O fantasma que asfixiou a indústria automotiva durante a pandemia volta a assombrar as montadoras brasileiras — e também a GM de Gravataí, base de metade da arrecadação da cidade e símbolo industrial do Rio Grande do Sul.
A nova ameaça vem da disputa geopolítica entre Estados Unidos e China, agravada por um episódio envolvendo a Holanda e uma fabricante de semicondutores, a Nexperia, e tem potencial para interromper novamente o fornecimento global de chips usados na produção de veículos.
Para evitar um novo colapso produtivo, o governo Lula criou neste mês um canal direto de negociação entre as montadoras instaladas no Brasil e o governo chinês, numa corrida contra o tempo para manter as linhas de montagem em operação.
A medida, articulada pelo vice-presidente e ministro da Indústria e Comércio, Geraldo Alckmin, é uma resposta a alertas da Anfavea (associação que representa as fabricantes) de que a produção nacional poderia ser interrompida ainda em dezembro.
– A cadeia automotiva emprega 1,3 milhão de pessoas e tem impacto direto em outros setores, como siderúrgico, químico e plástico. Demos um passo importante para que a indústria continue crescendo e gerando empregos de qualidade – afirmou Alckmin, classificando o acordo como “excelente notícia”.
Pelo entendimento diplomático, empresas como Bosch e ZF poderão solicitar autorizações especiais junto à Embaixada da China no Brasil para importar semicondutores, mesmo sob restrições impostas por Pequim.
O risco, porém, ainda não está afastado: tudo dependerá da agilidade dos processos nos próximos dias.
O caso Holanda e o efeito global
A tensão começou a partir da decisão do governo holandês de assumir o controle da Nexperia, empresa de capital chinês, alegando razões de segurança nacional. Em retaliação, a China restringiu exportações de chips e semicondutores, afetando montadoras de todo o mundo.
No Brasil, o temor é de que se repita o cenário de 2020 e 2021, quando a falta de semicondutores paralisou fábricas e levou ao layoff de milhares de trabalhadores — entre eles, cerca de mil empregados da GM de Gravataí, que tiveram contratos suspensos temporariamente.
O caso ficou marcado na memória industrial da cidade, cuja economia depende diretamente do desempenho da montadora.
“Arrisca parar montadoras no Brasil. Um veículo moderno usa, em média, de mil a três mil chips. Sem esses componentes, as fabricantes não conseguem manter a linha de produção em andamento”, alertou a Anfavea em nota divulgada no fim de outubro, classificando a situação como “uma catástrofe em potencial”.
A GM e o peso de Gravataí
Fundada em 2000, a unidade da General Motors em Gravataí emprega cerca de 5 mil trabalhadores, entre diretos e sistemistas, e já produziu quase 5 milhões de veículos — do Celta aos atuais Onix e Onix Plus.
A montadora é responsável por metade da arrecadação municipal, que em 2025 alcançou R$ 1,2 bilhão, e anunciou investimento de R$ 1,4 bilhão para produzir um SUV inédito a partir de 2026, dentro do processo de transição para a eletrificação.
Por isso, qualquer sinal de interrupção na cadeia global de suprimentos é motivo de alerta para o município e para o Estado.
Em abril deste ano, um layoff temporário ajustou a produção do Onix à demanda, evidenciando a sensibilidade do setor a variações internacionais.
O alerta dos especialistas
Em entrevista ao G1, o economista Luiz Carlos Laureano da Rosa, mestre e doutor pelo ITA, afirmou que a disputa entre China e Holanda pode ter consequências profundas para a indústria automotiva mundial — e o Brasil está no centro desse risco.
– Depois que o governo holandês assumiu o controle dessa empresa, a China suspendeu as exportações de chips vitais para toda a cadeia automotiva. Isso afeta fabricantes, fornecedores e, consequentemente, as montadoras no mundo inteiro, incluindo o Brasil – explicou.
Segundo o especialista, a dependência global da cadeia de semicondutores é uma das principais fragilidades da indústria nacional.
– Pode ter até desemprego, porque sem as peças vai ter que paralisar. E aí como que faz com os empregados? Você vai pagar os empregados e não está produzindo? É muito complicado – avaliou.
O economista defende que o Brasil invista em produção nacional de chips para reduzir a vulnerabilidade externa.
O protecionismo bairrista
Desde a pandemia, o setor automotivo brasileiro tem enfrentado uma sequência de atropelamentos — primeiro, o fechamento das fábricas por causa da Covid-19; depois, a escassez global de semicondutores; agora, o risco geopolítico EUA-China.
E, em paralelo, a ofensiva comercial das montadoras chinesas, como a BYD, que levou prefeitos e sindicalistas de diferentes espectros políticos a se unirem em defesa da indústria nacional — caso emblemático de Gravataí, onde o prefeito Luiz Zaffalon (PSD), um liberal, e o sindicalista de esquerda Valcir Ascari, o Quebra-Molas, presidente do sindicato dos metalúrgicos, atuam lado a lado.
A GM de Gravataí segue como âncora da economia gaúcha e referência em sustentabilidade industrial, com 13 fornecedores operando dentro do complexo no modelo de condomínio industrial. Mas sua dependência tecnológica mostra o quanto crises internacionais podem atingir diretamente os trabalhadores locais.
O vice-presidente da Anfavea, Igor Calvet, resume o clima de alívio cauteloso.
– O risco não está eliminado, mas diminuiu. Vamos acompanhar os desdobramentos e dar suporte às empresas da cadeia para restabelecer as compras o mais rápido possível – afirmou, também ao G1.
Aqui na aldeia resta esperança de que o novo canal diplomático criado por Brasília evite que uma disputa entre potências mundiais reverbere mais uma vez nos portões da fábrica que, há 25 anos, transformou a economia de toda uma região.





