BLOG DO RODRIGO BECKER

CANOAS | Há um ano, a chuva vinha para encher metade da cidade

Ponto de resgate dos atingidos pela enchente no viaduto da Mathias Velho: voluntários aguardavam barcos que vinham carregados de flagelados naqueles primeiros dias de maio de 2024. Foto: Bruna Ourique/PMC

Enchente histórica atingiu mais de 6 metros de profundidade em pontos do Mathias Velho nos primeiros dias de maio de 2024

2 de maio de 2024. Esse foi o dia do “go-no-go” da enchente histórica que viria nos horas seguintes e poria embaixo d’água metade de cidade de Canoas. 

“Go-no-go” é um termo utilizado na aviação e herdado apropriadamente pelos engenheiros calculistas da Nasa para indicar o ponto exato em que um evento crucial não pode mais ser revertido. Uma decolagem, por exemplo: há um momento que combina velocidade e distância percorrida de pista a partir do qual não se pode mais cancelar o ato de levantar vôo. O “go-no-go” da enchente foi na noite de 2 de maio, uma quinta-feira de muita chuva, quase no dia 3, quando a água no Rio dos Sinos já se aproximava da cota de 5,35m e ameaçava extravasar os diques de proteção da cidade. A partir dali, a enchente era uma questão de horas.

A chuva sobre Canoas começou no dia 29 de abril, segunda-feira. Dois dias antes, no sábado, 27, o então prefeito Jairo Jorge terminava a 373ª edição do Prefeitura na Rua no bairro Mathias Velho quando recebeu uma ligação do secretário de Resiliência Climática, José Fortunati. Era quase uma da tarde. Ele estava de posse dos dados da previsão do tempo e de um relatório da metereologista Estael Sias que indicava condições severas para o clima na semana seguinte. Críticas, até. “Naquela altura, a previsão era de 200mm de chuva em Canoas. Só que choveu 400mm”, lembra JJ.

Na segunda, ainda sem condições de antecipar o que viria até o final da semana, o prefeito decidiu cancelar os eventos programados para o Dia do Trabalhador, a 1º de maio, que teriam lugar no Parque Eduardo Gomes. Era uma precaução, mas o que viria a acontecer na cidade mostrou que a decisão fora acertada. Imediatamente, ainda na segunda, as equipes de limpeza e desobstrução de bueiros foram colocadas em alerta: haveria muito trabalho nos próximos dias. A Defesa Civil, ligada à Resiliência Climática, se preparava para distribuir lonas caso houvesse algum destelhamento e identificava locais seguros nas comunidades para onde deslocar famílias que eventualmente ficassem desabrigadas. Escolas foram postas de sobreaviso para uma eventual interrupção do calendário letivo. Jairo ainda deu a ordem para que todas as casas de bomba fossem imediatamente colocadas sob prontidão; caso as ruas alagassem, elas dariam conta de expulsar a água imediatamente.

Até aquele momento, no entanto, a pior hipótese pensada era um ‘alagamento generalizado’, ou seja, um excesso de chuva que o escoamento habitual da cidade não daria conta de eliminar. 

A chuva torrencial de terça, 30, no entanto, mostrou que não seria algo simples conter o evento climático que se apresentava. Ao final do dia, havia diversos pontos de alagamento em áreas mais baixas da cidade — pontos que costumavam alagar inclusive com chuvas menores; isso, de certa forma, manteve um certo nível de normalidade na percepção das pessoas. Até aquele momento, havia só uma pequena preocupação com as prováveis consequências da chuva em altíssimos volumes em uma cidade quase 100% pavimentada — e impermeável, portanto. A atenção das pessoas ainda se concentrava nas cheias, enxurradas e deslizamentos que começaram a fazer parte do noticiário a partir de quarta-feira, 1º, em regiões da Serra e no Vale do Taquari. Cidades como Muçum e Roca Sales tinha sido devastadas por cheias dos rios Caí e Taquari em setembro de 2023 e sofriam em maio de 2024 uma perversa repetição da mesma história. 

Não demorou muito para que as autoridades ligassem os pontos: se nas nascentes dos rios que compõe as bacias que contornam Canoas a enchente era uma realidade, quanto tempo a água demoraria para chegar aqui?

O ‘El Niño’, o “rio de umidade” e a corrente amazônica

A enchente de 2024 não foi causada só por chuva, embora ela tenha sido a responsável direta para cheia dos rios que margeiam Canoas. O clima, antes da precipitação pluviométrica, explica o que houve. 

2024 foi ano de ‘El Niño’, condição climática que favorece chuvas mais intensas entre a primavera e o verão, especialmente nas regiões subtropicais ao Sul, caso do Rio Grande do Sul. Por conta das ação do homem sobre a natureza e o aquecimento global do planeta, o El Niño vem ‘se esticando’ e, em 2024, chegou a maio. Havia, ainda, o efeito de outra situação climática adversa: um bloqueio atmosférico sobre o Oceano Atlântico Sul que favoreceu uma corrente de ar quente e contínua da Amazônia em direção ao nosso Estado. 

