“A cúpula da OCX, reunindo os atores do poderio asiático, traçou um mapa de percurso para o fortalecimento do mundo multipolar”. Recomendamos o artigo do jornalista Pepe Escobar, traduzido por Patricia Zimbres para o 247
Em meio a graves tremores no mundo da geopolítica, é bem apropriado que a cúpula de chefes de estado da Organização de Cooperação de Xangai (OCX) do presente ano tenha tido lugar em Samarcanda – que há 2.500 anos vem sendo a suprema encruzilhada das Rotas da Seda.
Quando, em in 329 AC, Alexandre o Grande chegou à então cidade sogdiana de Marakanda, parte do império Aquemênida, ele ficou maravilhado: “Tudo o que ouvi de Samarcanda é verdade, exceto que ela é ainda mais bela do que eu havia imaginado”.
O filme avança para um editorial de Shavkat Mirziyoyev, Presidente do Uzbequistão, publicado antes da cúpula da OCX, no qual ele ressalta que Samarcanda, a partir de agora, “pode vir a se tornar uma plataforma capaz de unir e reconciliar estados com diversas prioridades de política externa”.
Afinal, em termos históricos, do ponto de vista daquele marco das Rotas da Seda, o mundo sempre foi “percebido como único e indiviso, e não dividido”. Essa é a essência de um fenômeno único – ‘o espírito de Samarcanda’.
E aqui, Mirziyoyev conecta o “Espírito de Samarcanda” ao “Espírito de Xangai” original, criado em inícios de 2001, poucos meses antes dos acontecimentos de 11 de setembro, quando o mundo, quase que do dia para a noite, foi forçado à luta e a guerras intermináveis.
Durante todos esses anos, a cultura da OCX vem se desenvolvendo de uma maneira distintamente chinesa. Inicialmente, os Cinco de Xangai focavam a luta contra o terrorismo – meses antes da guerra de terror (itálicos meus) lançada pelos Estados Unidos, metastatizada do Afeganistão ao Iraque e ainda mais além.
No decorrer dos anos, os “três nãos iniciais” – não às alianças, não à confrontação, não à hostilidade contra terceiros – acabaram por equipar um veículo híbrido e rápido, cujas ‘quatro rodas’ são ‘política, segurança, economia e humanidades’, contando ainda com uma Iniciativa de Desenvolvimento Global, que em sua totalidade contrasta nitidamente com as prioridades do Ocidente hegemônico, sempre propenso ao confronto.
É possível afirmar que o principal resultado da cúpula de Samarcanda, desta semana foi o Presidente chinês Xi Jinping ter apresentado a China e a Rússia, juntas, como “potências globais responsáveis”, voltadas a assegurar o surgimento da multipolaridade e recusando a “ordem” arbitrária imposta pelos Estados Unidos, com sua visão de mundo unipolar.
Sergey Lavrov, o Chanceler russo, descreveu como “excelente” a conversa bilateral de Xi com o Presidente Putin. Xi Jinping, antes de seu encontro, e dirigindo-se diretamente a Putin, já havia ressaltado os objetivos que a Rússia e a China têm em comum: “Face às colossais mudanças em escala global de nossa época, sem precedentes na história, estamos prontos, juntamente com nossos colegas russos a dar o exemplo de uma potência mundial responsável e para desempenhar um papel de liderança, a fim de colocar esse mundo em rápida mudança na trajetória de um desenvolvimento sustentável e positivo”.
Mais tarde, no preâmbulo à reunião de chefes de estado, Xi foi direto ao ponto: “é importante evitar tentativas por parte de forças estranhas de organizar ‘revoluções coloridas’ nos países da OCX”. Bem, a Europa não entenderia, por que ela vem sendo incessantemente revolução-coloridizada desde 1945.
Putin, de sua parte, enviou uma mensagem que ecoará por todo o Sul Global: “Transformações fundamentais foram esboçadas na política e na economia mundiais, e elas são irreversíveis” (itálicos meus).
Irã: o espetáculo vai começar
O Irã foi o convidado de honra do espetáculo de Samarcanda, sendo oficialmente aceito como o nono membro da OCX. O Presidente Ebrahim Raisi, de forma muito significativa, ressaltou, antes de seu encontro com Putin, que o Irã “não reconhece as sanções contra a Rússia”. Sua parceria estratégica será intensificada. Na frente empresarial, uma numerosa delegação integrada por membros de 80 empresas russas, estará visitando Teerã na próxima semana.
