Recomendamos o artigo do jornalista e ambientalista Claudio Wurlitzer, integrante da Associação de Preservação da Natureza do Vale do Gravataí (APN-VG), enviado para o Seguinte:
Este 14 de maio assinala o 22º ano de falecimento daquele que foi o principal crítico às ações de degradação ambiental no Brasil: José Lutzenberger. Ecochato para alguns; louco, para outros. Excêntrico, idealista, usava de linguagem forte quando queria mostrar que o modelo de desenvolvimento econômico e social do fim do século XX era incompatível com a capacidade de absorção de impactos ambientais pelo Planeta. Por ver adiante de seu tempo, Lutz, carinhosamente chamado assim, fazia colocações que expressiva parcela dos organismos governamentais desprezava, não lhe dava crédito, quando não o ridicularizava.
De tanto bater em determinadas questões, era considerado um “ecochato”. Mas isso não o incomodava, pois estava convicto de que as observações e estudos seriam comprovados mais adiante. Temia, e repetidas vezes exclamava, que um dia poderia ser tarde. Se hoje estivesse entre nós, mesmo com tudo que está ocorrendo no estado, ainda assim, Lutz teria um exército de negacionistas teimando e ignorando a ciência com a pobre expressão “não é bem assim”. Exemplo disso foi a visão que tinha sobre mudanças climáticas e as consequências que deveriam demandar atitudes de todas as nações. Queria antecipar o debate, mas lá no início dos anos de 1980, quando poucos cientistas abordavam o tema no mundo, ele esbarrava nas teorias de incrédulos. Na mesma linha de pensamento, queria ver medidas concretas na preservação da biodiversidade; no combate ao uso indiscriminado de agrotóxicos, comprovadamente prejudiciais à saúde, bem como desejava um olhar mais sustentável sobre a ocupação urbana das cidades. Enxergava que a exagerada pavimentação do solo e o desrespeito à arborização tornavam os espaços vulneráveis.
O que diria o mestre Lutzenberger se hoje presenciasse a tragédia climática na sua terra?
Se fosse em uma única frase, talvez dissesse: “é o negacionismo está vencendo a ciência”. Acrescentaria que nem comprovados estudos dizendo que eventos traumáticos voltarão, e com mais frequência e intensidade, “essa gente não vai reconhecer os erros cometidos e a necessidade de mudar de comportamento”.
Mesmo com linguagem clara, o ambientalista nem sempre era compreendido. Ou era, mas não via respeitado o apelo a medidas que levassem a sério as preocupações apontadas. Ainda bem que, enquanto aguardava por novas posturas dos governantes, a fala de Lutz era ouvida por outras lideranças e o movimento ambiental ganhava força e o seu legado se sustentou e hoje merece, de minha parte, toda reverência.
Faço parte da comunidade ambientalista a lamentar que, ao longo de décadas, políticas equivocadas ou falta de políticas com foco na preservação ambiental seguem a desafiar a resistência da Casa Comum, destruindo os recursos naturais e comprometendo a qualidade de vida. Fico sem entender como muitos gestores ignoram a importância da Educação Ambiental, e pouco valorizam as boas práticas. Pior do que isso: banalizam crimes brutais, como ocorre contra a vegetação e outros bens naturais que servem à coletividade. Por que esse comportamento? Todos os anos o noticiário destaca que “a degradação ambiental tem alcançado níveis jamais vistos”. Vê-se a comunidade internacional chocada ao perceber o descaso no Brasil, que “flexibiliza” o avanço sobre áreas que deveriam ser preservadas. Recentemente, mais facilidades para desmatar com o argumento de que é preciso produzir alimentos. Assim como as mortes na pandemia acabaram sendo banalizadas, a destruição dos recursos naturais não difere muito na insensibilidade de gestores pouco esclarecidos, desfocados da realidade ou irresponsáveis.
A problemática dos recursos naturais, lá pelos anos 70-80, fazia com que o ambientalista defendesse mudanças radicais no comportamento da sociedade, mas em nome de um chamado desenvolvimento, parece que tudo ou quase isso, poderia ser flexibilizado, mesmo que em detrimento de um ambiente natural saudável e seguro.
Quando iniciamos o movimento ambiental no final dos anos de 1970, em Gravataí, conversas com José Lutzenberger apontavam para um desenvolvimento ecossustentável. Na época, a expressão nem era de um todo compreendida. Mas, mesmo assim, muitas vozes o seguiram e trataram de estudar o tema. Na pauta do momento, que resultou na criação da APN-VG – Associação de Preservação da Natureza Vale do Gravataí, em junho de 1979 – uma das primeiras lições que recebemos do já famoso ecologista tratava da importância dos banhados no ecossistema. Falava sobre isso ao saber que nossa bandeira de luta buscava a preservação dos banhados formadores das nascentes do Rio Gravataí. Sim, os banhados estavam sendo destruídos para a ampliação de áreas destinadas ao plantio de arroz.
