Em uma democracia saudável, não seria necessário reproduzir o artigo do general do Exército Otávio Santana do Rêgo Barros e ex-porta voz de Jair Bolsonaro (PL), publicado no Jornal O Globo no domingo, que critica bolsonaristas que promovem atos golpistas por não aceitarem a derrota para o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Mas, vamos lá, neste Dia da Proclamação da República – e não confundir República, do latim res publica, com rês em público – no qual o golpismo, de desinformados, ou informados do mal, segue atrapalhando o sono de milicos e vizinhos aos quartéis.
Intitulado ‘O jogo acabou, vamos jogar’, o militar da reserva classifica os bloqueios em rodovias e acampamentos em portas de quartéis como “irresponsáveis”.
Reproduzo na íntegra o artigo e, abaixo, concluo.
“…
No domingo à noite (30/10/22), o Brasil deveria ter encerrado em alegria o ciclo democrático das eleições nacionais mais renhidas desde o fim dos governos militares. Não foi assim, o sentimento de tribo ainda persistia em toda parte.
Vencedores buscaram apaziguamento e união, mas um tanto inseguros de seus propósitos. Vencidos foram às ruas protestar contra as urnas, contra tudo o que não se alinhasse às suas cartilhas.
O país está conturbado com a desinformação que vence o confinamento ideológico das “câmaras de eco”. Há um custo social com a desordem informacional, que será pago por todos.
Somem-se às notícias desencontradas, as pitonisas de um apocalipse, os bloqueios irresponsáveis e violentos de estradas por caminhoneiros a soldo e os acampamentos de apoiadores do presidente vencido às portas de quartéis.
Não há justificativa para que alguns cidadãos se acreditem senhores exclusivos da verdade, esperando mudar no grito o curso da história.
As luzes do poder depressa redirecionaram o foco para o vencedor. As instituições, mesmo com falhas pontuais, que por dever de justiça precisam ser apontadas e corrigidas, deram mostra de fortaleza.
Os chefes do Poder Legislativo se pronunciaram favoráveis ao resultado, as Forças Armadas demonstraram equilíbrio de organismo de Estado, as forças policiais agiram sob demanda para trazer segurança, o Poder Judiciário atuou para conduzir uma votação e apuração serenas, observadores internacionais atestaram confiança no processo, e lideranças de muitos países logo cumprimentaram o vencedor.
Nesta semana, o relatório sobre o sistema eletrônico de votação (SEV) apresentado pelo Ministério da Defesa sugeriu melhorias no processo, mas não indicou fatos relevantes que comprometessem o resultado. Sepultou as esperanças de inconformados para modificar o pleito no tapetão.
Game over! Mesmo os eleitores do presidente no cargo, e foram milhões, o que exige respeito do vencedor, desejam voltar ao normal de suas vidas. A sociedade quer mudar a agenda.
Quer reencontrar amigos, falar da Copa do Mundo, dos que partiram, dos que chegaram, dos problemas diários a enfrentar para a sobrevivência.
Quer conhecer as políticas sobre meio ambiente que impactem aqui e lá fora, saber como o Brasil retomará parcerias comerciais e relações multilaterais.
Quer ver o país novamente respeitado, com voz ativa nas decisões mundiais.
Tudo sem a censura de ideologias grotescas — nenhuma exceção é permitida — que tentaram nos reger nos últimos anos.
Acompanhar com lupa as promessas realizadas na campanha será missão de todos. A prática política exige atenção.
E, se essas promessas forem abandonadas ao relento nos próximos quatro anos, 2026 está logo ali para que o pêndulo das urnas derrote o agora vencedor e traga outro vencedor à ribalta.
O fortalecimento das autocracias é desafio a muitos países, e o Brasil não está imune. Vamos precisar, como sociedade organizada, desenvolver uma estratégia de resistência contra os ataques à democracia.
O professor Oliver Stuenkel, pesquisador da Fundação Getulio Vargas, em recente artigo, afirmou: “A erosão de um sistema democrático requer foco e paciência”.
As lideranças autocráticas encontraram o caminho para levar a democracia ao colapso. Valem-se do mundo digital, de contestações às instituições, da guerra cultural difusa e de condenações à governança.
Em 1º de janeiro de 2023, na cerimônia da posse, resistindo ao ambiente distópico que nos cerca e asfixia, vamos dar um exemplo ao mundo. Vamos esquecer o passado divisivo que nos consumiu nos últimos meses.
Guardá-lo no baú sem chaves da intolerância e vestirmos o branco matizado de verde e amarelo, cores da bandeira que sempre foi e será de todos os brasileiros.
Já é um bom começo.
Paz e bem!
…”
Sigo eu.
Como fiz em julho, em O ‘conto de fardas’ da apuração paralela na eleição; Voltem aos pijamas, milicos golpistas! Forças Armadas não mandam, obedecem, e neste novembro, em Relatório das Forças Armadas manda golpistas para ‘debaixo da cama’; A Gal Costa e o vereador mais votado de Gravataí que desconfiou da eleição, associo-me ao comentarista da Globo News, Daniel Sousa, que alerta que as Forças Armadas nem deveriam ter sido ouvidas no processo eleitoral.
– As Forças Armadas não têm que ser ouvidas neste processo. Não é papel delas, numa República, dar palpite sobre processo eleitoral. Dizer se o processo eleitoral deveria ser assim ou assado – disse o economista, ensinando a quem não conhece sua Constituição, a Bíblia da República:
– É sempre importante lembrar que as Forças Armadas não são um poder. Elas não são, de forma alguma, um poder revisor. Não estão no mesmo patamar do Supremo Tribunal Federal. As Forças Armadas são burocracia do Estado. Burocracia do Estado obedece, não manda. Burocracia do Estado não dá palpite.
No artigo que reproduzi, Rêgo de Barros confirma esse papel constitucional dos militares, que nada tem a ver com leituras gagás e fake news sobre o ‘Artigo 142’:
– As Forças Armadas demonstraram equilíbrio de organismo de Estado – bem resumiu o general, que, no texto, ao atestar que o relatório das Forças Armadas não identificou fraude alguma nas urnas e “sepultou as esperanças de inconformados para modificar o pleito no tapetão”, também pediu um “game over”; que vale para civis e militares golpistas.
Lembrou-me uma do Millôr:
“Quando vejo esse pessoal acordando cedo pra ir numa igreja, se benzendo sempre que passa na frente de uma, ou antes de disputar uma prova esportiva, ou mesmo antes do mais simples mergulho no mar; quando vejo o número de rezas que devem ser aprendidas, o variado número de gestos e genuflexões a serem feitas, quando vejo a quantas liturgias e cerimônias um religioso é obrigado, vem-me sempre um sentimento de profundo respeito – como dá trabalho acreditar em Deus!”
Ao fim, parafraseando o humorista: professe o descrente o “paz e bem” franciscano, ou não, como dá trabalho acreditar nos militares!
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