Hoje não sabemos que água bebemos. Em 15 dias, talvez saibamos. O alerta e a expectativa são do biólogo e doutor em ecologia Jackson Muller, diretor-presidente da Fundação de Meio Ambiente de Gravataí (FMMA) após operação conjunta com a Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam), Ministério Público Estadual (MPE), Grupamento Ambiental da Brigada Militar e Corsan, que num sobrevôo identificou plantio irregular de arroz em pelo menos 400 hectares entre Gravataí, Glorinha e Viamão e numa pesquisa de campo coletou amostras para medir a turbidez e contaminação da água do Rio Gravataí por agrotóxicos.
Para piorar, essa água potencialmente suja, com cor, cheiro e gosto ruim – além de riscos ainda não sabidos à saúde – pode faltar nas torneiras.
É que, preliminarmente, os exames e observações dos técnicos dos órgãos ambientais já deslizam como uma Samarco de suspeitas: a turbidez, que é a quantidade de sedimentos na água, que não deveria ultrapassar a média de 40 unidades de turvação, está em 140.
– Ano passado chegou a 700 – lembra o biólogo, justificando o caráter preventivo da operação neste período em que se preparam as lavouras para o plantio do arroz irrigado, cultura que pelo Plano de Manejo da Bacia do Gravataí, documento tão sonhado pelos ambientalistas e com projeção de conclusão no ano que vem, será proibida a partir de 2022 pelos danos que causa aos mananciais e ecossistemas.
Tentando traduzir do ambientalês, o que acontece é que no preparo das lavouras, nas chamadas canchas, os sedimentos de planta, solo, água e agrotóxicos são remexidos pelos tratores e máquinas e muitos produtores não esperam a decantação antes de devolver essa espécie de lodo envenenado ao Rio Gravataí.
O risco ao abastecimento de água acontece porque a água caudalosa entope os filtros nas estações de tratamento da Corsan, o que provoca interrupções para troca, além da necessidade de um tratamento mais demorado para devolver condições mínimas de consumo aos 1,5 milhões de habitantes da região. Após a operação da semana passada, quatro produtores que cultivam arroz em quase 500 hectares em Gravataí, Viamão e Glorinha passaram a condição de investigados pela Fepam.
– Pedimos a cassação das licenças – revela Jackson Muller, repetindo uma medida tomada no mesmo período do ano passado pelo Comitê da Bacia do Gravataí, que pediu a suspensão das outorgas para captação e emissão de água, reivindicação ignorada até agora pelo órgão responsável pela fiscalização no Rio Grande do Sul.
A camada de lodo que hoje se vê ‘boiando’ da Lagoa da Anastácia em direção a foz na divisa entre Canoas e Porto Alegre também danifica o ecossistema, provocando mortandade e dificuldade na reprodução de peixes, que além de problemas para respirar precisam sobreviver em um manancial sem a quantidade de sol necessária para os processos ecológicos.
: Jackson Muller faz coleta durante operação conjunta e órgãos ambientais locais e estaduais
8 litros goela abaixo
Mas há algo pior do que faltar água na torneira: a ameaça assustadora – por silenciosa – dos agrotóxicos. As amostras coletadas na operação no Rio Gravataí estão sendo testadas para 20 tipos diferentes de ‘defensivos’ agrícolas e os resultados serão conhecidos ainda neste mês. Quem conhece o histórico da bacia hidrográfica espera pelo pior. Os dados são do promotor Daniel Martini, coordenador do Centro de Apoio Operacional de Defesa do Meio Ambiente do MP gaúcho: o consumo de agrotóxicos no RS chega a 8 litros/ano por habitante, a mesma média do Brasil – campeão mundial no uso de venenos. Levando para nossas mesas, 70% dos alimentos que consumimos estão lavados de agrotóxicos.
Numa operação coordenada em 2016 por Martini, que durante a primeira década dos anos 2000 comandou o MP de Gravataí, foi flagrado o uso do fungicida Mertin 400 em lavouras de arroz às margens do rio. O produto é proibido para uso em áreas de irrigação por ser persistente no meio ambiente e altamente tóxico para organismos aquáticos.
