O UOL, maior empresa de conteúdo e serviços digitais do Brasil, tem no 'front da guerra’ que é a cobertura da crise do coronavírus, Herculano Barreto Filho, o jornalista mais premiado da história de Gravataí.
Ganhador do Prêmio Esso, o mais cobiçado pela impressa brasileira, com a série publicada em 2007 pelo Correio de Gravataí sobre o ‘Caso Vilson’, pedreiro que morreu após supostamente ser vítima da violência policial, o gaúcho é autor de reportagens de repercussão nacional sobre o colapso na saúde do Rio de Janeiro e a chegada da COVID-19 nas favelas.
O Seguinte: entrevistou o jornalista quando ele voltava de uma ‘batalha’, naquele dia em São Gonçalo, cidade da região metropolitana do Rio que decretou lockdown.
Siga os principais trechos.
Seguinte: – Tens estado na linha frente das reportagens sobre a COVID-19. Já denunciaste falta de médico em ‘covidário’, fila de corpos em hospital e foste um dos primeiros jornalistas a contar a realidade das favelas, quando o contágio ainda parecia distante. O que mais te impactou?
Herculano Filho – O enterro de um técnico de enfermagem, morto no mês passado. O Jorge Alexandre era obeso, tinha diabetes e hipertensão. E, mesmo assim, estava trabalhando na linha de frente em uma ala destinada a pessoas com suspeita de COVID na maior emergência da zona oeste do Rio de Janeiro. Fiquei sabendo do caso logo pela manhã, em um grupo de WhatsApp. Aí, decidi ir ao hospital onde ele trabalhava, pra ver se descobria algo por lá. Mas só consegui fazer fotos escondidas pelo celular. Aí, decidi ligar para as funerárias e descobri que ele seria enterrado em um hospital em Santa Cruz. Pra quem não conhece, Santa Cruz é o bairro mais distante do Rio. É como fazer uma viagem para outra cidade, num trajeto que pode durar mais de uma hora. Consegui chegar minutos antes do sepultamento. Aí, o impacto. Em torno do caixão dele, havia menos de dez pessoas. A filha e a mãe não estavam lá. A irmã acariciava o plástico na frente do rosto dele, já que o caixão estava fechado. Ouvi da noiva dele que ele seguia trabalhando, apesar dos riscos, porque precisava do dinheiro.
Seguinte: – Quando ouve, ou lê alguém minimizar a tragédia, o que pensas, ou fala?
Herculano Filho – Dá uma sensação de impotência. Porque as pessoas vivem dentro das suas bolhas e se tornaram orgulhosas demais para cogitar que podem estar erradas. Infelizmente, a pandemia se misturou com a política. Quando converso com especialistas, sempre escuto o mesmo tipo de argumentação. Eles pedem para que as autoridades adotem um discurso conectado com a realidade da propagação do vírus, para não confundir a população. Não vejo nada mais triste e patético do que a imagem de um senhor que sequer consegue manter a máscara de proteção no rosto enquanto é filmado.
Seguinte: – Já cobriste a área de segurança pública, ganhaste o prêmio Esso, fizeste reportagens com câmera escondida nos lugares mais perigosos do país. Sente que hoje está cobrindo uma ‘guerra’, que vês a morte de perto?
Herculano Filho – Me sinto no dever de cumprir uma missão. Em meio à pandemia, muitos repórteres estão trabalhando de casa, por segurança. Fazem entrevistas por telefone, escutam autoridades, buscam fazer recortes com os números do coronavírus. Isso é essencial para que possamos alertar a população e mostrar a dimensão do vírus. Mas a realidade está nas ruas, nos hospitais, nos cemitérios. Quando optamos por ouvir só os homens de gravata, distanciamos o jornalismo das histórias humanas, que acrescentam sensibilidade e são capazes de estabelecer um vínculo de empatia com o leitor. A realidade das pessoas mudou no mundo. E é nesse momento que o jornalista precisa se desdobrar para contar o que vê até para aqueles que ainda não perceberam o que está acontecendo. Em uma cobertura de guerra urbana, por exemplo, conseguimos observar onde estão os policiais com fuzis e sabemos onde estão os bandidos. O jornalista precisa manter um distanciamento do perigo para poder contar a história. O problema nessa cobertura de guerra é que o inimigo invisível está no ar.
Seguinte: – Qual a tua rotina sanitária? Não teme contaminar a família? O que te move arriscar a vida?