A crescente intercalação Rússia-China-Irã – os três principais motores da integração da Eurásia – apavora os suspeitos de sempre, que talvez estejam começando a perceber que a OCX, no longo prazo, representa uma séria ameaça a seu jogo geoeconômico. Portanto, como cada grão de areia em cada deserto do Grande Interior já sabe, a pressão geopolítica contra o trio só fará aumentar de forma exponencial.
E então houve a importantíssima reunião trilateral de Samarcanda: Rússia-China-Mongólia. Não houve vazamentos oficiais, mas é bem possível que o trio tenha discutido o gasoduto Poder da Sibéria 2 – a interconexão a ser construída através da Mongólia, bem como o maior papel da Mongólia em um importante corredor de conectividade da Iniciativa Cinturão e Rota (ICR), agora que a China não vem mais usando a rota Transiberiana em razão das sanções.
Putin atualizou Xi quanto a todos os aspectos da Operação Militar Especial (OME) na Ucrânia e deve ter respondido a algumas perguntas bastante duras, muitas das quais vêm circulando há meses na internet chinesa.
O que nos leva à entrevista coletiva de Putin ao final da cúpula – onde, como era previsível, todas as perguntas giraram em torno do teatro de guerra na Ucrânia.
A principal fala do presidente russo: “Não há mudanças nos planos da OME. As principais tarefas estão sendo implementadas”. Sobre as perspectivas de paz, “é a Ucrânia que não está pronta para conversar com a Rússia”. E, em termos gerais, “é lamentável que o Ocidente tenha tido a ideia de usar a Ucrânia para tentar derrubar a Rússia.
Sobre a novela dos fertilizantes, Putin observou: “fornecimento de alimentos, fornecimento de energia, eles (o Ocidente) criaram esses problemas e agora tentam resolvê-los às custas de alguém mais” – significando as nações mais pobres. “Os países europeus são antigas potências coloniais a ainda seguem o paradigma da filosofia colonial. Chegou a hora de mudar seu comportamento, de se tornarem mais civilizados”.
Sobre seu encontro com Xi Jinping: “Foi apenas um encontro normal, já fazia bastante tempo que não nos encontrávamos frente a frente”. Eles conversaram sobre como “expandir o volume de negócios no comércio internacional” e evitar as “guerras comerciais causadas por nossos supostos sócios”, uma vez que a expansão dos pagamentos em moedas nacionais não vem avançando tão rapidamente como desejamos”.
Fortalecendo a multipolaridade
A reunião bilateral de Putin com Narendra Modi, Primeiro-Ministro da Índia, não poderia ter sido mais cordial – em um tom de “amizade muito especial”. Modi conclamou por soluções sérias para as crises de alimentos e combustíveis, dirigindo-se, na verdade, ao Ocidente. Enquanto isso, o Banco Estatal da Índia irá abrir contas especiais em rúpias para atender o comércio relacionado à Rússia.
Esta é a primeira viagem de Xi ao exterior desde a pandemia da Covid. Ele sentiu que poderia fazer a viagem porque está totalmente confiante em conseguir um terceiro mandato no Congresso do Partido Comunista a ter lugar no próximo mês, em Pequim. Xi agora controla ou tem aliados em 90% do Politburo.
A outra razão séria foi recarregar a atratividade da ICR em conexão estreita com a OCX. O ambicioso projeto chinês da ICR foi lançado por Xi em Astana (hoje Nur-Sultan) nove anos atrás. Essa iniciativa continuará sendo o principal conceito da política externa chinesa nas próximas décadas.
A ênfase da ICR em vínculos de comércio e conectividade com a OCX e com os mecanismos multilaterais de cooperação sendo desenvolvidos por ela, que congregam países interessados no desenvolvimento econômico independente da obscura “ordem baseada em regras” hegemônica. Até mesmo a Índia de Modi vem repensando a possibilidade de confiar nos blocos ocidentais, para quem Nova Delhi não passa de um “parceiro” neocolonizado.
Xi e Putin, portanto, em Samarcanda, para todos os fins práticos delinearam um mapa de percurso para o fortalecimento da multipolaridade – como ressaltado na Declaração de Samarcanda final, assinada por todos os membros da OCX.
