Para o Gustavo, de 3 anos, o pai, Rafael Vieira Gomides, 33 anos, ainda está trabalhando e ele apenas passeia na casa da avó Eliane, e do tio Douglas. Só que o funcionário de um mercado da Marechal Rondon está morto, assassinado.
O leitor sabe que o Seguinte: não trata ‘casos de polícia’ do cotidiano. Mas o apelo por justiça de uma esposa e mãe, que a distância de um abraço do filho testemunhou o marido ser morto com quatro tiros pelas costas, em uma discussão de vizinhos entre muros, após ameaças que envolvem um suposto policial, transborda qualquer opção editorial.
O Gustavo, quando perder a inocência e conseguir compreender como uma pessoa tira a vida de outra, terá o direito de saber o que aconteceu com seu pai, e perceber a balança da justiça.
– Talvez a missão do Rafa fosse impedir que esse homem machucasse outra pessoa. Vivíamos parede com parede com um monstro. Quem imaginaria? Se soubesse que tinha uma arma teria me mudado. Não sei o que vou dizer para meu filho – desabafa Débora de Oliveira Roldão, 32, funcionária do departamento financeiro da sede de Gravataí de uma das maiores redes de lojas brasileiras.
Seus ‘meninos’ estavam sempre juntos, como conta. A última vez que Gustavo viu o pai foi no fim da tarde de sábado quando, após uma volta de carro, Rafael armou um ‘acampamento’ para o menino deitar no chão da sala e ficar assistindo vídeos no celular, ao lado da mãe. Se o Gu ouviu os estampidos, ou se entendeu a tragédia que se abateu no fim da tarde sobre uma rua da Rondon, divisa entre Cachoeirinha e Gravataí, talvez só a criança saiba – e precise de ajuda.
– O Rafael levou o Gustavo até a Morada do Vale para pagar a 18ª parcela do carro. Ele pagou a última parcela antes de ser morto… – conta, e chora, Debora.
Rafael estava feliz porque tinha recebido o primeiro pagamento do mercado em que conseguira um emprego em 9 de maio.
– Ia fazer um churrasco para comemorar – conta a companheira de quase 6 anos.
O novo emprego, motivo de comemoração em meio à pandemia, foi o disparo da tragédia da Rondon.
Conforme a esposa, quando Rafael foi almoçar em casa, sábado, o vizinho, acompanhado do suposto parente policial foi até o mercado e ‘denunciou’ ao proprietário que o funcionário controlava uma boca de fumo na casa vizinha.
– Somos trabalhadores, pergunte para qualquer vizinho. Que traficante é esse que trabalha de domingo a domingo em um mercado por 1200 reais? – indigna-se Débora.
A desavença entre as famílias teria começado em janeiro do ano passado, quando, conforme a esposa, Rafael teria sido acusado pelo seu hoje algoz de ter chamado a Brigada Militar por suposta briga na casa vizinha.
O estopim foi no sábado.
– O Rafa ficou sabendo que nosso vizinho tinha ido reclamar dele no mercado e chorou, achando que seria demitido. O dono do mercado disse para ele ficar tranquilo, que esse cara estava sempre caluniando alguém – conta a esposa.
Só que, na versão da companheira, Rafael, temendo perder o emprego, tentou conversar com seu assassino.
– Eles conversaram pelo muro. O Rafa perguntava o que poderia fazer para terminar com a desavença. “Eu não posso perder o serviço, tenho filho pequeno”, ele dizia. Eu pedi para ele entrar e, de repente, esse vizinho atirou pelo vão do muro. Foram quatro tiros pelas costas. Graças a Deus meu filho, que estava sempre grudado no pai, estava dentro de casa comigo. Porque aquele homem transtornado poderia ter matado uma criança – desabafa, entre lágrimas.
Débora conta que o suspeito fugiu de carro, enquanto ela gritava pela rua, até parar um carro que socorreu Rafael, que morreu horas depois, no Hospital Cristo Redentor, em Porto Alegre.
– Ele lutou para sobreviver…
O velório e enterro nesta segunda reuniu quase uma centena de amigos, e uma carreata é programada para sábado, com organização de um amigo de infância de Rafael, e ex-colega de empresa.
A morte também abalou o time de futebol da Baixada, na Morada do Vale, onde Rafael jogava há dois anos. O presidente Dênis dos Santos, o Tita, atesta:
– Era um guri do bem, eu te garanto. É muita maldade – emocionou-se.
O experiente delegado Anderson Spier, titular da 1ª Delegacia de Polícia Civil de Cachoeirinha e que responde até o dia 9 pela 2ª DP, onde o caso foi registrado, conduziu o inquérito nos últimos três dias.
– Já identificamos o autor, já o ouvimos e aprendemos a arma utilizada no crime. Ele disse que eram vizinhos, não se entendiam há muito tempo, viviam brigando e ameaçavam se matar. Naquele dia discutiram e ele supôs quem a vítima estava armada e efetuou os quatro disparos – informou ao Seguinte:, na noite desta segunda.
O assassino confesso, cujo contato não foi possível até o fechamento deste artigo, responderá em liberdade, já que não houve prisão em flagrante e, conforme o delegado, não se verificou causa prevista no Código Penal para prisão preventiva. A arma do crime estava registrada no nome do autor.
Ao fim, perceberam que era uma arma registrada? Usada em uma briga de vizinhos separados por um muro… A esposa da vítima resume bem, ao dizer que duas famílias restam destruídas. Ela teme que o suposto parentesco do assassino com um policial resulte em algum tipo de acobertamento.
Débora, com o delegado Anderson Spier, não. É profissional, técnico. Tenha o suspeito policial parente, ou não. O que ocorreu será apurado e as responsabilidades apontadas, conforme a lei. Se não há ‘excludente de ilicitude’ para policial que ‘acha’ que alguém está armado, não há também para nenhum monstro do outro lado do muro.