Essa corrente de ar, ao se chocar com o ar frio vindo do polo Sul, fez com que toda a umidade contida ali precipitasse em chuva. Na semana entre o dia 27 de abril e 5 de maio, caíram sobre Canoas 466 milímetros de chuva: a média para o período era de menos de 30mm.

Foi a soma de fenômenos como chuva intensa e rios cheios que provocou a maior tragédia da nossa história.

O povo pelo povo

Quando a água superou e rompeu os diques, de 4 para 5 de maio, encontrou centenas de quilômetros de assalto por onde correr sem maiores obstáculos. As casas se transformaram em minúsculas ilhotas em meio ao um mar de lama, sujeira e dor. Aliás, o que a enchente mais carregou foi dor: 31 pessoas em Canoas perderam a vida, 150 mil tiveram que deixar suas casas, pelo menos 60 mil perderam tudo, absolutamente tudo o que tinham.

Assim que água avançou, uma corrente de voluntários iniciou a ajuda aos atingidos. Sem eles, certamente a tragédia seria muito maior. Vieram de barco, de jet skis, de botes ou simplesmente se dispuseram a estender a mão a quem precisasse. Nas primeiras horas de domingo, 5 de maio, já eram milhares. 

Durante cerca de 25 dias, percorreram cada centímetro de todo o lado Oeste da cidade em busca de pessoas e animais domésticos que precisassem sair da área de alagamento. Quem saía, levava só a roupa do corpo, os documentos que tivesse a mão e, sinal dos nossos tempos, o celular. Quem pode carregar um gato ou cachorro da família, levou. Outros tantos ficaram para o itinerário de um próximo resgatista. Também foram os voluntários que levaram comida e água, principalmente água, a quem resistiu a deixar sua casa à mercê da enchente ou de eventuais aproveitadores da tragédia alheia. 

Nenhuma força pública, em lugar nenhum do mundo, teria conseguido fazer o que as pessoas, voluntariamente, fizeram em Canoas. Não havia barcos nem pessoal o suficiente para a missão, lembrando que com metade da cidade submersa, praticamente metade dos funcionários públicos do município, da Brigada Militar e do Corpo de Bombeiros estavam, eles também, flagelados.

As obras e o inevitável alerta para que jamais se repita

Um ano depois da enchente, toda a região e, em especial, a cidade de Canoas ainda lida com as consequências da tragédia. Todo o lado Oeste está em reconstrução, em maior ou menor grau. Escolas voltaram às atividades, mesmo com sequelas da enchente. Postos de saúde foram recuperados. Praças também tiveram a revitalização possível. Mas as ruas seguem com um aspecto de que uma batalha aconteceu ali — uma batalha contra as águas, no caso.

A reconstrução das casas das pessoas, por exemplo, não seguiu no mesmo ritmo. Algumas famílias sequer voltaram à zona onde o volume do alagamento foi maior. Nas ruas periféricas dos maiores bairros, ainda é possível encontrar imóveis totalmente fechados com marcas nas paredes de onde a enchente estacionou naqueles fatídicos dias de maio. Em trechos dos bairros Rio Branco, no Fátima e no Mathias Velho, portas e janelas fechadas indicam que aquela casa já não é mais o lar de alguém.

A obra essencial para que uma nova enchente daquelas proporções jamais se repita está andando — mas em ritmo lento. O dique do Mato Grande, que vai proteger uma imensa área habitada da cidade que hoje segue vulnerável, está em obras. A Prefeitura de Canoas, no entanto, precisa da liberação de recursos do Fundo do Estado para Reconstrução, o que ainda não foi feito. São cerca de R$ 6,5 bilhões vindos do Governo Federal e que aguardam um ‘ok’ do governo gaúcho para repasse aos municípios ou que o próprio governo dê início às obras. Há uma previsão de que ainda em maio haja a transferência de recursos — o que é fundamental para o avanço dos trabalhos.

Nesse aspecto, Canoas está adiantada.

As obras que não estão iniciadas, tem projetos prontos e aprovados. Licitados, até. Em Eldorado do Sul, por exemplo, outra cidade metropolitana muito atingida pela enchente, só agora — um ano após a tragédia — uma licitação para construção de diques de contenção foi aberta. Esteio e Sapucaia do Sul nem a isso chegaram: aguardam que o Governo do Estado finalize os estudos sobre a melhor solução para segurar a fúria de novas enchentes.

Há, ainda, a necessidade de alteamento dos diques no Rio Brando/Fátima e no Mathias Velho. E na São Luís o caso é mais grave: lá, nem dique tem.

Participe de nossos canais e assine nossa NewsLetter

Facebook
WhatsApp
Twitter
LinkedIn
Pinterest

Conteúdo relacionado

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Receba nossa News

Publicidade