aldeia dos anjos

ESPECIAL | A última missão – PARTE 1

Em um dia como hoje, 8 de abril, em 1763, partiu em direção à Aldeia dos Anjos uma leva de mil índios originários dos povos missioneiros. Era a última leva a povoar este lugar que viveria 40 anos de uma história ousada e que se tornou o embrião de Gravataí. A partir de hoje, e durante quatro dias, o Seguinte: conta essa história. No primeiro capítulo, a chegada dos índios e as primeiras impressões que a Corte recebia daqui. No próximo dia 12, a prefeitura inaugura cruz em memória à ultima missão.

 

"Convidou-me para ir à sua Aldeia e assistir as festas que faziam em louvor a V. Exª; fui com efeito, e não desgostei de ver as infinitas  danças e entremeses que fizeram  a seu modo, e ultimamente correram cavalhadas em que mostravam grandes ligeirezas e destreza da lança; tiveram sua missa cantada, que eu lhes mandei dizer e quatro bois que me custaram duas patacas para fazerem o seu jantar, o que fizeram na Rua cobertos de ramos postos com tal artifício que pareciam bem; e as índias solteiras que eram as que por obrigação os serviam à mesa, não tinham outro enfeite, que o de terem as suas Tipoyas lavadas e a cabeça enfeitada com algumas fitas".

Foi um dia de festas na Aldeia dos Anjos naquele outubro de 1771. Era recebido na localidade nada menos do que um emissário do vice-rei Luis de Almeida Silva Mascarenhas, o Marquês de Lavradio, desde o Rio de Janeiro. Tratava-se de Francisco José da Rocha, na verdade, um espião do governo central enviado para conferir como andavam a situação de um projeto prioritário para a Coroa Portuguesa na segunda metade do século XVIII: tornar os índios guaranis súditos do rei. E a aldeia, fincada em um terreno na então capital desta capitania de Rio Grande de São Pedro, era uma espécie de projeto-piloto, arquitetado em Portugal durante o reinado de Dom José I, pelas mãos do seu primeiro-ministro, o liberal Sebastião José de Carvalho e Melo, conhecido como Marquês do Pombal.

O trecho que abre este texto é de uma das cartas endereçadas a Lavradio, com um certo choque cultural do seu espião. Ele cita as tipoyas, por exemplo, que deveriam servir como um vestido para as índias, mas elas simplificavam. Usavam como saias. Os seios, ficavam sem cobertura. Uma surpresa para um português que ainda não estivesse habituado a conviver com os índios.

Rocha permaneceu durante um ano por aqui, e chegou a uma conclusão sobre a realidade da capitania: aqui, duas coisas são importantes, controlar o gado e o governo dos índios.

 

 

Portugal e Espanha ainda disputavam suas fronteiras desde o Tratado de Madri, de 1750. O tratado havia determinado que os espanhóis entregassem as missões aos portugueses em troca da Colônia de Sacramento. Os espanhóis haviam invadido o lado português e tomado Rio Grande. As Missões, que eram terra prometida pelos portugueses aos açorianos, seguiam no lado espanhol com o fim das guerras guaraníticas, entre 1754 e 1756. Então, manter o maior contingente possível de índios no lado português, povoar a terra e, os tendo como súditos, garantir soldados suficientes para pelear com os castelhanos eram vitais. Neste contexto, foi criada a Aldeia dos Anjos quase uma década antes da chegada do espião do vice-rei. Ali, seria levada ao extremo a política de assimilação dos índios na rotina luso-brasileira de um Brasil colonial.

Pois agora, 256 anos depois da última leva de índios trazidos para cá, finalmente a história desta experiência, que durou 40 anos e foi o embrião da atual Gravataí, ganhará destaque no cotidiano da cidade. Uma Cruz de Lorena, marca das missões jesuíticas, será inaugurada no dia 12 de abril na rótula entre a RS-118 e a Avenida Centenário, justamente onde se acredita que os primeiros índios se assentaram, bem próximo ao Rio Gravataí. Marcará o que o município “A última missão”. Uma pequena corruptela histórica, já que a Aldeia dos Anjos foi, na verdade, um projeto alternativo e, em muitos aspectos, antagônico ao que os jesuítas criaram nas missões. Mesmo a contragosto da Coroa Portuguesa, que havia rachado com os jesuítas, porém, até o desenho arquitetônico da aldeia que Francisco José da Rocha encontrava lembrava os traços das reduções jesuíticas.

A cruz também não estará tão distante do que deu origem à Aldeia dos Anjos. No inventário do que os cerca de três mil índios trazidos para cá carregavam desde os povos missioneiros estavam, tão somente: uma imagem de Nossa Senhora dos Anjos com o menino Jesus, duas cruzes (uma de estanho e outra de madeira), uma cruz de prata lisa e um esplendor de prata.

