Nesta quarta postei polêmicas da política local, falei ao telefone, saí do site e voltei para comentar coisas mundanas. Entrei na porta e, à direita de quem chega no Seguinte:, dentro do aquário, estava o Vilmar Madrid. Em seu computador, diagramando.
Nesta manhã acompanhei suas lágrimas no enterro da mãe, Vilma. Aos 72 anos. Assassinada em casa, com uma pancada na cabeça e mais de 15 facadas. Antes que os que têm um travessão apontem o cisco no olho do outro, era uma serva de Deus, com os filhos todos com ficha limpa. Tudo indica latrocínio.
Que tal?
Eu não conhecia a dona Vilma, nome da minha avó, de quase 90 anos, e que há anos não visito em Passo Fundo.
Mas eu conheço o Vilmar.
– Tá louco, o que estás fazendo aqui? – perguntei a ele, dizendo que já havia me alcoolizado à tarde para aguentar o dia. A quarta em que ele sofria. A manhã em que ele, aos 42, sepultou a mãe.
– O pai me ensinou isso, a cumprir os compromissos.
O pai, Ataídes, faleceu há quatro anos.
O Vilmar, que mora em Alvorada, não tinha nenhum compromisso de aparecer para trabalhar hoje em Gravataí. São 19h, não tem quase ninguém aqui. O Vilmar veio.
O Vilmar eu conheço desde 96 e poucos, quando cheguei a Gravataí. Eu um estagiário de jornalismo, ele, um pouco mais novo que eu, descobrindo a informática, na época do disquetão e dos caracteres verdes na tela, como tantos guris da época. O Correio de Gravataí, essa potência diária de hoje, era semanal. Tinha só uma cor, além do tradicional preto e branco: azul, na capa e contracapa. Só nas manchetes. Horrível!
O fechamento era na quinta, mas por óbvio fazíamos com que o jornal fosse uma espécie de diário da sexta-feira. Fechávamos a edição aos 47 do segundo tempo. Com as notícias mais quentes possíveis. Seu Roberto, o Gomes de Gomes, dono, mas sempre jornalista, não reclamava. Gostava, até. Não desconfio, tenho certeza! O pessoal do Industrial, que é como se chama o setor da impressão, chiava.
– Se o jornal é semanal, por que fechar na quinta de noite?
Edição finalizada, eu e Vilmar íamos encarar as madrugadas da parada 62. Ele esperava o ônibus para Alvorada. Eu para Porto Alegre. Era tipo 4h.
– Pega o Sanga Funda que eu pego o Norte via Sul – brincávamos.
A vida nos separou profissionalmente por algum tempo, mas nos reunimos novamente em 2015, no Seguinte: e na nossa Gráfica – aqui temos uma daquelas máquinas rotativas que cospem jornais em segundos.
Que cara agradável é esse Vilmar!
Sempre nos referimos a ele como “a cota de bondade” do Seguinte:.
Imagina um camarada que todos os dias – TODOS OS DIAS! – traz um bolo caseiro, ou compra uma bolachinha, ou abre um saquinho daquelas pipoquinhas da vovó, e leva de mesa em mesa, oferecendo o agrado?
– Pega mais um – ele diz.
Um cara que chega todos os dias – e ele sai de madrugada da gráfica! – e cumprimenta todas as pessoas. TODAS AS PESSOAS, TODOS OS DIAS!
O Vilmar perdeu seu cãozinho há alguns meses. Choramos abraçados. O Vilmar adotou uma gatinha e os filhotinhos da rua. O Vilmar trouxe uma caneca para cada um de nós, de presente de Natal. O Vilmar trouxe um paninho de prato do Inter, para os colorados, e um paninho de prato do Grêmio, para os gremistas, no ano passado.
O Vilmar perdeu a mãe brutalizada com 15 marcas de facadas no corpo. Pequenina, ela repousava no caixão. Estava muito bonita, mas com marcas nas mãos, porque parece ter lutado. Queridíssima na comunidade, quatro pastores, de diferentes lugares da região, rezaram por ela. Cânticos foram entoados antes da despedida do corpo físico.
Além dos outros filhos Odemar, Dilamar e Maralúcia, choravam ao lado do corpinho miúdo o Vilmar e a esposa, a nora da Vilma, a Daniela, que estava em desespero pela partida da sogra, o que mostra como era a relação dessa família. Eu enxergava neles a relação de minha companheira, Thiane, com minha mãe, Diva. De mãe e filha.
Enquanto questionava Deus, eu ouvia vozes seguras cantando "segura na mão de Deus e vai”.
O Vilmar está a uns 10 metros de mim, agora, em sua sala. Óbvio que sei que o Vilmar está revoltado, que o Vilmar quer justiça. Eu, um defensor da vida, um cara contrário à pena de morte, luto neste momento contra um sentimento que estupra meu pensamento: “se fosse minha mãe, eu iria querer matar quem fez isso!”.
Mas eu não ouvi nada disso do Vilmar. Eu não ouvi o Vilmar questionar Deus, ou os homens. Porque o Vilmar é pura bondade. O Vilmar é de verdade. Vilmar é o que deveríamos ser.
Nestes tempos de intolerância, Vilmar, eu queria, eu quero muito, ser como tu.
Força, meu irmão!