Herculano Filho – Chego em casa pela porta dos fundos, que dá acesso à cozinha. Tiro a roupa e a coloco em uma cesta. Aí, passo álcool em gel nas mãos e dou uma espiada na sala, só pra ver os meus filhos. Perdi o hábito que tinha de abraçá-los quando voltava do trabalho. Me contento apenas em ver que estão todos bem e vou pro banho. Só depois disso, posso abraçar todo mundo, como um ritual que dá a sensação de dever cumprido. A motivação para seguir com esse tipo de cobertura é exatamente a mesma do começo de carreira. As histórias estão nas ruas. O nosso desafio é ter a sensibilidade de identificar onde elas estão e traduzir essas realidades para o leitor. Quando isso tudo acabar, quero poder olhar pra trás e saber que fiz o melhor que pude. Até mesmo o tipo de interação com as fontes muda num momento de pandemia. As pessoas estão sensibilizadas e também querem contribuir para que a população entenda a gravidade da situação. O que me motiva nesse cenário é ver a realidade enfrentada pelos profissionais de saúde, que arriscam a própria vida para atender os doentes em meio ao colapso do sistema de saúde.
Seguinte: – O Rio entendeu a tragédia, ou o Rio continua sendo uma festa?
Herculano Filho – Depende. No Rio, já teve até toque de recolher imposto pelo tráfico com carro de som. Mas também teve uma grande aglomeração de pessoas por causa de um torneio de pipas. Circulei por áreas periféricas e encontrei até gente comendo em restaurante. Isso aconteceu recentemente, em Realengo, na zona oeste. Aí, tirei uma foto, pra registrar a cena. Mas o proprietário percebeu e saiu, pra tirar satisfações. Aí, fingi que estava falando pelo celular e disse: “Amor, aqui tem peixe. Tá R$ 15 o prato. Tem mocotó também. Viu na foto? Vou aí te pegar”. Consegui sair de lá sem ser abordado, xingado ou agredido.
Seguinte: – Só lockdown ‘salva’ o Rio?
Herculano Filho – Especialistas indicam que seria preciso ter um isolamento social de pelo menos 70% da população para minimizar o impacto da contaminação nos hospitais, já em colapso. Mas as pesquisas apontam que esse índice tem sido de 50%. É insuficiente. Teremos dias piores pela frente.
Seguinte: – Deixa uma mensagem para Gravataí, onde trabalhaste por cinco anos?
Herculano – Essa é a pergunta mais difícil de responder, porque foge do distanciamento que nos permite falar sobre as coisas sem estar dentro do cenário. Em Gravataí, descobri a importância de um jornalismo local, em uma cidade distante dos holofotes da grande mídia. E, assim, percebi como aumenta a relevância de contar o cotidiano que estava pelas histórias nas ruas de Gravataí, onde fui conhecido como Perguntinha e Dezoitão. Foi onde aprendi sobre jornalismo até mesmo bebendo vinho guardado na geladeira em uma garrafa de plástico, em um boteco na parada 62. Guardo aquelas conversas até hoje na minha memória, Martinelli. Você foi o primeiro chefe a acreditar no meu potencial, numa época em que eu mesmo duvidava. Me fez perceber que o jornalismo, quando bem feito, pode nos levar a qualquer lugar. De lá para cá, já participei das coberturas do caso Nardoni, em São Paulo. Da ocupação do Complexo do Alemão, no Rio. Da cobertura da tragédia na boate Kiss, em Santa Maria. Já viajei pelo país para fazer jornalismo. Mas a minha trajetória começou em Gravataí, enquanto o Dirnei Júnior rodava pelas ruas dessa cidade. As coberturas jornalísticas que impulsionaram na carreira foram feitas aí. Quando você, Martinelli, me convidou para assumir a editoria policial, eu não fazia a menor ideia de como atuar nesse tipo de reportagem. Você me tranquilizou, dizendo que era só fazer o que eu vinha fazendo: contar as histórias das pessoas. Em menos de três meses, se não me engano, surgiu a história da agressão policial e da morte do pedreiro Vilson. Alcoolizado, ele se confundiu e tentou abrir a porta da casa ao lado da sua, na Morada do Vale. Foi espancado por policiais, legado para uma carceragem e morreu dias depois, com perfuração intestinal e outras complicações por ter sido brutalmente espancado pelos homens da lei. E foi na delegacia mesmo, ao ouvir uma resposta com desdém do delegado que conduzia o caso, que entendi o que deveria fazer. Ao questioná-lo, ele devolveu: “Tu não é repórter, rapaz? Vai pras ruas e faz a tua reportagem”. Talvez ele não soubesse que estava me dando o melhor conselho possível para a situação. E foi assim, ao seguir os últimos passos de Vilson, que fiz a série de reportagens que me impulsionou para veículos de comunicação do Rio e São Paulo. E, sempre que vou ao Rio Grande do Sul, para visitar a família, faço questão de rodar pela Dorival de Oliveira para revisitar as ruas e os copos de vinho de Gravataí.