3º Neurônio | especial

Homem nu do MAM fala pela primeira vez

O artista Wagner Schwartz, autor da performance

Em entrevista exclusiva a Eliane Brum, publicada pelo El País, Wagner Schwartz, o artista que fez a performance La Bête, no MAM de São Paulo, fala pela primeira vez sobre os ataques que sofreu, nos quais foi chamado de “pedófilo”. O Seguinte: recomenda e reproduz

 

Em 26 de setembro de 2017, o brasileiro Wagner Schwartz, 45 anos, era um artista em plena realização. Ele abria o 35º Panorama de Arte Brasileira, no Museu de Arte Moderna(MAM) de São Paulo, um dos espaços mais prestigiados do Brasil. Sua performance, chamada La Bête (“O Bicho”), partia da obra consagrada de Lygia Clark, uma das mais importantes artistas da história do país. Desde 2005, Wagner já tinha apresentado esse trabalho dez vezes no Brasil e da Europa. Como nas ocasiões anteriores, a experiência artística aconteceu. Para La Bête acontecer é preciso que o público deixe de ser um espectador para se tornar participante. Cada apresentação é diferente da outra porque é o público que conta uma história criada coletivamente, ao manipular o corpo nu do artista como se ele fosse uma das figuras geométricas com dobradiças de Lygia Clark.

Nos dias seguintes, porém, um pesadelo que Wagner não tinha se materializou.

Um fragmento da apresentação foi jogado na internet para provocar fogueira. Nele, uma mulher e sua filha pequena tocavam no corpo do artista durante a performance, como tantas outras pessoas da plateia. Mas, recortada e tirada do contexto, a cena foi convertida naquilo que não era. E Wagner foi chamado de “pedófilo” por milhões na internet.

Em busca de holofotes e eleitores, políticos sem escrúpulos gravaram vídeos e fizeram declarações nas quais condenavam o museu e o artista. Lideranças religiosas fundamentalistas, a maioria ligadas a igrejas evangélicas neopentecostais, semearam ódio ao estimular seus fiéis a se esquecer dos preceitos cristãos mais básicos e a condenar o artista e o museu como se estivessem “a serviço de Satanás”. Grupos ligados a movimentos extremistas de direita promoveram protestos diante do museu, com a adesão de anônimos enfurecidos, e chegaram a agredir funcionários. A internet virou uma praça medieval onde Wagner Schwartz foi linchado como “monstro” e “pedófilo”.

O artista teve que dar um depoimento de quase três horas na 4a Delegacia de Polícia de Repressão à Pedofilia. Um inquérito foi aberto pelo Ministério Público de São Paulo para apurar se houve crime. A CPI dos Maus-Tratos, do Senado Federal, decidiu aproveitar o momento para faturar com seu próprio factoide, convocando os curadores, a mãe da criança e o artista para prestarem depoimento.

De repente, Wagner Schwartz foi transformado num criminoso. E não no autor de qualquer crime, mas num “pedófilo”, uma das figuras que maior repulsa causa na sociedade. Sem vítima, sem fato, portanto sem crime. Em nenhum momento, seus linchadores, os anônimos e os públicos, lembraram que estava ali uma pessoa, com uma história, com uma vida e com afetos. Não importava.

O que importava era manipular o ódio, a mercadoria mais abundante no Brasil atual, com objetivos políticos. Deslocava-se assim a atenção da gravidade do que se passava – e se passa – no país, para uma ameaça inexistente. O truque é velho, usado amplamente em regimes totalitários, como na Alemanha nazista. Mas parece que sempre sobra gente para aderir às manipulações mais triviais. O ódio, como se sabe, é burro.

De repente, o problema não era mais Michel Temer estar no poder mesmo com todas as denúncias de corrupção, mala de dinheiro e conversas comprometedoras. Nem o Congresso mais corrupto da história recente usar dinheiro público para fins privados, pessoais e particulares no balcão de chantagens que se tornou Brasília. Nem o fato de que direitos conquistados pela luta de muitos estarem sendo rapidamente deletados da vida dos brasileiros. Nem o desemprego e a falta de perspectivas. Não.