O quebra-cabeça cazaque
A estrada será muito acidentada. Não foi por acidente que Xi começou sua viagem pelo Cazaquistão – o hiperestratégico vizinho ocidental da China, que faz fronteira com Xinjiang. A tripla fronteira no porto seco de Khorgos – para caminhões, ônibus e trens separadamente – é algo fantástico, um nó absolutamente fundamental da ICR.
A administração do Presidente Kassym-Jomart Tokayev, em Nur-Sultan (a voltar a se chamar Astana em breve) é bastante complicada, oscilando entre orientações políticas orientais e ocidentais, e infiltrada por americanos, tanto quanto na época de seu predecessor Nursultan Nazarbayev, o primeiro presidente cazaque depois do fim da URSS.
Ao início deste mês, por exemplo, Nur-Sultan, em parceria com Ancara e a British Petroleum (BP) – que praticamente governa o Azerbaijão – concordou em aumentar o volume do petróleo enviado pelo oleoduto Baku-Tblisi-Ceyhan (BTC) para quatro milhões de toneladas ao mês ao final deste ano. A Chevron e a ExxonMobil, muito ativas no Cazaquistão, fazem parte do negócio.
A agenda nada secreta dos suspeitos de sempre tem como objetivo último “desconectar as economias dos países da Ásia Central da economia russa”. Como o Cazaquistão é membro não apenas da União Econômica Eurasiana (UEEA), mas também da ICR, é justo inferir que Xi – como também Putin – discutiram algumas questões bastante sérias com Tokayev, disseram a ele que entendesse para que lado o vento está soprando e o aconselharam a manter sob controle a situação política interna (vide o golpe de Estado abortado de janeiro, quando Tokayev foi de fato salvo pela Organização do Tratado sobre Segurança Coletiva, liderada pela Rússia [OTSC]).
É fora de dúvida que a Ásia Central, historicamente conhecida como a “caixa de jóias” em meio ao Grande Interior, cortada pelas Antigas Rotas da Seda e abençoada com imensas riquezas naturais, combustíveis fósseis, metais de terra rara e férteis terras agrícolas, será usada pelos suspeitos de sempre como uma caixa de Pandora, soltando todos os tipos de truques tóxicos contra a legítima integração eurasiana.
Isso contrasta nitidamente com o Oeste Asiático, onde a presença do Irã na OCX irá turbinar seu papel crucial de encruzilhada de conectividade entre a Eurásia e a África, em conexão com a ICR e o Corredor de Transporte Internacional Norte-Sul (CTINS).
Portanto, não é de surpreender que EAU, Bahrain e Kuwait, todos no Oeste Asiático, percebam para que lado o vento sopra. Os três estados do Golfo Pérsico receberam oficialmente o “status de parceiro” em Samarcanda, juntamente com as Maldivas e Myanmar.
Uma coesão de objetivos
Samarcanda deu também um impulso adicional à integração nos termos da Parceria da Grande Eurásia formulada pela Rússia – que inclui a União Econômica Eurasiana (UEEA) – e isso apenas duas semanas antes do divisor de águas que foi o Fórum Econômico Oriental (FEO) realizado em Vladivostok, na estratégica costa Pacífica da Rússia.
A prioridade de Moscou na UEEA é implementar uma união-estado com Belarus (que parece destinado a se tornar um novo membro da OCX antes de 2024), concomitantemente com uma maior integração com a BRI. Sérvia, Cingapura e Irã também têm acordos comerciais com a UEEA.
A Grande Parceria Eurasiana foi proposta por Putin em 2015 – e vai ficando mais afiada à medida que a comissão da UEEA, presidida por Sergey Glazyev, dedica-se ativamente à formulação de um novo sistema financeiro baseado no ouro e em recursos naturais, e contraposto ao sistema Bretton Woods. Assim que a nova estrutura estiver pronta para ser testada, seu principal disseminador será, provavelmente, a OCX.
Aqui vemos em jogo, portanto, a plena coesão de objetivos – e a interação de mecanismos empregados pela Grande Parceria Eurasiana, ICR, UEEA, OCX, BRICS+ e o CITNS. Unir todas essas organizações, levando em conta as prioridades geoeconômicas de cada membro e parceiro associado, significa uma luta titânica, mas isso é o que realmente vem acontecendo, e em uma velocidade alucinante.