“Os banhados são ecossistemas que devem – ou deveriam – ser preservados intocáveis, a qualquer custo”. Era a sentença de Lutz para nos animar e mostrar que a luta da entidade tinha sua razão de ser. Lá se foram 45 anos de muito debate, apontamentos, estudo para devolver ao rio pelo menos parte de sua capacidade hídrica.
Mesmo que o comentário siga puxando a brasa para o nosso assado, quando a tragédia assola quase o estado inteiro, e em dimensões bem maiores do que o ocorrido em Gravataí, é preciso recordar o papel dos banhados que dão origem ao nosso rio. O crime ambiental praticado contra as nascente do Gravataí não é o maior problema da atual enchente na região. Não é o maior, mas é um e contribui com os alagamentos. Se os banhados tivessem ficado conforme a tese de Lutzenberger, e nossos argumentos na cobrança por medidas eficazes décadas atrás, uma parte do volume dessas águas estaria acumulada nas nascentes e desceria com naturalidade, gradativamente, ao Vale do Gravataí. É um legado que a história reconhece e que o presente precisa levar em consideração ao planejar o crescimento das cidades. Está comprovado, desde sempre, que a “esponja natural”, na região que alimenta o rio, ao ser rasgada com obras de drenagem, teve sua naturalidade descaracterizada. Assim, em épocas de chuva, perde a capacidade de armazenar grandes volumes de água. Com isso, essa água desce rápido e se soma às chuvas nas áreas urbanas que são inundadas. E no período de estiagem? Da mesma forma: a água que deveria ser armazenada no banhado não fica mais lá. Segue veloz o seu rumo em direção ao Guaíba e se torna insuficiente para a captação, tratamento e abastecimento da população das cidades do Vale. Lembrando que quando nossa luta teve início, a população que dependia do rio para viver era de 400 mil habitantes; hoje, três vezes mais.
Voltando ao mestre Lutz: que legado ele nos deixou? Por onde atuou, deu dicas; mostrou caminhos; pediu mudanças de comportamento e um grupo abnegado de seguidores, no Vale do Gravataí, ouviu dele a afirmação de que, “se mantiverem as drenagens nos banhados que alimentam o rio Gravataí, o futuro dele comprometerá a qualidade de vida da população, principalmente porque as agressões cometidas são irreversíveis”. O recado serviu para embasar a APN-VG, um movimento que veio dois anos após a criação da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (AGAPAN), que teve Lutzenberger um de seus idealizadores e seu primeiro presidente.
Durante 45 anos estamos protestando, denunciando, e na trilha iluminada por Lutz, a entidade cobra atitudes mais concretas do poder público para garantir a preservação do rio Gravataí. No rol de cobranças está a necessidade de ampliar o tratamento dos esgotos na bacia hidrográfica, pois o rio recebe, diariamente, 50 toneladas de esgotos sem tratamento. A entidade vai mais longe: atua positivamente nas tratativas de fazer valer o papel do Comitê da Bacia Hidrográfica do Gravataí e do Conselho da Área da Preservação Ambiental do Banhado Grande. Não bastasse, efetivou um Programa de Educação Ambiental em defesa do rio Gravataí até então nunca empreendido pelo Estado. Na missão educadora, o Projeto Rio Limpo mostra a necessidade de um novo olhar sobre a valorização do rio e sobre a expansão das cidades, que nem sempre leva em conta os fatores climáticos e permite edificações em áreas alagadiças e em encostas de morros. O resultado é visto com frequência e passou a ser comum culpar a chuva pelas tragédias, deixando de apontar decisões equivocadas e seus autores. Passando a atual tragédia climática, surgirão projetos e pitacos na tentativa de reconstruir o que é possível. Bom seria que os Comitês de Bacia e entidades ambientalistas fossem ouvidos, pois não é de hoje que apontam alternativas para a recuperação de espaços degradados, na prevenção, e no enfrentamento de calamidades. Se os gestores levarem a sério, tem projeto que pode sair das gavetas depois de mais de uma década. O exemplo fica por conta dos barramentos necessários e já previstos para diminuir o impacto deixado pelas drenagens nas nascentes do Gravataí. Mostrando isso, seguimos em lutas dignas das lições deixadas pelo sempre lembrado José Lutzenberger.