As milícias de ódio, a serviço de si mesmas e de alguns políticos, criaram uma ficção e milhões se esqueceram de raciocinar, aderindo ao linchamento e produzindo provas contra si mesmos. Vale a pena investigar por que caminhos, objetivos e subjetivos, se tornou possível convencer tantas pessoas a acreditar numa ficção de má qualidade, porque totalmente inverossímil, como a de que o problema do Brasil são pedófilos abrigados em museus e exposições de arte.

A catástrofe é que, a partir da adesão a uma ficção, criou-se pelo menos uma vítima real: Wagner Schwartz.

Quem vai responder pelo que fizeram com sua vida?

Wagner Schwartz recebeu 150 ameaças de morte por algo que inventaram que ele fez. Já não podia andar na rua sozinho. Para imaginar os efeitos sobre ele, basta fazer o exercício de vestir a sua pele por alguns minutos e pensar no que aconteceria com a sua vida, assim como com a vida da sua família, se da noite para o dia inventassem que você cometeu o crime da pedofilia. E seu rosto estivesse nas redes com a tarja mais terrível: “pedófilo”. Não é preciso de muita empatia para imaginar o efeito de algo dessa dimensão. E, mesmo assim, tantos se esqueceram desse exercício básico de humanidade e se tornaram protagonistas e cúmplices da violência contra ele, esta sim criminosa.

Nos dias que se seguiram, inventaram mais. Não bastava transformarem Wagner num pedófilo. Mataram-no com notícias falsas na internet. Em uma ele tinha se suicidado. Em outro, era morto a pauladas. Quem é capaz de imaginar o que é ler a notícia da sua própria morte na internet? O que isso significa para os familiares? Como se vive enquanto tantos o matam repetidamente?

Wagner decidiu fazer a performance em 2005, ao se deparar em Paris com uma das figuras geométricas de Lygia Clark presa numa caixa. Como conta nesta entrevista, ele queria libertar o “bicho” criado pela artista, para que a obra voltasse a ser o que é. Em setembro, no Brasil, Wagner descobriu o que acontece quando um corpo ousa sair da caixa num país tomado pelo ódio e por fundamentalismos, num país de linchadores.

Foi brutalizado. Mas se recusa a seguir sujeitado, convertido em objeto sem voz. Wagner acredita que a resposta mais importante aos ataques é dada pela continuidade do seu trabalho.

Neste ano, o Festival de Teatro de Curitiba propõe uma reflexão, que é também uma ação, sobre os ataques contra a arte. Wagner Schwartz, Elisabete Finger, performer e mãe da criança que participou de La Bête, Maikon K, artista que chegou a ser preso em Brasília durante a performance “DNA de Dan”, na qual seu corpo fica nu, e Renata Carvalho, atriz que foi atacada por ser travesti e encarnar Jesus Cristo no teatro, estão criando uma peça a partir das violências sofridas.

A campanha contra a arte e os artistas não tem nada de inocente. Ela inventa uma justificativa “moral” e gera um apoio popular para sustentar a redução dos investimentos em Cultura. O setor cultural, historicamente carente de investimentos, hoje está em situação desesperadora.

O momento vivido pelo país é tão boçal que, em vez de a população estar pedindo mais investimento em Cultura, parte dela ataca a arte e os artistas, praticamente reivindicando o estreitamento de sua própria vida e da vida de seus filhos. Quanto menos investimento em arte e cultura, menos acesso à arte e à cultura – e mais desconfiança e medo do que não se conhece. A boçalidade do mal vive dias de glória no Brasil, com a colaboração ativa de uma parcela da população.

 

: O artista Wagner Schwartz, numa das posições em que seu corpo foi colocado pelo público durante a performance "La Bête", segura a réplica de um dos "bichos" de Lygia Clark | Foto HUMBERTO ARAÚJO

 

Nesta entrevista, Wagner Schwartz, coreógrafo que vive entre Paris e São Paulo, fala pela primeira vez sobre a violência que sofreu, uma violência cujos efeitos estão longe de acabar. Entre as primeiras perguntas, enviadas por email, e as primeiras respostas se passaram dois meses e meio. O que fizeram com ele teve um efeito brutal na sua vida, seu corpo dói. Quando toca no assunto, partes dele tremem. Qualquer palavra parece quase arrancada. Para quem foi silenciado ao ser transformado em objeto de ódio, falar tornou-se um ato penoso. Na véspera da publicação, sua voz ficou rouca, entrecortada, às vezes sumia.