Nesse festival de conectividade, os imperativos práticos vão desde enfrentar gargalos nacionais até implementar complexos corredores envolvendo múltiplos parceiros – do Cáucaso à Ásia Central, do Irã à Índia, tudo isso discutido em diversas mesas-redondas.
Os êxitos já são notáveis: desde a Rússia e o Irã dando início a pagamentos diretos em rublos e rials, a Rússia e a China aumentando seu comércio em rublos e yuans para 20%, iniciativas que só fazem crescer. Uma Bolsa Oriental de Commodities pode vir a ser criada em breve em Vladivostok, a fim de facilitar o comércio em ativos futuros e derivativos com a Ásia-Pacífico.
A China é, indiscutivelmente, o principal credor/investidor nos setor da infraestrutura em toda a Ásia Central. As prioridades de Pequim talvez sejam a importância de gás do Turcomenistão e do Uzbequistão, e de petróleo do Cazaquistão, mas a conectividade não fica muito atrás.
A construção da ferrovia Pakafuz (Paquistão-Afeganistão-Uzbequistão), ao custo de 5 bilhões de dólares, transportará carga da Ásia Central até o Oceano Índico em apenas três dias, em vez de trinta. E essa ferrovia estará conectada ao Cazaquistão e à ferrovia de construção chinesa, de 4.380 km, ligando Lanzhou a Tashkent, um projeto da ICR.
Nur-Sultan está interessada também na ferrovia Turcomenistão-Irã-Turquia, que conectaria seu porto de Aktau, no Mar Cáspio, ao Golfo Pérsico e ao Mar Mediterrâneo.
A Turquia, enquanto isso, ainda como país observador da OCX e permanentemente avessa a se comprometer, vem, lenta mas firmemente, tentando avançar estrategicamente sua própria Pax Túrcica, desde o desenvolvimento tecnológico até a cooperação em defesa, tudo isso nos termos de um tipo de pacote político, econômico e de defesa. O Presidente turco Recep Tayyip Erdogan discutiu a questão em Samarcanda com Putin, que anunciou que 25% do gás russo comprado por Ancara será pago em rublos.
Bem-vindo ao Grande Jogo 2.0
A Rússia, ainda mais que a China, sabe que os suspeitos de sempre estão partindo para o tudo ou nada. Só em 2022, houve um golpe fracassado no Cazaquistão em janeiro; problemas no Badaquistão e no Tajiquistão em maio; problemas no Karakalpaquistão, no Uzbequistão, em junho, os infindáveis choques de fronteira entre o Tajiquistão e o Quirguistão (os presidentes dos dois países, em Samarcanda, ao menos concordaram com um cessar-fogo e com a remoção das tropas das zonas de fronteira).
E então há o recém-liberado Afeganistão – com nada menos que onze províncias repletas de combatentes ISIS-Khorasan e de seus associados tajiques e uzbeques. Milhares de aspirantes a jihadis do Grande Interior fizeram a viagem até Idlib, na Síria, e então voltaram ao Afeganistão – ‘incentivados’ pelos suspeitos de sempre, que irão usar todos os truques sob o sol para acossar e ‘isolar’ a Rússia da Ásia Central.
A Rússia e a China, portanto, devem estar prontas para se envolverem em uma espécie de retumbante e imensamente complexo Grande Jogo 2.0 turbinado a esteróides, no qual Estados Unidos/OTAN lutarão contra a Eurásia unida com a Turquia de permeio.
A boa notícia é que Samarcanda provou que pelo menos existe consenso entre todos os atores de diferentes organizações institucionais quanto a que: a soberania tecnológica irá determinar a soberania, e que a regionalização – neste caso eurasiana – irá fatalmente substituir a globalização comandada pelos Estados Unidos.
Esses atores entendem também que a era Mackinder-Spykman está chegando ao fim – quando a Eurásia era ‘contida’ de forma semi-desmontada para que as potências marítimas ocidentais pudessem exercer dominação total, contrária aos interesses nacionais dos atores do Sul Global.
Agora a história é outra. A Parceria da Grande Eurásia tem o total apoio da China, e ambas favorecem a interconexão dos projetos da ICR e da UEEA, enquanto a OCX cria um ambiente em comum.
Sim, esse é um projeto civilizacional eurasiano para o século XXI e mais além. Sob a égide do ‘Espírito de Samarcanda’.
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