— O mais importante deste resgate é valorizar o papel do índio na formação de Gravataí, e da força da cultura do índio, que resistiu a um projeto que, em sua essência, tinha o objetivo de “aportuguesar” os guaranis. A aldeia prosperou, foi inclusive lucrativa, mas não — e que bom — exatamente nos moldes que o governo planejava — explica o historiador Fábio Kuhn, especialista no tema e consultor da prefeitura no planejamento da “A última missão”.

 

: Em 1750, o Tratado de Madri estabelecia novas fronteiras entre Portugal e Espanha na América

 

Rocha chegou à aldeia quando o período mais crítico, e de pobreza, começava a ser superado. Era o início do período de prosperidade do povoado, sob o governo da capitania de José Marcelino de Figueiredo, um fiel seguidor de Pombal. Em seu relato, o espião não esconde um misto de encantamento pela evolução estrutural que se via na aldeia e de preocupação com a situação dos indígenas:

“Os [índios] da Aldeia que ficam junto da Capela [de Viamão] estão mais bem assistidos porque o Governador como mais vizinho tem cuidado neles, tem lhe posto Botica, Cirurgião e Capelão, tem lhe feito uma muito boa igreja; fá-los trabalhar, e estes não tem cousa nenhuma, de forma que me tem sido preciso assistir a alguns doentes com galinhas e remédios, e mandar este padre confessa-los para não morrerem sem confissão".

Primeiro, os índios convencidos a ficar no lado português ocuparam a chamada Aldeia de São Nicolau, às margens do Rio Pardo, e a Aldeia dos Estreito, na atual São José do Norte. Mas o risco de aliciamento pelos castelhanos ainda era real. Eles estavam muito próximos à fronteira criada pela guerra. O caminho natural para uma nova aldeia, que receberia o nome de Nossa Senhora dos Anjos, era Viamão, para onde boa parte da população da capitania se refugiava — e promovia um verdadeiro caos social. Além dos índios, havia refugiados de Rio Grande e de outros pontos de guerra com os castelhanos, e ainda os açorianos, que chegavam aqui à espera das terras prometidas por Portugal nas Missões.

A chegada de índios missioneiros à Aldeia dos Anjos teria iniciado em 1762. A tarefa de convencer os índios e trazê-los para cá, coube ao capitão Antônio Pinto Carneiro, um militar experiente, com atuação nas guerras guaraníticas, e que tinha intimidade com os guaranis. Em 8 de abril de 1763, acredita-se que ele tenha partido em direção à Aldeia com a última leva de mil índios. No total, cerca de três mil chegaram aqui. Para que se tenha uma ideia do impacto deste movimento, Viamão não chegava a dois mil habitantes até então.

 

Aos farrapos, à beira do rio

 

O relato da última leva de índios a chegar na Aldeia dos Anjos era preocupante:

“Chegaram mil índios de São Miguel e São Borja, esfarrapados e com fome”

Em tendas de couro, as famílias vindas das missões foram instalados a meia légua do Rio Gravataí. A área fazia parte das terras de João Lourenço Veloso, mas não foi preciso nenhuma desapropriação. Pela legislação da época — bem semelhante à atual legislação ambiental —, as margens dos rios eram território d’El Rei. A área, naturalmente alagadiça, como ainda é hoje, era apenas uma demonstração dos tempos de dificuldades nos primeiros anos da Aldeia dos Anjos.

O projeto inicial não previa nenhum grande investimento. Os índios permaneceriam de maneira provisória neste aldeamento, até que as guerras de fronteira com os espanhóis acabassem. Mas elas demorariam muito para ter fim.

Já no caminho até o aldeamento, a epidemia de “bexiga” se abateu sobre os eles. Estima-se que no caminho para a aldeia e já instalados nela, pelo menos 150 tenham morrido e mil atingidos pela doença.

 

: Os primeiros sete anos da Aldeia dos Anjos foram marcados pela miséria e falta de atenção do poder público

 

Ainda em 1763, Antônio Pinto Carneiro, o responsável pelo aldeamento, relatava ao Rio de Janeiro a situação precária:

“Mui falta de vestuário. Os guaranis no estado em que se encontram, causam compaixão e merecem piedade”.

Mas não havia piedade na vizinhança. Insatisfeitos com a presença dos indígenas, a quem acusavam de roubar o gado, moradores sugeriam que os aldeados fossem transferidos para a “enseada das Garoupas” (atual sul de Santa Catarina). É que a área ocupada pela aldeia era cobiçada em uma Viamão em convulsão. Fazia dez anos que os açorianos, instalados no Porto do Dornelles e em Viamão, esperavam pelas terras prometidas pela Coroa Portuguesa, e pressionavam para que o governador José Custódio de Sá e Faria fizesse as demarcações.

Talvez como forma de acalmar os críticos, Sá e Faria publicou um edital em 1765:

“A província está infestada de ladrões fascinorosos, matadores, desertores e índios dispersos, em prejuízo dos moradores”.