Mesmo assim, Wagner fez o esforço do gesto, o de acreditar que ainda é possível conviver e dialogar no Brasil atual.

 

Pergunta: Como foi que surgiu a performance? E como é sua relação com essa obra de Lygia Clark?

Resposta: Em 2005, fui convidado para apresentar, em Paris, na programação do Ano do Brasil na França, a minha primeira performance, Transobjeto, que havia estreado no antigo programa Rumos Dança Itaú Cultural, em São Paulo.

Ao visitar as galerias da cidade francesa, me deparei com uma das esculturas “Bichos”, de Lygia Clark, exibida dentro de uma caixa de vidro. Ela era feita de metal. Era maior que minhas mãos. Tinha por volta de oito partes, planas e pontiagudas como golas de camisa, envelhecidas pelo tempo. Na França, os Bichos podem ser chamados de “Bêtes”.

Quando foram criados, na década de 1960, os Bichos permitiam a articulação das diferentes partes do seu corpo através de suas dobradiças. Nas exposições, eles somente realizariam a sua função como obra de arte quando houvesse a participação do público. Em 2005, ao ver um Bicho preso, prometi a ele e a mim mesmo que iria retirar seu corpo de dentro daquela caixa de vidro, para que a relação entre o objeto e as pessoas fosse retomada.

Lygia Clark dizia que um Bicho era um organismo vivo, uma obra essencialmente atuante. Entre o público e ele se estabelecia uma integração total, existencial. Na relação entre ambos não havia passividade, nem do público, nem do objeto. Nesse contato, produzia-se uma espécie de corpo a corpo entre o que ela nomeava como “duas entidades vivas”: o Bicho e aquele que o dobra e o desdobra.

Os Bichos não foram concebidos para serem observados, mas para serem manipulados. Clark considerava a ação das pessoas que formam um público tão importante quanto as suas esculturas, porque, de fato, essa ação é parte integrante de suas esculturas. No momento em que um Bicho é fechado dentro de uma caixa de vidro, desconsidera-se a ação da pessoa, desconsidera-se uma parte da obra, desconsidera-se uma das partes dos Bichos.

À vista disso, eu me senti trancado. E, de fato, precisava encontrar uma forma de transformar a sensação de ter sido preso. Seria impossível, no entanto, “soltar” aquela escultura da caixa de vidro, já que eu não podia adquirir um original. Para que seus movimentos voltassem, pensei, eu deveria me tornar um Bicho. Comprei uma réplica de plástico e criei (a performance) La Bête.

Segundo a própria Lygia Clark, essas esculturas têm um caráter orgânico, as dobradiças que unem seus planos lembram uma espinha dorsal. Quando perguntavam a ela quantos movimentos um Bicho poderia fazer, ela respondia: “Eu não sei, você não sabe, mas ele sabe”. Clark criou uma relação simbólica entre as articulações do objeto e as do corpo humano. Imaginei que, artisticamente, poderia ser interessante dar vida a essa associação.

Em La Bête, tenho a réplica de um Bicho nas mãos. Coloco essa réplica no chão. Ajoelho, deito, sento ao seu lado. Dobro e desdobro suas extremidades em silêncio. Depois de algum tempo, como quem não quer continuar a manobra sozinho, pergunto ao público, até então espectador: “Alguém quer tentar?”. Ofereço então meu corpo aos presentes, como a réplica da réplica de um Bichode Lygia Clark.

 

: A performance "La Bête" se inicia com o artista no centro, manipulando a réplica de uma das figuras geométricas de Lygia Clark | Foto HUMBERTO ARAÚJO

 

P: Só existe La Bête, então, se o público participar?

R: Sim. Uma pessoa após a outra entra em cena. O espectador torna-se participante. Nos primeiros minutos, alguns testam a flexibilidade do meu corpo. Uns acreditam que ele pode ganhar dimensões que seus próprios corpos não têm. Outros veem limites. Os participantes me dobram, desdobram, encolhem e esticam. Com o passar do tempo, alguns acreditam que são como eu, cuidam de mim: fazem massagem, colocam meu corpo em posturas de relaxamento, me abraçam. Outros propõem desafios, pensando que não são como eu: posicionam o bicho que eu me tornei naquele momento em posturas complexas, desafiadora, me deixam cair.

