RAFAEL MARTINELLI

‘Estado Maior’ do bolsonarismo-raiz veio entregar uniformes com Zaffa na escola cívico-militar de Gravataí; Defesas e críticas sobre fardar crianças

Murialdo é a primeira escola cívico-militar rural do Brasil

Parte do ‘Estado Maior’ do bolsonarismo-raiz gaúcho bateu continência em Gravataí na entrega dos uniformes diferenciados para alunos da Murialdo, a primeira escola cívico-militar rural do Brasil.

O prefeito Luiz Zaffalon (PSDB), ao lado do vice Dr. Levi Melo (Podemos) e do vereador Policial Evandro Coruja (PP), recebeu os deputados mais votados do RS, Gustavo Vitorino (Republicanos), estadual, e Luciano Zucco (PL), federal.

Clique aqui para assistir vídeo postado pelo prefeito de Gravataí.

Sigamos agora com textão com informações, defesas e críticas ao polêmico modelo de ensino que farda crianças.

Zaffa é um entusiasta da escola cívico-militar. Há uma semana, o prefeito acompanhou do plenário da Assembleia Legislativa a aprovação do Programa de Escolas Cívico-Militar no território gaúcho, o que pode garantir subsídios diretos do Governo do Estado para investir no Murialdo.

É que, em junho de 2023, o governo Lula encerrou o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares do Ministério da Educação.

E Zaffa tinha um convênio com o governo Eduardo Leite (PSDB) pelo qual, de forma paritária, investiu R$ 4 milhões na escola nos dois anos funcionamento em Gravataí. Verba cuja origem era o Ministério da Educação.

A aprovação do projeto pelo parlamento gaúcho ‘legaliza’ o investimento estadual no modelo de ensino. Ao menos enquanto o caso está sub judice.

O Tribunal de Justiça, em uma ação do Cpers, sindicato que representa os professores da rede estadual, suspendeu em 2022 a implementação de novas instituições cívico-militares em todo o Rio Grande do Sul.

O desembargador Ricardo Pippi Schmidt justificou que o programa fere a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e a Lei Estadual 10.576/95, que delegam a professores a gestão do dia a dia escolar.

Casada com um militar, a secretária da Educação de Gravataí Aurelise Braun é uma apaixonada pelas escolas cívico-militares. Já apresentou sua defensa ao Seguinte:.

– O retorno é maravilhoso. Sou fascinada por esse modelo. A comunidade aprova e há uma fila de 100 alunos esperando vaga – informou, lembrando que a instalação teve aprovação de 90% em consulta à comunidade escolar da região.

– Não entendo como doutrinação. Não se trata de ideologias ou posicionamentos políticos. O objetivo é promover um retorno aos valores, civismo, dedicação, excelência, honestidade, hierarquia, postura e práticas de disciplina na unidade. Não entra o cabelo verde, o brinco, e sem qualquer tipo preconceito. Há um uniforme específico. Mas a ação dos PMs é da sala de aula para fora. Não desvirtua o modelo de ensino do município, não tem ingerência no aprendizado, não entra na sala de aula, não fere a gestão democrática – argumentou, explicando que alunos com problemas disciplinares não são expulsos; passam por acompanhamento do serviço de orientação educacional da escola.

O vereador Policial Evandro Coruja, também um bolsonarista-raiz, é outro defensor.

– Diferentemente do que diz a esquerda, não é um modelo ideológico. O professor cuida dos alunos da porta da sala para dentro e os monitores cívico-militares cuidam da segurança, do entorno e atividades porta para fora, em atributos que chamamos da área afetiva, da civilidade, do civismo, do patriotismo, do “muito obrigado”, “sim senhora”, “sim senhor” – argumentou o policial federal de profissão, na sessão da Câmara, na noite desta terça-feira.

Na adaptação para escola cívico-militar, a Murialdo ganhou 11 novas salas de aula e oferece café, lanche, almoço e artes marciais, técnicas agrícolas e uma banda marcial.

São 700 alunos, 35 professores e 3 policiais militares aposentados – pagos pelo convênio entre os governos municipal e estadual após seleção, mas sem necessidade de capacitação para lidar com crianças e adolescentes; a experiência dos brigadianos é com o Proerd, o programa da Brigada Militar que previne álcool e drogas nas escolas.

Vamos então para análise.

Os defensores que me perdoem a crueza, mas reputo são escolas militares ‘fake’ – ao menos no que se construiu no imaginário popular. É uma constatação na qual não cabe apenas na Murialdo, e sim todas as 202 escolas que aderiram ao modelo no Brasil desde o governo Bolsonaro.

Fato é que as escolas cívico-militares nada têm a ver com os colégios realmente militares, mantidos pelo Ministério da Defesa ou pelas PMS.

