memória

Nadir Rocha, o homem que parou um canhão; Uma memória após o falecimento do ’vereador do povão’

Nadir ao tomar posse como prefeito interino pela primeira vez em 15 de outubro de 2011

Três dias de governo após a cassação de uma prefeita, a política da cidade em ebulição e um dos repórteres mais temidos do Estado na porta do gabinete: só Nadir Rocha para dar uma janelinha no Giovani Grizotti. O jornalista Rodrigo Becker, do Seguinte:/Canoas que foi secretário de Comunicação no governo interino do político falecido na semana passada, conta à coluna uma lembrança daqueles dias

 

Nadir Rocha era um homem de qualidades e defeitos bem marcantes. Mas não era um sujeito mesquinho, nem injusto. Era prático. E certamente não gostava que fossem injustos com ele. Tive a oportunidade de trabalhar com o Nadir por um breve período enquanto ele era prefeito interino em outubro de 2011. E um episódio em particular me marcou naqueles longos dias difíceis.

Numa quarta-feira à tarde, perto das 17h, o telefone interno do gabinete do prefeito toca e atendo por estar mais perto. Do outro lado da sala, o então deputado estadual Marco Alba conversava com o prefeito em exercício, Nadir Rocha. Coube a ele, que presidia a Câmara em 2011, assumir pela primeira vez a interinidade do governo com a cassação, dias antes, da prefeita Rita Sanco e seu vice, Cristiano Kingeski. Marco sabia que a tensão política daquelas dias era intensa e terrível; apoio político e o máximo de tranquilidade possível seria útil para superar as incertezas daquele momento.

A frase que eu ouviria ao telefone, porém, não era exatemente tranquilizadora.

– Oi… o Grizotti está subindo. Disse que só vai embora quando o prefeito falar com ele e não quis esperar aqui embaixo.

Grizotti, o Giovani Grizotti, é repórter da RBS TV e um dos principais jornalistas investigativos do Estado. Seus métodos nem sempre são bem aceitos – especialmente pelos políticos que, em geral, viram alvo de suas matérias. No entanto, faz sucesso com o povo: coragem para por o microfone na cara de quem quer que seja, ele tem.

Vinha convencido de que o novo prefeito de Gravataí era um malandro. Havia recebido naquele mesmo dia um compêndio em que o documento mais importante era a demissão de Nadir do Grupo Hospitalar Conceição, o GHC, onde foi funcionário por quase 20 anos até o início dos anos 2000. Após uma sindicância e um processo administrativo, foi exonerado do cargo público por, supostamente, 'furar a fila' de consultas e cirurgias que os hospitais do grupo faziam, à época. Grizotti queria uma declaração de Nadir sobre o caso para uma matéria que, me disse ele, já estava pronta e iria ao ar no jornal da noite, que naqueles dias começava por volta das 19h15.

Atendi o Grizotti em uma sala ao lado do gabinete do prefeito. Pedi uns minutos para avisá-lo do que se tratava e ofereci um café. O repórter repetiu o que provavelmente disse à atendente na portaria da Prefeitura, instantes antes.

– Só saio daqui se falar com ele. Nem que entre porta adentro.

Não precisava: Nadir iria atendê-lo. Mas era razoável que se preparasse. Entendido isto, aceitou esperar à porta enquanto eu discutia com Nadir o que seria declarado.

– Não precisa. Manda ele entrar – disse Nadir, com uma confiança que, digo hoje, me preocupou e franziu a testa de Marco Alba ainda na mesma sala. Tentei argumentar que talvez fosse melhor consultar um advogado, ver melhor o que há no processo, tentar descobrir o que de fato o repórter sabia…

– Não precisa, pode mandar ele vir – insistiu Nadir.

Olhei para o Marco que assentiu com a cabeça. Estava mais confiante em Nadir do que eu. Mais tarde naquele mesmo dia, eu entenderia o porquê.

Grizotti e o cinegrafista entraram na sala principal da Prefeitura com a câmera ligada e já apontaram a inquisição contra Nadir. Com uma calma extraordinária, ele convidou que sentassem. A conversa não seria tão rápida assim.

– O senhor foi demitido do Hospital Conceição acusado de irregularidades e prática de fura-fila. Pode explicar isso? – questionou o repórter.

– Posso. Fui perseguido porque não quis me filiar ao PT.

Nadir tinha entendido que a denúncia que chegara ao Grizotti era provavelmente política e, na política, começou a descontruir a narrativa que fizeram ao repórter. Contou que ajudou muita gente, mas que nada disso era fura-fila. Como sabia como marcar as consultas e conhecia os médicos, orientava pacientes em desespero por um atendimento mais especializado. Lembrou que nos anos 90 não tinha sistema de agendamento como existe hoje, com lista auditável, e que os médicos em geral estendiam o turno para atender um ou dois pacientes a mais por dia em razão da amizade que tinham com Nadir.

– Tinha gente morrendo que se não fosse por isso, nunca veria um médico. Esperavam meses, anos por uma consulta e não conseguiam. Se o sistema funcionasse direito, ninguém precisaria disso, mas não funcionava – contou.

– Eu era do sindicato. Quando o PT assumiu lá, me pediram para me filiar senão iriam fazer isso e aquilo contra mim. Eu disse que não. Então começaram a me perseguir. Eles me perseguiam porque eu ajudava o povo.

Grizotti ouviu Nadir por quase uma hora sem que o prefeito em exercício lhe mostrasse um único documento, uma foto, nada sobre seu tempo no GHC. Saiu de lá e só me disse que tinha o material que precisava.

A reportagem, no entanto, nunca foi ao ar.

Dias depois, falei com o repórter de novo, por outras razões. Grizotti é ativista no movimento tradicionalista e Gravataí costuma sediar um dos maiores eventos dessa natureza no Estado, o Rodeio Internacional do Mercosul.

– Percebi que ele foi franco. Não fugiu – confidenciou.

Não seria a primeira nem foi a última crise que surgiria naquela interinidade no comando do governo. Mas o caminho que Nadir escolheu para resolver o problema diz muito sobre ele. Desarmou a hecatombe sobre a própria cabeça admitindo atitudes não muito ortodoxas, mas comuns na política e na vida das pessoas longe das camadas mais privilegiadas da sociedade. Certo ou errado, Nadir agia pelo que julgava justo. Não via dificuldade em defender tudo isso diante de quem quer que fosse – por que não o faria diante do temido e famoso repórter?

Saí do gabinete aquele dia convencido de que a coerência é um valor em cada indivíduo e que a franqueza com que lidamos com ela também é capaz de parar a bala de um canhão.

 

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