Para que La Bête aconteça, é importante que aqueles que estão na galeria ou no museu estejam dispostos a repensar o lugar do espectador. Lugar esse que, paradoxalmente, é impraticável nesta performance. Algumas pessoas entram em cena para manipular as “dobradiças” do Bicho humanizado. Outras ficam do lado de fora e, do mesmo modo, atuam sobre as ações que vão acontecendo, quando as comentam entre si.

Uma pessoa pode também abandonar a performance. Ninguém é obrigado a aguardar o seu término. E, como La Bête é feito pelo público, as pessoas podem ainda propor um fim à ação.

La Bête evidencia a cultura do outro, o seu jeito de narrar. Depois de sua apresentação no MAM, no Parque do Ibirapuera, em São Paulo, a performance continuou a ser articulada e a se desdobrar, mas de uma maneira diferente daquela que Lygia Clark e eu propomos. La Bête foi para fora de todos os espaços artísticos e continuou, nessas outras articulações, a mostrar a cultura das pessoas que dobram, desdobram e redobram uma performance que, nesse caso, sequer foi assistida.

 

P: Por que a forma como o “bicho” acabou se desdobrando é diferente do que você e Lygia Clark propuseram? Os ataques contra a arte e o artista, assim como os sentidos que foram dados, não poderiam ser lidos como parte da performance ou mesmo uma outra performance de diferentes grupos que se apropriaram de La Bête, ainda que a partir da imagem de celular que um espectador/participante fez e lançou na internet?

R: A arte é um território fora do controle, mas o fragmento da performance – e não a performance – que se desdobrou de nossa proposta foi recontextualizado para articular tarjas ideológicas conservadoras, tais como: “a família brasileira” ou “as nossas crianças”. Esse ato performativo também existe enquanto experiência, mas, ao invés de expandir a relação das pessoas no mundo, ele a silencia através do medo. Esse ato performativo não propõe imagens emancipadoras, mas doutrina, reduz um conceito aberto à propriedade privada da crença de um grupo específico de pessoas.

 

P: Você se lembra do momento exato em que foi tocado pela mãe e pela menina? Como foi aquele momento para você, antes de ele ter sido contaminado?

R: A performance estava chegando ao fim quando percebi que duas pessoas se aproximavam. Como meu corpo tinha sido estendido no chão por outras pessoas e meu olhar fixava o teto do museu, entendi que se tratava de Elisabete, amiga que não via há algum tempo, e de sua filha, somente quando ambas atravessaram meu campo de visão. Aquele momento foi, para mim, como os demais da performance.

 

P: Como foi que você foi tomando contato com o que aconteceu depois?

R: Logo após a apresentação de La Bête, Elisabete, seu marido e eu combinamos de ir ao teatro, na mesma semana. Nos encontramos, assistimos a uma peça juntos. Ao final, me aproximei de outros amigos no foyer e os perdi de vista. Assim que os reencontrei, percebi que o marido de Elisabete estava ao telefone, inquieto. Perguntei se alguma coisa grave acontecia. Elisabete me disse, então, que um vídeo, contendo o breve recorte em que sua filha e ela participavam da performance no MAM/SP, tinha viralizado na internet, sem a proteção do seu rosto e do rosto de sua filha. Fiquei assolado, preocupadíssimo com a família, com a proteção da criança, com os graves problemas que surgem quando uma performance é retirada de seu contexto e espalhada massivamente. Me coloquei à disposição para o que precisassem.

 

P: Como você se sentiu naquele momento?

