3º NEURÔNIO

Lula acerta ao destacar vitória de democratas contra fascistoides. Sem ódio

Moraes e Lula na diplomação | Foto Ricardo Stuckert

Recomendamos o artigo do jornalista Reinaldo Azevedo, publicado em sua coluna no UOL


Maiúsculos tanto o discurso de Luiz Inácio Lula da Silva, presidente eleito, no dia da diplomação, como o de Alexandre de Moraes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral e membro do STF. A importância dos dois tribunais na preservação do estado de direito, note-se, foi exaltada pelo eleito. Ambos lembraram que foi preciso vencer a delinquência política — a expressão é minha.

O petista chorou de novo. Já havia acontecido antes. Em 2002, por ocasião de sua primeira diplomação, acusou o preconceito que pesava contra ele em razão de sua formação escolar. Fez alusão àquele evento, há longínquos 20 anos. Demagogia? Será? Transcrevo:

“Na minha primeira diplomação, em 2002, lembrei da ousadia do povo brasileiro em conceder – para alguém tantas vezes questionado por não ter diploma universitário – o diploma de presidente da República. Reafirmo hoje que farei todos os esforços para, juntamente com meu vice, Geraldo Alckmin, cumprir o compromisso que assumi não apenas durante a campanha, mas ao longo de toda uma vida: fazer do Brasil um país mais desenvolvido e mais justo, com a garantia de dignidade e qualidade de vida para todos os brasileiros, sobretudo os mais necessitados. Quero dizer que muito mais que a cerimônia de diplomação de um presidente eleito, esta é a celebração da democracia.”

“Ah, então os votos dados a Bolsonaro democráticos não foram?” Li essa interpretação por aí. É burra. Os votos podem ter sido, mas e o candidato? Participava de um processo eleitoral que buscava sabotar. Como esquecer que o atual presidente ameaçou com a não realização das eleições?

Já escrevi e reitero: invejo a resiliência de Lula e o seu sangue frio. Ele se torna a maior figura da história política brasileira. Estava entre as grandes com os seus dois primeiros mandatos. Tentaram enterrá-lo vivo, como ele mesmo disse, mas sobreviveu e venceu a eleição depois de 580 dias na cadeia em razão de uma condenação sem provas. Isso o torna singular não só porque o conjunto é inédito, mas porque volta ao poder liderando uma frente bem mais ampla do que seu partido original, trazendo na aliança forças que chegaram a se alinhar com seus algozes no passado. Não é tarefa corriqueira.

No seu calvário, perdeu mulher, irmão, neto…Nunca se entregou nem nunca tentou negociar uma saída que, sei lá, pudesse lhe amenizar a pena em troca da aposentadoria da vida pública. Lutou por justiça, e ela se fez, ainda que um tanto tardia e à custa de muita dor. O futuro mandatário não ser uma pilha de ressentimento e de desejo de vingança é um dos milagres dessa resiliência. É para poucos. É um choro demasiadamente humano. Para censurá-lo por isso, seria preciso ter uma história de resistência maior do que a sua. E, com efeito, o resultado das urnas é “a celebração da democracia”. A desordem, com aspectos de terrorismo, protagonizada por bolsonaristas na noite desta segunda, evidencia que está certo.

Mais: há 20 anos, Lula chorou, mas não havia golpistas e terroristas às portas dos quartéis sendo tolerados por militares. Nem havia um presidente da República insuflando a subversão. Passadas duas décadas, temos o que se vê, fruto da desordem institucional instaurada pela Lava Jato e que resultou na tragédia em curso. O projeto derrotado no segundo turno era a celebração da ordem fascistoide.