Entre as ordens deste edital, estava a obrigação de que, quem encontrasse algum índio em terras portuguesas na Capitania de São Pedro deveria entregar ao capitão Antônio Pinto Carneiro, na Aldeia dos Anjos.

 

Jesuítas em desgraça, pombalinos no poder

 

A ordem era matricular os índios com “apelidos” portugueses. E foi anunciada “ao som de caixas” para que toda a população soubesse que era assim que o governo ordenava fossem tratados os índios. E este processo foi meticuloso, como era o hábito da colônia sob a batuta de Pombal.

Os nomes portugueses dos índios da aldeia foram cuidadosamente listados. Primeiro, aparecem os registros dos nomes indígenas, e ao lado, o nome que passaram a adotar na Aldeia dos Anjos. A começar pelo cacique. Poty tornou-se Narciso de Souza Flores. Taropy foi batizado como Apolinário da Silva Pereira. E a Geruy, passou a se chamar Liberata de Santa Helena.

Era a colocação em prática do diretório de 1755, publicado só em 1757, de Pombal, que acentuava o rompimento entre Portugal e a Companhia de Jesus (Jesuítas) e suas Missões. Se nas missões o objetivo dos padres era catequizar os índios, mas ainda assim manter a liberdade para que eles conservassem alguns traços culturais próprios, como a língua e os nomes, na ordem pombalina, o objetivo era formar aldeias para que os índios fossem assimilados na cultura portuguesa a partir, por exemplo, de escolas onde os meninos, aos poucos, eram proibidos de falar outra língua, que não a portuguesa, inclusive no contato com seus familiares. A expectativa dos portugueses era de que a cultura indígena fosse engolida e a Coroa ganhasse novos súditos. O decreto alfinetava os jesuítas e, em certo ponto, entre as 95 recomendações que trazia o decreto, dizia:

 

: O livro de registros dos índios "aportuguesados" foi transcrito em Índios d'Aldeia dos Anjos, que se encontra nos arquivos do Museu Agostinho Marta

 

"Sempre foi máxima inalteravelmente praticada em todas as Nações, que conquistaram novos Domínios, introduzir logo nos povos conquistados o seu próprio idioma, por ser indisputável, que este é um dos meios mais eficazes para desterrar dos Povos rústicos a barbaridade dos seus antigos costumes; e ter mostrado a experiência, que ao mesmo passo, que se introduz neles o uso da Língua do Príncipe, que os conquistou, se lhes radica também o afeto, a veneração, e a obediência ao mesmo Príncipe. Observando pois todas as Nações polidas do Mundo, este prudente, e sólido sistema, nesta Conquista se praticou tanto pelo contrário, que só cuidaram os primeiros Conquistadores estabelecer nela o uso da Língua, que chamaram geral; invenção verdadeiramente abominável, e diabólica, para que privados os Índios de todos aqueles meios, que os podiam civilizar, permanecessem na rústica, e bárbara sujeição, em que até agora se conservavam. Para desterrar esse perniciosíssimo abuso, será um dos principais cuidados dos Diretores, estabelecer nas suas respectivas Povoações o uso da Língua Portuguesa, não consentindo por modo algum, que os Meninos, e as Meninas, que pertencerem às Escolas, e todos aqueles Índios, que forem capazes de instrução nesta matéria, usem da língua própria das suas Nações, ou da chamada geral; mas unicamente da Portuguesa, na forma, que Sua Majestade tem recomendado em repetidas ordens, que até agora se não observaram com total ruína Espiritual, e Temporal do Estado"

No conceito pombalino, essa assimilação eliminaria o preconceito contra os índios, mesmo que isso custasse a memória do povo nativo.

— Os jesuítas concediam mais aos indígenas. Para os portugueses, em resumo, eles teriam que deixar de ser índios. Eles foram assimilados, mas não como os portugueses desejavam — comenta Fábio Kuhn.

Somente em dezembro de 1769, já no governo de José Marcelino Figueiredo, foram publicadas as regras da aldeia, conforme o modelo de Pombal. Na Aldeia dos Anjos, estavam proibidas danças e festas que não fossem as religiosas dos portugueses, e os tambores só podiam ser tocados para marcar o horário de saída para o trabalho.

 

: Marquês do Pombal rompeu com os jesuítas e implementou seu projeto de assimilação dos índios na colônia

 

A ordem do governador, ao mesmo tempo em que cerceava, ao menos institucionalmente, a cultura dos índios, dava, anos depois de iniciada a aldeia, as linhas do que faria deste lugar um ambiente próspero. Marcelino determinava que cada povo deveria ter um “cura” (médico) e casas para escolas, onde os rapazes aprendessem o português. Deveriam ter uma igreja e trabalhar na roça da mandioca, fumo, algodão e legumes, além do plantio de pessegueiros ao redor de cada casa.

Era o início do apogeu da Aldeia dos Anjos.

 

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