R: Chamamos dois táxis. Elisabete e seu marido foram para casa. Eu fui para a festa de uma outra amiga. No caminho, constatei, pelas atualizações em meu smartphone, que estava recebendo uma grande quantidade de mensagens de ódio, enviadas por desconhecidos. Em uma delas, me chamaram de “pedófilo”. Fechei os olhos. Apoiei minha cabeça contra o encosto do banco. Desliguei o telefone. Minha pressão caiu. O motorista perguntou se eu estava bem. Respondi que iria ficar bem. Encontrei amigos na festa e comuniquei a todos o ocorrido. Eles ficaram atônitos, asseguraram que se mobilizariam. Não consegui ficar entre eles por muito tempo. No metrô, liguei o telefone e conversei com minha família. Cheguei em casa e me tranquei no quarto. Abri o computador. Averiguando as postagens, entendi que os haters (odiadores) haviam noticiado meu nome e meu trabalho nas redes sociais, sem conhecer a mim ou ao meu trabalho, como ameaças às suas convicções políticas e referências culturais. Tinham provocado mais um equívoco com clímax moral a ser polemizado no Brasil.

No dia seguinte, recebi a foto das três crianças de mãos dadas comigo, durante o agradecimento final da apresentação de La Bête ocorrida no festival IC Encontro de Artes, em 2017, no Instituto Goethe, em Salvador. Novamente, uma outra imagem tinha sido arrancada de seu contexto e usada sem consentimento. As pessoas que não estiveram no festival no qual apresentei a performance converteram a si mesmas em haters e passaram a acusar o que não conheciam.

Na internet, fui morto, como se matam os zumbis da série The Walking Dead. Logo depois, disseram que eu havia me suicidado – tema muito discutido em 2017 após o lançamento de outra série, 13 Reasons Why. Customizaram a violência, com o intuito de tornar real a intenção fabulada nos seriados via streaming. Criaram mortes tão reais para mim quanto as que podem virar filmes. Aproximaram a ficção da vida off-line.

O sangue na tela parece feito de pixel.

 

P: Que efeitos esse “assassinato” teve no homem “real”, na realidade do seu corpo, em Wagner Schwartz?

R: Era como se eu assistisse ao meu próprio funeral. Um sentimento de luto tomou conta do meu corpo. Eu não conseguia ser objetivo nos dias seguintes aos ataques. Minha família e meus amigos me ajudavam a tomar decisões, das mais simples às mais complexas: onde dormir, como me cuidar. Eu não dormia na minha casa, porque poderiam descobrir o meu endereço e concretizar as ameaças que eu não parava de receber. Então, dormia cada dia num lugar diferente. É curioso que as pessoas podiam me ameaçar, mas eu mesmo não tive direito à nenhuma proteção. Amigos me ligavam chorando porque tinham lido sobre a minha morte na internet. Passei muito tempo respondendo às mensagens de todos que me conheciam para dizer que estava vivo. Porque, se não respondesse, iriam acreditar nas fake news. Eu lutava diariamente contra essa sensação de perda, e recebia os mais diversos apoios. Perguntavam se eu estava bem. Eu respondia que sim, automaticamente, porque precisava resistir, ressignificar a morte simbólica. Faço isso até hoje. E ainda há muito trabalho pela frente.

 

P: Você sentiu medo, ainda sente?

R: O medo é algo que eu sinto agora. Li um artigo uma vez, não me lembro onde, sobre pais que tiraram seu filho da boca de um crocodilo. No momento do ataque, eles não podiam sofrer e se entregar. Ambos sentiram que tinham que agir, tirar a criança de dentro da boca do crocodilo. E foi o que fizeram. De certo modo, acho que foi isso o que aconteceu comigo no final de setembro. Era preciso dar uma resposta selvagem aos ataques, assim me tornei um bicho para me proteger do crocodilo que estava me devorando. Meu corpo inteiro enrijeceu. Eu não conseguia falar. Hoje, o medo tem a minha altura, 1m86. Deste medo que protege, eu preciso. Mas o medo que silencia e adoece, eu vou combater.

 

P: Você precisou de muito tempo para começar a responder às minhas perguntas. Como está sendo falar sobre isso?

R: Precisamente, precisei de dois meses e meio para sair do trauma. Era muito difícil falar próximo aos dias dos ataques. As palavras fugiam e ainda me faltam. Neste momento em que sei que minha fala estará na internet, nesta entrevista, a minha voz concreta falha, fica rouca. Então preciso parar, voltar ao meu refúgio para recuperar o fôlego. Preciso ficar quieto, para que o ar volte para o meu corpo, até o momento que consiga reagir.