Legado perverso e extrema-direita internacional


Lula se referiu ao “legado perverso” de Jair Bolsonaro — e é perverso mesmo, sob qualquer ângulo que se queira — e notou que a extrema-direita golpista é internacional. Transcrevo:

“Nestas semanas em que o Gabinete de Transição vem escrutinando a realidade atual do país, tomamos conhecimento do deliberado processo de desmonte das políticas públicas e dos instrumentos de desenvolvimento, levado a cabo por um governo de destruição nacional. Soma-se a este legado perverso, que recai principalmente sobre a população mais necessitada, o ataque sistemático às instituições democráticas. Mas as ameaças à democracia que enfrentamos e ainda haveremos de enfrentar não são características exclusivas de nosso país. A democracia enfrenta um imenso desafio ao redor do planeta, talvez maior do que no período da Segunda Guerra Mundial. Na América Latina, na Europa e nos Estados Unidos, os inimigos da democracia se organizam e se movimentam. Usam e abusam dos mecanismos de manipulações e mentiras, disponibilizados por plataformas digitais que atuam de maneira gananciosa e absolutamente irresponsável. A máquina de ataques à democracia não tem pátria nem fronteiras.”

Na mosca! Vimos o caso da Alemanha. Três mil agentes das forças de segurança foram às ruas para desmontar uma célula terrorista. Houve mortos no Capitólio, nos EUA. Mundo afora, o extremismo não reconhece o próprio regime de liberdades. Aqui no Brasil, criminosos pregam golpe de estado em nome do que chamam “o verdadeiro poder do povo”. Quando dizem “Lula não toma posse”, pergunta-se: como é que isso seria feito? Em nome do quê?

Essa delinquência é mesmo internacional. Por mais que Bolsonaro seja notavelmente desinformado até sobre as teorias que embalam a extrema-direita, não sendo particularmente dotado das luzes das trevas — ele não domina o instrumental que embala essas correntes mundo afora —, outros à sua volta sabem muito bem o que praticam. O “Mito” é o líder carismático da pregação fascistoide. É a expressão nacional de uma Internacional do ódio, movimento organizado nos EUA, na Alemanha, na França, na Polônia, na Hungria… A agenda pode variar ao sabor de cada localismo, mas retórica é sempre a mesma.

É claro que as redes sociais têm uma importância central nesse processo. E é preciso que esse papel seja analisado, especialmente na divulgação das “fake news”. Valores que fazem parte do pacto civilizatório estão sob ataque. Muitas vezes me perguntam se eu aceitaria debater com golpista. Não! Porque corresponderia a reconhecê-lo como personagens aceitável da vida pública. Golpistas não precisam de debate. Precisam de cadeia.


Democracia social


O eleito também recuperou, e com acerto, a dimensão social da democracia. Ela não pode ser um instrumento para condenar os deserdados ao conformismo, de modo que a igualdade garantida na letra da lei seja apenas um instrumento para acobertar as injustiças. Afirmou o presidente eleito:

“É preciso entender que democracia é muito mais do que o direito de se manifestar livremente contra a fome, o desemprego, a falta de saúde, educação, segurança, moradia. Democracia é ter alimentação de qualidade, é ter emprego, saúde, educação, segurança, moradia. Quanto maior a participação popular, maior o entendimento da necessidade de defender a democracia daqueles que se valem dela como atalho para chegar ao poder e instaurar o autoritarismo. A democracia só tem sentido, e será defendida pelo povo, na medida em que promover, de fato, a igualdade de direitos e oportunidades para todos e todas, independentemente de classe social, cor, crença religiosa ou orientação sexual.”

Ou a democracia se realiza no social ou é beletrismo jurídico. É claro que não faz sentido garantir direitos sociais à custa de se perder a liberdade. Esse debate está superado. E é inaceitável que se possa defender um regime, ainda que fundado em leis, que seja reprodutor de desigualdades. É preciso que os pobres tenham motivos para defender as regras do jogo — e, convenham, foram eles, na sua maioria, a preservá-las. Precisam enxergar a perspectiva de mudar de vida.

Concluo.

Nada, rigorosamente nada!, há de errado com o discurso de Lula. Os golpistas que ainda estão nas ruas, fazendo arruaça, sob o silêncio cúmplice do presidente da República, evidenciam que o petista está certo. Sim, há uma luta entre “nós” e “eles”, agora para valer. Entre os que defendemos a ordem democrática e aqueles que pretendem solapá-la. Negar a evidência corresponde a se juntar, em espírito ao menos, aos arruaceiros, sem nem ter a coragem dos criminosos. Ou, então, criminoso se é, mas do gênero covarde.

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