico na dúvida se vamos acordar a tempo de ver que não há, aqui, heróis e vilões porque a enchente não é uma guerra; trata-se de uma tragédia e, como tal, precisa ser tratada. Não será apenas ‘um dia difícil’ em nossas vidas, mas um longo tempo de dificuldades. Um tempo duro, intenso, prolongado. Uma crise dilatada que nossa geração jamais sentiu ou viveu.
Com CPI ou mesmo antes dela, reputo que nossa classe política precisa estar a altura deste desafio: ser uma cidade melhor depois da enchente requer resiliência do povo, mas também grandeza de nosso líderes.