a coluna da jeane

Meu pai

Ele é aquele cara que se dá bem com todo mundo. Não conheço ninguém que não goste dele. Mesmo que já tenha acontecido algum desentendimento, a pessoa continua achando que ele é gente boa. O lado ruim é que uma simples ida ao mercado leva o triplo do tempo, porque ele encontra uma dúzia de conhecidos no caminho e quer trocar uma palavra com todos. E sempre convida: “passa lá em casa para um chimarrão” (antes do coronavírus, claro).

Imagina alguém que perdeu um pulmão e conta isso fazendo graça? E faz a gente rir quando relata os desmaios que sofreu até descobrir que o coração estava parando e implantar um marcapasso? Ele tem um jeito leve de lidar com os problemas que eu queria ter puxado, mas herdei a ansiedade materna. Já vi meu pai sem as pontas de dois dedos, pingando sangue, e super tranquilo, no dia que teve um pequeno acidente com a máquina de cortar grama.

Só agora, mais velho, foi que ele começou a se queixar de algumas dores, porque desenvolveu a síndrome do túnel do carpo. E acho que o que o incomoda mais não é mesmo a dor, mas a dificuldade de fazer até coisas simples quando fica ruim. Ele é acostumado a “botar a mão na massa”, do tipo que se não sabe de algo que precisa, vai lá e tenta aprender fazendo. É difícil lidar com os limites do corpo.

Tanto que foi só depois dos 70 (e do marcapasso), que ele começou a reconhecer que não pode mais fazer tudo que fazia antes, que a idade está chegando e a saúde não é mais a mesma. Mas nem parece que vive há 14 anos com um pulmão só, e tira onda comigo quando faço careta para carregar um pouco de peso. “Mas isso nem tá pesado!”, ele afirma, parecendo mais jovem do que eu.

Ele também foi fundamental para fazer de mim uma pessoa criativa, de um jeito muito espontâneo. Nos meus primeiros anos de vida, meu pai trabalhava como carpinteiro numa empresa de transformadores, e juntava as aparas de madeira de iriam para o lixo, cortava e lixava, transformando em tijolinhos e telhadinhos para mim. E eu adorava minhas “madeirinhas”, com as quais costumava brincar numa mesinha que ele também fez. Cresci vendo meu pai transformar madeira em várias coisas. E também construindo a casa onde moramos até hoje.

Quando criança eu achava que ele era capaz de consertar tudo, praticamente um super-herói. Que podia construir o que quisesse se tivesse as ferramentas certas à mão. E acho que acreditei por muito tempo. Eu já tinha 25 anos quando ele passou pela cirurgia do pulmão e foi um baque imenso ver meu pai saindo do centro cirúrgico ainda apagado da anestesia, vê-lo num leito de UTI com caninhos no nariz… Ver minha maior referência de força numa situação de fragilidade me deixou insegura, como se o chão fugisse dos pés. Mas o jeito dele de lidar com tudo aquilo, com leveza e bom humor, aliviou a barra.

Ele também me ensinou a amar e valorizar a natureza. Não tem nada que o pai goste mais do que ir pro mato, mexer na terra, tratar os bichos… Acho que no dia em que ele não puder mais ir para a chácara, a vida vai perder o sentido. E nesses tempos de pandemia, as “fugidas” para aquele pedaço de terra quase na Glorinha têm sido fundamentais. É o único lugar para onde ele e a mãe têm saído. No dia seguinte o pai sempre comenta que dormiu muito melhor naquela noite.

Antes da chácara, ele aproveitava toda terra que pudesse para plantar. Quando nos mudamos para essa casa, os vizinhos de ambos os lados ainda não tinham construído, e o pai pediu para fazer hortas. Também aproveitava espaços no terreno da vó Elza. Tive o privilégio de crescer comendo legumes, verduras e algumas frutas da colheita do meu pai. Cultivados com amor. Até hoje acho que os vegetais comprados no mercado são estranhos.

Meu pai também é aquele senhorzinho fofo que vira avô de todas as crianças que visitam nossa casa. Claro que o xodó dele é o Pedro (e agora será o Gael também), mas ele parece aqueles avôs de novela, que brincam, fazem rir e dão carinho para qualquer criança. No entanto, ao mesmo tempo que ele é doido para ter uma netinha também, entende minha decisão de não ter filhos. Até acha que já estou chegando numa idade que é perigoso engravidar. Como é bom ter essa compreensão.

Apesar de ser bem antiquado para algumas coisas, na prática meu pai é até moderno para a geração dele. Fazia almoço, trocava fraldas cheias, dava banho, cuidava das crias mesmo. Sempre foi parceiro da minha mãe. Inclusive a história que ouço aqui é que ela não queria casar antes de terminar a faculdade, e ele disse que queria que casassem para somar, jamais para atrasar a vida um do outro. Então, como já tinham passado dos 30 anos, a mãe aceitou marcar o casamento uns meses antes da formatura. E eu já estava na barriga quando ela recebeu o diploma. Meu pai botou até gravata para ir na cerimônia de colação de grau. Não é um exemplo de companheiro?

Outra mostra de que ele é mais moderno do que parece: quando contei que estava planejando ir morar no Rio, meu pai deu força. “Tem que ir mesmo enquanto é nova”, afirmou, me surpreendendo, porque ele sempre foi bastante protetor com a menininha dele. Acho que nessa altura do campeonato já tinha percebido que eu não seria como ele tinha idealizado, e mesmo assim torcia pela minha felicidade. Ficou todo orgulhoso quando lancei meu livro! Ele tem pouco estudo porém entende quando explico que a literatura não costuma dar retorno financeiro imediato mas é preciso plantar (e divulgar) para poder colher. E de plantio ele entende.

É, eu sou privilegiada. Abençoada por ter um paizão desse. Claro que ele não é perfeito, porque ninguém é. Mas aprendo até com os defeitos dele. E estou muito feliz por ter voltado para casa e poder comemorar com ele neste domingo. Queria que não tivesse esse vírus por aí para poder abraçar apertado e sem medo. Mas meu irmão e eu vamos celebrar muito esse dia com o velho, e agradecer a Deus por ter deixado ele com a gente por mais tempo. E rezar para que esse tempo seja longo.

Um feliz e abençoado dia a todos os pais!

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