Só para se ter uma idéia, os relatos de Martini são de que em apenas uma semana de operações foram apreendidos 23 mil quilos e 1,2 mil litros de agrotóxicos em situação irregular, 3,5 mil quilos e 180 litros de venenos contrabandeados, 35 aeronaves de pulverização foram suspensas e mais de R$ 1 milhão foi aplicado em multas.
À época, o MP chegou a recomendar à Secretaria Estadual da Agricultura a criação de uma zona de exclusão para pulverização no Banhado Grande, que fica em Gravataí. O aplauso – e um abraço ao rio – organizado por ambientalistas que tinham na linha de frente à Associação de Preservação da Natureza Vale do Gravataí (APN-VG) durou poucos meses, até um acordo ser firmado por órgãos ambientais, governo e produtores de arroz para que o prazo fosse prorrogado pelo menos até o Plano de Manejo da Bacia estar em vigor.
A conclusão da legislação com o conjunto de regras para uso do solo e das águas na região é projetada para 2018, mas uma série de licitações para contratação de estudos técnicos já foram declaradas ‘desertas’ por falta de interessados nos valores oferecidos pelo estado, o que deixa os ambientalistas preocupados com o cumprimento dos prazos.
– A primeira captação de água após as lavouras é em Gravataí (no Passo dos Negros). É imensurável o dano ao rio e à população a cada empurrada com a barriga que dão no Plano de Manejo – lamenta Jackson Muller.
Vício de gigantes
Além da cortina de pulverização que oculta os danos dos agrotóxicos controlados e certificados, no submundo dos venenos já não se trata como exceção o uso de produtos contrabandeados.
– No Uruguai custam quatro vezes menos – confirma Sérgio Cardoso, presidente da APN e comandante pelo segundo mandato do Comitê da Bacia Hidrográfica do Gravataí.
O geólogo que nunca amarelou para polêmicas desde os anos 90 quando pesquisava diamantes em Georgetown, na Guiana Inglesa, em meio Amazônia selvagem, alerta para a influência de gigantes dos agrotóxicos, como a Basf e a Bayer, e a comercialização de sementes ‘viciadas’ no controle pelos venenos.
– Sempre são deles as maiores estandes a cada abertura oficial da colheita do arroz no Irga – instiga.
: Sérgio Cardoso pelo Comitê da Bacia, como a FMMA agora, já pediu cassação de licenças de produtores
Logo ali, exemplo para o mundo
Mas o sol também nasce sobre o Gravataí. Mesmo que do uso de agrotóxicos esteja livre, o Assentamento Filhos de Sepé volta e meia era apontado como um dos vilões da turbidez do rio, por há quase duas décadas representar a maior área de cultivo de arroz irrigado na região, em 1,6 mil hectares no distrito de Águas Claras, em Viamão. Pois nesta sexta, com dinheiro da própria cooperativa, obras de R$ 200 mil fecharão o circuito hídrico em toda lavoura.
– Não devolveremos mais água ao rio. Tudo será reutilizado – resume o engenheiro agrônomo Martin Zang, responsável pela gestão de recursos hídricos da associação dos moradores do assentamento que vai do pedágio da RS-040 até a região do Morro Grande, às portas da área de proteção ambiental (APA) Refúgio Silvestre do Banhado dos Pacheco.
Com uma produção de 7 mil toneladas por ano, que abastecem comércios, feiras, programas governamentais e prefeituras de Gravataí e Viamão até São Paulo, a comuna de 160 famílias ligadas ao MST é uma referência mundial no plantio de arroz e outras culturas orgânicas. Em março do ano que vem, será naquele chão o último dos quatro dias do Encontro Internacional de Produção Agroecológica, que reunirá produtores, pesquisadores e cientistas de todos os continentes para troca de informações sobre orgânicos.
– Aqui é zero agrotóxico. É produzida comida saudável em alta escala, sem nenhum veneno, apenas com o conhecimento de agricultores e especialistas sobre os elementos naturais, o solo, o sol, a água, a vegetação, a planta cultivada… – empolga-se Zang.
– O mundo nos conhece, muitos vizinhos não.
Semana que vem o Seguinte: vai lá e conta tudo em texto e vídeo.
: Martin Zang envio foto de agora há pouco, com máquinas trabalhando no projeto do Filhos de Sepé
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