 

P: Qual é a diferença entre o que acontece ali, no espaço da performance, e a imagem de um fragmento do que aconteceu ali virar vídeo viral na internet?

R: A diferença é que, no museu, o que existe é uma performance de mais ou menos 60 minutos. Na imagem de um fragmento, o que existe é um breve recorte que não pode mais ser chamado de performance. Na imagem de um fragmento não é possível entender o contexto de uma performance. Um recorte, fruto de uma escolha pessoal, pode fazer-se autoritário, quando toma o lugar de tudo o que ele não mostra.

No museu, várias pessoas assistem ao que está acontecendo na cena, em tempo real. No vídeo, apenas quem aperta a tecla enter ou play, não mais no tempo da performance. Na foto, podem ver apenas um segundo retirado de 60 minutos. No museu, as pessoas constroem juntas o conteúdo da performance. Na imagem de um fragmento, cada pessoa é colocada em contato com algo que pode estar sendo manipulado em alguma direção diferente da performance ao vivo.

Conclusão: associaram La Bête ao mais horrível dos transtornos. Na vida pública, retiraram a minha segurança, a de minha família, a de meus amigos e daqueles que se manifestaram a favor da performance, do Museu de Arte Moderna de São Paulo e do Goethe-Institut (Salvador, Bahia). Recebi 150 ameaças de morte de pessoas que estão livres nas ruas, com seus perfis ativos nas redes sociais. Recebi ameaças de anônimos, de robôs.

É necessário reiterar que, em La Bête, quem dobra e desdobra o corpo do artista – que precisa estar disponível para receber o comando dos participantes – são aqueles que se autorizam a entrar em cena ou a falar sobre ela. Participar é uma escolha, não uma condição.

 

: Nesta cena de "La Bête", uma espectadora deixa a plateia para tocar no corpo do artista | Foto HUMBERTO ARAÚJO

 

P: Como eram essas ameaças? Você pode reproduzir algumas?

R: Recebi ameaças como esta: “Não terei piedade se eu encontrar com você na rua, seu cachorro impuro e ‘inútil’”. Me enviaram a foto de um taco de beisebol enrolado com arame farpado contendo a seguinte frase: “Se um dia você chegar perto de meus filhos…”. Houve também quem escrevesse: “Uma hora alguém vai te pegar, se não for a polícia será algum pai de verdade”. Outra: “Não adianta, será encontrado”. Ou ainda: “Vou caçar você e vou lhe esquartejar. Cada parte do seu corpo. Vou sair jogando pelas ruas. Me aguarde!”.

Estas e outras centenas de mensagens foram registradas, com seus autores, em um Boletim de Ocorrência. Elas não param de chegar. Provavelmente receberei mais ameaças após a publicação dessa entrevista. Todas serão registradas.

Fui também caluniado por pessoas que, para permanecerem em seus cargos políticos, aderiram ao movimento daqueles que se autodenominam “cidadãos de bem”, tentando se camuflar sob o véu do cristianismo. Nasci em uma família cristã e sei que cristãos não gostam de sangue. Quem gosta de sangue são os homicidas.

Houve ainda a seguinte intervenção de um político brasileiro no Congresso Nacional: “Eu queria perguntar a ele se ele conhece direitos humanos. Direitos humanos é um porrete de pau de guatambu, que a gente usou muitos anos em delegacia de polícia. Se ele conhece rabo de tatu, que também usamos em bons tempos em delegacia de polícia. Se aquele vagabundo fosse fazer aquela exposição lá no Goiás, ele ia levar uma ‘taca’ que ele nunca mais iria querer ser artista e nunca mais iria tomar banho pelado”.

 

P: Como foi deixar de ser o artista Wagner Schwartz e ser convertido em “o rapaz nu”?

R: Quando se dirigem a mim como o “rapaz nu” ou como o “homem nu”, ao invés de “o artista Wagner Schwartz” ou “Wagner Schwartz, autor de La Bête”, a ação performativa é eliminada e minha existência como artista também desaparece. Afinal, homens geralmente ficam nus no chuveiro, nos parques de Berlim, nas praias de nudismo. Já artistas ficam nus em galerias, museus, teatros.

