A Elo Organização de Apoio à Adoção e Assistência Social, ONG sem fins lucrativos ou verbas públicas, que tem termo de cooperação técnica com o Judiciário e é responsável pela preparação dos adotantes em todas as comarcas do Rio Grande do Sul, soltou “nota de repúdio” ao Projeto De Lei 141/2023, que “autoriza a realização de trabalhos sociais de iniciativa religiosa dentro de instituições de acolhimento infantil” de Gravataí.
Alertei ontem para a inconstitucionalidade – e inconveniência – da proposta do vereador pastor Fábio Ávila, do Republicanos, partido da Igreja Universal do Reino de Deus; leia em Gravataí tem projeto de lei para pregar a palavra de Jesus para crianças nas casas abrigo; O Estado não é extensão da igreja, vereador pastor!.
Reproduzo a íntegra da nota, postada nas redes sociais e assinada pelo assistente social Peterson Rodrigues dos Santos, morador de Gravataí e presidente da entidade que presta atendimentos psicológicos as crianças, apadrinhamento afetivo e auxilia famílias nos processos de adoção de crianças das casas abrigos do município desde 2015.
Sigo abaixo da nota.
“(…)
NOTA DE REPÚDIO
É com grande preocupação que venho expressar nosso repúdio ao Projeto de Lei 141/2023, que autoriza a realização de trabalhos sociais de iniciativa religiosa dentro de instituições de acolhimento infantil em Gravataí.
Riscos e Atrasos: Permitir a circulação de pessoas nesses espaços pode atrair indivíduos com más intenções e gerar atravessamentos que atrasam a reintegração de crianças em suas famílias ou a colocação em famílias substitutas devidamente habilitadas. Estes atrasos são prejudiciais ao desenvolvimento das crianças e vão contra o princípio da eficiência na proteção à infância.
Prioridade: Aos políticos, alertamos que as crianças não precisam de mais pessoas circulando nas casas de acolhimento, precisam do quadro de trabalhadores completo. Quando têm necessidades religiosas, existem profissionais habilitados para encaminhá-las a locais de interesse, independentemente da crença. As crianças não estão presas nos serviços de acolhimento, e é nosso dever respeitar esses abrigos, que são temporariamente o lar delas.
Liberdade Religiosa: Lembramos que as crianças têm o direito à liberdade religiosa. Elas podem frequentar igrejas e locais de culto se desejarem, sem a necessidade de atividades religiosas inversas. Respeitemos as escolhas e os direitos delas.
Como presidente da ELO – Organização de Apoio à Adoção, insto as autoridades a rejeitar este projeto e a priorizar o bem-estar das crianças acolhidas. Devemos investir em saúde mental, educação e serviços de apoio de qualidade para essas crianças, independentemente de suas origens religiosas.
Peterson Rodrigues dos Santos
Assistente Social
(…)”
Sigo eu.
A nota tem muito peso, ao menos para os que enxergam além dos púlpitos. Seja pela respeitabilidade da ELO e sua relação com o Judiciário, seja por escrita por um assistente social, um técnico da área, que traz ciência para a pauta, além da experiência de ter conhecido aos 7 anos o filho, Lucas, hoje com 17 anos, ao frequentar oficinas do Instituto Amigos de Lucas, em Porto Alegre.
Como alertei no artigo de ontem, o Estado é laico. No Brasil, desde a Constituição de 1891, que consolidou a separação entre a Igreja e o Estado.
Entendo o projeto é caso para manifestação do Conselho Tutelar, do Conselho Municipal da Criança e do Adolescente e de ação de ofício pelo Ministério Público, a Promotoria da Infância e Juventude, caso passe pelas comissões do legislativo e seja aprovada em plenário pelos vereadores de Gravataí.
Reputo na justificativa do projeto está sua própria negação.
“Sobre a liberdade religiosa no Brasil, o artigo 11 (da Constituição de 88) diz: é dever do estado e de toda a sociedade garantir a liberdade religiosa, reconhecendo este direito a todo indivíduo, independente da origem, raça, sexo, cor, idade, e quaisquer outras formas de discriminação”
Segue: “no artigo 5º da Constituição, inciso VI diz: é inviolável a liberdade e a consciência de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantido na forma da lei a proteção aos locais de culto e suas liturgias”.
