Este era um texto planejado para abrir o dia 1º de abril, data ideal para chamar atenção sobre a importância da apuração jornalística, pensei. Tenho para mim que a informação precisa, de fonte confiável, é o único meio de mantermos a sanidade diante de tudo que estamos vivendo.
Queria que os leitores do Seguinte: tivessem lido estas linhas ontem, enquanto realizavam suas atividades matinais, como saborear uma boa xícara de café, por exemplo, porém a vida de jornalista não tem rotina. Como diz o comercial famoso daquela rádio, tudo muda em minutos – e a programação quase sempre cede ao imprevisto.
O dia da mentira se esvaiu, mas as fakes e os atropelos de ontem não. Nem os de antes de ontem, ou os do ano passado… do retrasado… Difícil saber quando os efeitos cessarão.
A primeira mentira de ontem é a mais vergonhosa. O presidente da República, mais uma vez, derrapou em sua cegueira ideológica e tascou o dedo, sem pensar (o que não é novidade), compartilhando um vídeo denunciando desabastecimento na Ceasa de Belo Horizonte. Apagou após a imprensa checar e desmenti-lo – mais uma vez – como antes de ontem, ou no mês passado, ou em algum dia do ano eleitoral (você escolhe).
Ser jornalista está cada vez mais difícil. Estudamos, nos especializamos para informar com precisão, mas além de narrarmos fatos, estamos sendo obrigados a agirmos como babás daqueles que de forma irresponsável se aproveitam dos que não têm a capacidade de discernir fatos das mentiras. Fazemos esforço coletivo, apelamos aos especialistas para que as pessoas entendam a urgência da mensagem e fiquem em casa. Aí, vem um pronunciamento… meia dúzia de palavras equivocadas e o trabalho se perde em meio a destempero e falta de decoro.
Não basta apagar e pedir desculpas depois. O mal feito está feito. A fake news se espalha mais rápido que o novo coronavírus. Tal como a temida infeção, causa danos muitas vezes irreversíveis. Compromete a ponto de não adiantar enviar um helicóptero para sobrevoar a Ceasa mineira, nem por uma equipe a circular no solo e mostrar toneladas de alimentos à venda em rede nacional. Preferem um vídeo de um desconhecido qualquer a reconhecer um trabalho isento.
A notícia falsa é tão traiçoeira que cega até olhos treinados para identificá-la. Durante a tarde, enquanto eu tentava checar a realização de um protesto no gabinete do prefeito de Viamão (o qual optei por só noticiar nesta quinta-feira, após ouvir manifestantes e administração), assisti a um colega da imprensa perguntando em coletiva no Palácio do Planalto sobre o desabastecimento que “havia ocorrido” na Ceasa de BH. Não é um “foca”, termo que usamos para nos referirmos a novatos na profissão. Era jornalista das antigas, com cabelos brancos e terno caro. Prefiro acreditar que foi ele ludibriado em sua boa fé.
O Humberto (Gessinger) já dizia: “quem mente antes diz a verdade”. Quem tenta corrigir vira inimigo da massa seduzida por paixões ou embriagada em suas alienações. Os algoritmos das redes sociais prendem as pessoas em suas bolhas. O Whatsapp metralha qualquer palavra mal cuspida que recircula em redomas semelhantes, sempre impermeáveis ao contraditório. Não há interpretação de texto, memória social e cultural que possam embasar o mínimo censo crítico da realidade.
Basta dizer que a humanidade está enfrentando uma ameaçadora pandemia porque não sabe lavar as mãos. Eis a dimensão do problema.
Checar, produzir, apurar, editar, revisar, publicar. Fases e mandamentos da boa informação que demandam tempo. Agora também temos que compartilhar, interagir e ainda correr contra a máquina para desmentir.
Preciso de mais horas em meus dias para tanto.
Na tentativa de furar a bolha, viramos inimigos do povo. É mais interessante acreditar no boato do funcionário do mercado com covid-19 que segue trabalhando e está contaminando Gravataí inteira, ou do médico do Becker que diz não dar conta de tantos pacientes infectados, ou do empresário famoso escondendo a doença. Só para ficar nos exemplos locais.
Quem dera o vírus da desinformação morresse com água e sabão, pois bastaria dar dicas de “higiene comunicacional” – eu nem iria querer álcool gel. Mas essa, assim como a covid-19, não é só uma "gripezinha".
Quando um presidente faz piadas pejorativas com “furo” de reportagem e recebe aplausos, quando empresários que consideram cinco ou seis mil mortes “aceitáveis” desde que a economia – e suas fortunas – sejam salvas têm seus discursos relativizados fica fácil entender porque inverdades e meias verdades, como a cloroquina, ganham eco entre pequenos comerciantes locais e políticos populistas "preocupados com os empregos". É mais fácil acreditar na solução mágica do que dar crédito a quem os tenta trazer à razão.
Afinal, o mensageiro que morra quando não se gosta da notícia que ele carrega, não é mesmo?
Neste reino moderno cheio de "napoleões de hospício", como costuma dizer o Rafael Martinelli, vejo máscaras se perdendo entre os discursos oficiais e as conversas “em off”, a marcha da insensatez avançando e o ódio oculto pelos grupos do Telegram ou do Whatsapp tomando a praça. Nesse baile entre emissor e receptor, quem dança é a mensagem, viciada na origem ou não compreendida no destino.
Enfim, o texto programado para a manhã de 1º de abril é concluído na madrugada do dia 2. Não escapei da rotina de ser pautado pela informação, mas escolhi abrir mão de horas preciosas de descanso e tentar furar algumas bolhas que confinam discernimentos Gravataí adentro. O dia da mentira acabou, mas sobrou muita fake news por aí. E em tempos de coronavírus, notícia falsa – e discurso populista – podem matar.
Mensageiro a postos!