Será que, nesse caso, não deveríamos nos perguntar por que é tão necessário destacar a nudez que acontece em um trabalho artístico que é mostrado dentro de um museu?

Um exemplo: acredito que ninguém se refira a Lúcio Costa como “o homem vestido de Brasília”, porque neste modo de enunciação faltariam duas informações essenciais – seu nome e sua profissão – e sobraria uma, excessiva – a de estar vestido. Talvez, por um motivo específico, poderiam suprimir seu nome e dizer “o arquiteto que projetou Brasília”, ou ainda “o arquiteto que projetou o Plano Piloto de Brasília”. Nessa formulação, seria possível saber de quem estamos falando e, para quem não tem a referência, bastaria um Google. Mas, se digo “o homem vestido de Brasília”, uma vez que não se trata de enunciar a pessoa, mas sim a pessoa que existe no seu trabalho, não chegaríamos ao Lúcio Costa.

Portanto, a frase “o homem nu do MAM” ou o “rapaz nu do MAM” pode criar imagens distorcidas sobre o que aconteceu na abertura da exposição. Dizer “um homem estava nu em um museu e foi tocado por uma criança” é muito diferente de dizer “um artista, ao fazer a sua performance, foi tocado por uma criança”. A primeira frase pode gerar medo, repúdio. A segunda pode produzir curiosidade – afinal, um dos atributos da arte. Materializar a ligação pessoa-obra afasta as fantasias.

 

P: Você acha que houve uma manipulação da sua performance para ser usada nesse momento político conturbado do Brasil?

R: No Brasil, muitos artistas passaram a ser nomeados como “pedófilos” por políticos equivocados e por aqueles que os seguem. Segundo um artigo publicado no blog Le Club de Mediapart, por Tania Alice, Gilson Motta e Karel Vanhaesbrouck, “para cortar os orçamentos da arte e obter o apoio moral da população, o caminho mais eficaz é a difamação sistemática do artista, que precisa ser retratado como o usurpador, aquele que se enriquece graças ao dinheiro público. Se for acusado de todos os males, torna possível suprimir os subsídios estatais e privados para a arte, já raros, com o apoio da população”.

Quando se liga uma ação artística a uma incitação à pedofilia, o que se faz é colaborar para que o transtorno seja afastado do seu real significado. Essa inversão é o maior perigo para a sociedade. Pedofilia é uma palavra doente, séria, que não deve virar apelido de artista, “cair na rede”, ou mesmo virar même de internet. Pedofilia é doença que não se trata com pessoas tentando fechar museus, agredindo seus funcionários e, muito menos, manipulando imagens e as distribuindo acintosamente.

 

P: De que modo os ataques contra você alteraram a sua vida?

R: O episódio La Bête se aproximou, simbolicamente, do fenômeno da pororoca. De um lado, uma correnteza de informações deturpadas, repetidas em coro por um monte de gente conduzida por trolls e robôs. Do outro lado, pessoas que tiveram oportunidade de construir uma imagem de si e do outro onde uns e outros têm espaço para existir. No encontro das correntes, minha vida pessoal. Enquanto isso, uma força estranha garantia minha sanidade, como me ensinaram Caetano Veloso e Louise Bourgeois.

A partir da primeira semana após os ataques, assisti ao experimento cênico “Paris is burning”, dirigido por Leonardo Moreira, e à peça “Nós, do Grupo Galpão, dirigida por Marcio Abreu, no Sesc Pompeia. Fui à abertura da exposição “Levante, no Sesc Pinheiros, ao lançamento do livro “Fabulações do corpo japonês, de Christine Greiner, na Casa Líquida. Assisti ao lançamento do álbum “Momento íntimo, da banda Porcas Borboletas, no Itaú Cultural, como também ao show “Caetano, Moreno, Zeca e Tom Veloso”, no Theatro NET São Paulo.

Estive em cada um desses eventos com a sensação de que minha espontaneidade tinha sido violada. Só poderia reencontrar essa qualidade nas relações se continuasse a frequentar os espaços de arte e a persistir na criação de meus projetos.

"Mas onde está o perigo, cresce também o que salva”, escreveu o poeta alemão Friedrich Hölderlin. Foi como tentar arrumar a casa com um terremoto do lado de fora, amparado por amigos e por desconhecidos, que, rapidamente, ganharam a figura de amigos.