O programa lançado pelo ex-presidente em 2019 consiste na administração compartilhada de escolas públicas, estaduais ou municipais, entre civis e militares da reserva, sejam egressos das Forças Armadas ou das PMs.

Alguns depoimentos reforçam meu argumento.

– Não se explicitou para a população a diferença entre o modelo proposto e o implementado – já alertou à GZH a professora associada e vice-diretora da Ufrgs, Aline Cunha.

Ao site, a pesquisadora sobre a militarização da educação, Iana Gomes de Lima, que é professora adjunta da Faculdade de Educação da Ufrgs, também estabelece diferenças: na escola pública não é necessário passar por um processo seletivo difícil para ingressar, o que pressupõe que alunos dos colégios militares tenham melhor avaliação:

– O programa é muito calcado nessa ideia de que as escolas cívico-militares terão a qualidade dos colégios militares, mas a gente sabe que isso é totalmente falso, porque a gente está falando de escolas públicas que são plurais, pra todos e pra todas, e que vão seguir tendo um investimento muito pequeno. O próprio salário dos professores de colégios militares é muito maior do que o de docentes de escolas públicas.

Aline Cunha também alertou para a militarização da escola.

– O que se quer alcançar com o sujeito na educação é diferente do que se quer na prestação de um serviço militar. Esse paralelo é, na sua origem, equivocado. No âmbito militar, qualquer comportamento civil é considerado rebeldia, subversão, uma concepção de educação que nós buscamos superar na abertura democrática, com a Constituição de 1988 e, sobretudo, na Lei de Diretrizes e Bases, em 1996 – disse.

Já Iana observou ainda que os militares que atuam como monitores não passaram por capacitações para trabalhar em escolas, o que acaba gerando conflitos e divergências de entendimento sobre o que é disciplina:

– Todo professor deseja uma turma respeitosa, mas a ideia de disciplina que construímos junto com alunos e alunas é pautada em princípios muito diferentes dos militares. A gente quer que eles e elas entendam que o que estão fazendo envolve respeito, pluralidade, diferença e coletividade, e não que façam isso por medo ou por uma questão autoritária.

Mais duro é o jornalista Reinaldo Azevedo: “a rigor, o que há de fato é um gigantesco cabidão de empregos para militares da reserva fazerem um bico, atuando como bedéis. Sim, acreditem: a sua função quase sempre se resume a ‘manter a disciplina’ e a dar pitaco aqui e ali na gestão”.

Ao todo, o programa empregava 892 militares, com salários que vão de R$ 2.657 – para terceiro-sargento – a R$ 9.152, quando coronel. Os ganhos se somam ao que recebem das respectivas Forças.

“Fazem um bico nos estabelecimentos de ensino e têm, na média, um salário maior do que o dos professores. A ‘eficácia’ do programa se limita à adoção de uniforme (às vezes), ao perfilamento de estudantes para cantar o Hino Nacional em datas específicas e à cara feia”, considera.

O custo foi caro para o MEC: em 2022, R$ 64,2 milhões; em 2023, R$ 86,5 milhões.

“Só para que se tenha noção do ridículo da ‘revolução bolsonariana’ na educação, há no país em torno de 50 milhões de alunos no ensino básico da rede pública. Como os militares custaram R$ 86 milhões para “cuidar” de 120 mil alunos em 2023, qual seria o custo se o modelo valesse para todos? Ah, a bagatela de R$ 35,8 bilhões só para pagar a milicada”, conclui.

Ao fim, não só por civil de nascença, sou crítico do modelo, que não é utilizado nos países líderes nos rankings de avaliações internacionais, como o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa), e conflita com a LDB, que é a ‘Constituição da Educação’.

Sem indicadores devidamente analisados por especialistas, resta um “no meu tempo era bom!”, que quase sempre não passa de memória autobiográfica – o que a psicologia explica.

São aquelas recordações que criamos inadvertidamente, inconscientemente, que não correspondem à realidade, mas que se adequam à história que construímos sobre nossa vida, personalidade e, por consequência, comunidade.

Ainda em março de 2021, quando o prefeito Zaffa aderiu ao programa, descrevi o modelo como uma “mina ideológica”.

Sim, porque defender a escola cívico-militar como garantia de disciplina pode fazer parecer que os professores civis são os responsáveis pela suposta indisciplina.

E há pais que adoram se esconder nessa trincheira. Pesquisa feita pela Secretaria de Educação do Paraná mostrou 75% de aprovação entre famílias de alunos.

Mina ideológica é, também, porque o comparativo do investimento com os resultados no aprendizado não parece justificar um programa nacional – ou, como agora, estadual – em tempos de teto de gastos para educação.

Mas, e ao fim, permitindo a lei, tem Zaffa toda legitimidade para implantar em Gravataí uma escola cívico-militar, que é motivo de comemoração para muitos. É da democracia: estava em seu plano de governo, aprovado nas urnas por 51,3% dos eleitores.

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