Mais: “o Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº 8.069/90, assegura o direito geral de liberdade, incluindo expressamente a liberdade religiosa nos artigos 16 e 17. Neste sentido, a própria doutrina da proteção integral das crianças e adolescentes, presente no direito brasileiro, reconhece aos menores toda a gama geral dos direitos fundamentais, incluindo-se a liberdade religiosa.
E conclui: “enfim, certifica-se nesse contexto que, garantir o conhecimento da importância da palavra de Deus para crianças e adolescentes nas instituições de acolhimento é priorizar cidadãos com autonomia na forma de pensar, decidir e solucionar conflitos na vida e na sociedade, baseado em princípios cristãos deixados pelo próprio Senhor Jesus”.
Assim fica parecendo que as crianças já não têm liberdade religiosa, o direito de ir e vir, de sair dos abrigos e procurar suas crenças. É preciso o Estado impor uma lei que as submeta a visitação de representantes de um credo. Que, conforme a justificativa, vão permitir “autonomia na forma de pensar, decidir e solucionar conflitos na vida e na sociedade”, mas, está lá na conclusão, “baseado em princípios cristãos deixados pelo próprio Senhor Jesus”.
Em resumo, conforme o projeto, a escolha dessas crianças será Jesus ou Jesus.
Agarro-me ao incrível deputado federal pastor Henrique Vieira, que em manifestação na Câmara Federal na discussão do projeto que proíbe o casamento homoafetivo, alertou que “o Estado não é extensão da igreja”.
Como advertiu, é arbitrário, violento, usar da paixão religiosa para, por meio do Estado e da regulação jurídica, impor uma crença ao conjunto da população; no caso, as crianças da casa abrigo.
“Se querem pensar desse jeito, pensem, mas não podem pegar isso e utilizar o Estado para, por meio da Lei, negar o direito do outro. Isso é completamente contrário à lógica do Estado laico, que pressupõe liberdade religiosa, diversidade religiosa e o respeito à não crença religiosa. Entre a crença e a Constituição, entre o que ela crê e o Código Civil, entre o que ela crê e o direito que outras pessoas têm, há uma diferença. Querem crer dessa forma? Creiam, mas sem impor ao outro”, apelou o religioso.
O pastor lembra que o estado laico foi reivindicação histórica do protestantismo – origem das igrejas neopentecostais: “o Estado é o Estado e a igreja é a igreja”.
É compreensível o interesse da IURD, maior expoente entre as igrejas neopentecostais, em influenciar o futuro de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade nas periferias do país. Tanto que a igreja tem se envolvido em eleições para conselhos tutelares, criados para defender os direitos da população carente. Em São Paulo, metade dos conselheiros tutelares são ligados à Universal. Em Gravataí e Cachoeirinha, as primeiras colocadas na votação do dia 1º também.
Mas podem fazer isso da porta para fora dos abrigos.
Aprovado o projeto, institui-se em Gravataí uma espécie de volta ao Império, onde o artigo 5º da Constituição de 1824 preceituava que “a religião católica apostólica romana continuará a ser a religião do Império”. No Império das Casas Abrigo, o privilégio será evangélico.
Ao fim, parece-me clara a Constituição de 88, que proíbe o Estado de adotar uma postura antireligiosa, mas também proíbe que o Estado apoie qualquer corrente religiosa. Em resumo, Estado laico é Estado neutro.
Pelo que sei, Jesus ao aparecer criou seu reino espiritual na Terra, fazendo com que os homens dividissem suas preocupações entre a pátria terrena e a pátria celeste. Foi o cristianismo o mar que se abriu para promover a separação entre o sistema teológico e o sistema político.
Parabenizando a ELO pela coragem de se expor em meio a uma polêmica que envolve poderes políticos, religiosos e a mistura deles, insisto: retira o projeto, vereador!