Muitos deles me ofereceram casa, no Brasil e no Exterior. Advogados, curadores, políticos, médicos me ofereceram amparo. Muitos artistas da música, das artes visuais, do teatro, da literatura, do cinema, da TV, da moda, filósofos publicaram reflexões importantes sobre La Bête. Outros, assim como os YouTubers, fizeram vídeos. Profissionais da dança deram suporte, através das mídias sociais, das universidades, de cartas abertas. Produtores entraram em contato.

Eu não estava só. Era o que todos diziam. Então, não posso dizer que “eu” estava devastado, mas sim que “nós” estávamos atentos. Estamos atentos.

 

P: Como você liga o que aconteceu com você ao atual momento do Brasil (e do mundo)?

R: Moro no Brasil e na Europa. Em ambos os lugares vejo estratégias semelhantes para constranger os artistas, as feministas, o movimento negro, a comunidade LGBTQIA+(Lésbicas, Gays, Bi, Trans, Queer/Questionando, Intersexo, Assexuais/Arromântiques/Agênero, Pan/Poli e mais). E também para constranger aqueles que não se veem representados por uma política conservadora e autoritária. Essas estratégias fazem parte de uma cultura opressiva, que independe de idioma. São as mesmas e vêm sendo ensinadas há anos em muitas escolas, famílias, na vida social. Têm tradição.

Quando o discurso político é substituído pelo discurso moral, ele encontra forte ressonância nas distorções da religiosidade. O discurso moralizante estimula as pessoas a agir e pensar de um mesmo modo para, então, esbravejarem as mesmas frases enganosas em vários idiomas: “querem destruir a família”, “vilipendiam os símbolos religiosos”, “artistas são degenerados”.

As línguas são diferentes, mas as ações se parecem nos efeitos que produzem. O que muda, talvez, seja a forma como a justiça opera, hoje, em distintos lugares, e o número de pessoas engajadas na repetição de tais atrocidades.

 

P: Em 2018, o Festival de Teatro de Curitiba deverá ter, em sua programação, momentos para refletir-agir sobre a censura e a violência contra os artistas e contra a arte. De que forma você vai participar desse momento tão importante de resistência, ação e reflexão?

R: Neste ano, Guilherme Weber e Marcio Abreu, curadores do Festival de Curitiba, convidaram Elisabete Finger, Maikon K, Renata Carvalho e eu para criarmos uma peça na qual teremos a chance de transformar, artisticamente, os ataques que recebemos. Esta experiência será compartilhada com o público de maneira participativa. Esperamos criar um momento de reflexão em conjunto.

 

P: De que forma os ataques contra a arte e os artistas atingem o conjunto da sociedade?

R: Numerosos movimentos ganharam corpo no Brasil a partir do mês de setembro de 2017, nos quais as pessoas envolvidas compreendem que a perda dos direitos – civis, inventivos – gera um espectro na vida daqueles que escrevem, cantam, dançam, atuam, pintam, esculpem os contextos do mundo, assim como na vida daqueles que pensam, agem, se identificam com outras formas de vida diferentes daquela idealizada pelo coro moralizador.

O risco da perda de direitos não está restrito apenas aos autores das performances ou aos artistas das exposições atacadas em 2017 no Brasil. Não é possível ser tímido politicamente ou ainda acreditar que existam pessoas que não serão atingidas por manifestações obscurantistas. O que existe é o desconhecimento. E este, sim, em qualquer área, precisa ser desestabilizado.

 

P: Como isso afeta a democracia?

R: No discurso moralizante não existe preocupação com a democracia. Os que não fazem parte do rebanho precisam ser dele separados, e, para tal, justificam-se atos de violência que nunca poderiam ser justificados.

É preciso desencantar esse mal. Promover um contravento aos valores padrões através de ações sóbrias, como problematizar as circunstâncias de nossas críticas e dar crédito aos contextos em detrimento das calúnias. É preciso estar comprometido com os outros para prevenir, de toda maneira, o sofrimento coletivo causado por uma falsa acusação. Sim, é preciso estar comprometido com os outros.

 

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes – o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas.

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