3° Neurônio | poesia

Do Caderno H | Mario Quintana

O Caderno H, de Mario Quintana

Mario Quintana pode ser resumido numa linha – em qualquer linha escrita por ele. Fora os poemas, versos soltos e sonetos, Quintana adorava escrever anotações em poucas palavras, verbetes que iam do humor ao poético (geralmente juntos). Com essas linhas, preenchia sua participação no Caderno de Sábado, suplemento cultural do Correio do Povo. A seção Caderno H fez manteve leitores cativos por décadas. E essa seleção tem o melhor dos motivos: amenizar as saudades do maior poeta que já tivemos – o inesquecível Mario Quintana.

 

A Arte de Ler

O leitor que mais admiro é aquele que não chegou até a presente linha. Neste momento já interrompeu a leitura e está continuando a viagem por conta própria.
 

A Carta

Quando completei quinze anos, meu compenetrado padrinho me escreveu uma carta muito, muito séria: tinha até ponto-e-vírgula! Nunca fiquei tão impressionado na minha vida.
 

A Coisa

A gente pensa uma coisa, acaba escrevendo outra e o leitor entende uma terceira coisa… e, enquanto se passa tudo isso, a coisa propriamente dita começa a desconfiar que não foi propriamente dita.

 

As Indagações

A resposta certa, não importa nada: o essencial é que as perguntas estejam certas.

 

A Voz

Ser poeta não é dizer grandes coisas, mas ter uma voz reconhecível dentre todas as outras.

 

Ars Longa

Um poema só termina por acidente de publicação ou de morte do autor.

 

Arte Poética

Esquece todos os poemas que fizeste.Que cada poema seja o número 1.

 

Biografia

Era um grande nome — ora que dúvida! Uma verdadeira glória. Um dia adoeceu, morreu, virou rua… E continuaram a pisar em cima dele.

 

Cartaz para uma feira do livro

Os verdadeiros analfabetos são os que aprenderam a ler e não lêem.

 

Citação

De um autor inglês do saudoso século XIX: "O verdadeiro gentleman compra sempre três exemplares de cada livro: um para ler, outro para guardar na estante e o último para dar de presente."

 

Citação 2

E melhor se poderia dizer dos poetas o que disse dos ventos Machado de Assis: "A dispersão não lhes tira a unidade, nem a inquietude a constância."

 

Contradições

… mas o que eles não sabem levar em conta é que o poeta é uma criatura essencialmente dramática, isto é, contraditória, isto é, verdadeira. E por isso, é que o bom de escrever teatro é que se pode dizer, como toda a sinceridade, as coisas mais opostas. Sim, um autor que nunca se contradiz deve estar mentindo.

 

Cuidado

A poesia não se entrega a quem a define.

 

Das Escolas

Pertencer a uma escola poética é o mesmo que ser condenado à prisão perpétua.

 

Destino Atroz

Um poeta sofre três vezes: primeiro quando ele os sente, depois quando ele os escreve e, por último, quando declamam os seus versos.

 

Do Estilo

O estilo é uma dificuldade de expressão.

 

Dos Leitores

Há leitores que acham bom o que a gente escreve. Há outros que sempre acham que poderia ser melhor. Mas, na verdade, até hoje não pude saber qual das duas espécies irrita mais.

 

Dos Livros

Há duas espécies de livros: uns que os leitores esgotam, outros que esgotam os leitores.

 

Dupla Delícia

O livro traz a vantagem de a gente poder estar só e ao mesmo tempo acompanhado.

 

Educação

O mais difícil, mesmo, é a arte de desler.

 

Fatalidade

O que mais enfurece o vento são esses poetas invertebrados que o fazem rimar com lamento.

 

Feira de Livro

O que os poetas escrevem agrada ao espírito, embeleza a cútis e prolonga a existência.

 

Leitura

Se é proibido escrever nos monumentos, também deveria haver uma lei que proibisse escrever sobre Shakespeare e Camões.

 

Leitura 2

Livro bom, mesmo, é aquele de que às vezes interrompemos a leitura para seguir — até onde? — uma entrelinha… Leitura interrompida? Não. Esta é a verdadeira leitura continuada.

 

Leituras

— Você ainda não leu O Significado do Significado? Não? Assim você nunca fica em dia.
— Mas eu estou só esperando que apareça: O Significado do Significado do Significado.

 

Leituras 2

Não, não te recomendo a leitura de Joaquim Manuel de Macedo ou de José de Alencar . Que idéia foi essa do teu professor? Para que havias tu de os ler, se tua avozinha já os leu? E todas as lágrimas que ela chorou, quando era moça como tu, pelos amores de Ceci e da Moreninha, ficaram fazendo parte do teu ser, para sempre. Como vês, minha filha, a hereditariedade nos poupa muito trabalho.

 

Lógica & Linguagem

Alguém já se lembrou de fazer um estudo sobre a estatística dos provérbios? Este, por exemplo: "Quem cospe para o céu, na cara lhe cai". Tal desarranjo sintático faria a antiga análise lógica perder de súbito a razão.

 

O Assunto

E nunca me perguntes o assunto de um poema: um poema sempre fala de outra coisa.

 

O Poema

O poema, essa estranha máscara mais verdadeira do que a própria face.

 

O Trágico Dilema

Quando alguém pergunta a um autor o que este quis dizer, é porque um dos dois é burro.

 

Palavra Escrita

Por vezes, quando estou escrevendo este cadernos, tenho um medo idiota de que saiam póstumos. Mas haverá coisa escrita que não seja póstuma? Tudo que sai impresso é epitáfio.

 

Poema

Mas por que datar um poema? Os poetas que põem datas nos seus poemas me lembram essas galinhas que carimbam os ovos…

 

Poesia & Lenço

E essa que enxugam as lágrimas em nossos poemas com defluxos em lenços… Oh! tenham paciência, velhinhas… A poesia não é uma coisa idiota: a poesia é uma coisa louca!

 

Poesia & Peito

Qual Ioga, qual nada! A melhor ginástica respiratória que existe é a leitura, em voz alta, dos Lusíadas.

 

Refinamentos

Escrever o palavrão pelo palavrão é a modalidade atual da antiga arte pela arte.

 

Ressalva

Poesia não é a gente tentar em vão trepar pelas paredes, como se vê em tanto louco aí: poesia é trepar mesmo pelas paredes.

 

Sinônimos

Esses que pensam que existem sinônimos, desconfio que não sabem distinguir as diferentes nuanças de uma cor.

 

Sonho

Um poema que ao lê-lo, nem sentirias que ele já estivesse escrito, mas que fosse brotando, no mesmo instante, de teu próprio coração.

 

Tempo

Coisa que acaba de deixar a querida leitora um pouco mais velha ao chegar ao fim desta linha.

 

Veneração

Ah, esses livros que nos vêm às mãos, na Biblioteca Pública, e que nos enchem os dedos de poeira. Não reclames, não. A poeira das bibliotecas é a verdadeira poeira dos séculos.

 

Vida

Só a poesia possui as coisas vivas. O resto é necropsia.

 

Para relembrar a trajetória do genial Mario Quintana, acesse seu perfil na Wikipédia. Crédito da foto na capa do Seguinte: Dulce Helfer

 

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