Correntes da medicina apostam em terapia revolucionária contra crise da saúde mental. Usam substâncias antes perseguidas, como maconha e psicodélicos, mas euforia não pode esconder raízes do sofrimento: o “estilo de vida moderno”. Recomendamos o artigo do jornalista Denis Russo Burgierman, que integra a edição 296, intitulada “A utopia do mundo sem drogas”, da revista Cult, publicado pelo Outras Palavras.
A cena é um clássico da história do século 20, um daqueles momentos cujos impactos se estenderiam por décadas para cada metro quadrado do planeta. De terno escuro, o presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, chega apressado a um púlpito e convida um médico psiquiatra chamado Jerome Jaffe a ficar de pé ao seu lado, os dois emoldurados por duas bandeiras. A da esquerda, indefectível, é a dos Estados Unidos, listrada e estrelada. A da direita é o brasão do presidente, o desenho de uma águia sisuda que carrega com uma garra um ramo de oliveira e, com a outra, um punhado de flechas – símbolo do poder presidencial sobre a paz e a guerra. Naquela tarde de junho de 1971, era o poder representado por essa segunda garra que Nixon queria projetar.
“O inimigo público número um dos Estados Unidos é o abuso de drogas”, declarou o presidente, sem achar que precisasse justificar a afirmação. “Para combater e derrotar esse inimigo, é preciso executar uma ofensiva total”, disse, escolhendo verbos e substantivos retirados do vocabulário militar, embora o homem a seu lado fosse um médico, e não um general.
Em seguida, Nixon informou que estava pedindo dinheiro ao Congresso para financiar a ofensiva. Ele assegurou a Jaffe, escolhido por ele para comandar a agência interministerial encarregada da guerra, que, caso ele concluísse que “podemos usar mais dinheiro, mais será providenciado. Para derrotar esse inimigo que tem causado tanta preocupação, tanto dinheiro será providenciado quanto for necessário e útil”. Ele basicamente prometia um saco sem fundo de dólares.
A metáfora militar de Nixon fez sucesso e já no dia seguinte a nova política pública começou a ser chamada de guerra às drogas pela imprensa. Em poucos meses, a metáfora ganhou concretude: tropas americanas marcharam sobre países produtores de certas substâncias e polícias se militarizaram no mundo todo para combater traficantes, lotando cadeias e porões de tortura em toda parte. Sim, porque a guerra contra as drogas, embora declarada pelo presidente dos Estados Unidos, logo tornou-se global, com a adesão de praticamente todos os governos do mundo, atraídos pela ajuda financeira norte-americana e também pela oportunidade de capitalizar politicamente a luta contra um inimigo temido que tinha a vantagem de ser fictício, e, portanto, de não reagir. O saco sem fundo de dólares também se materializou. Ao longo das décadas, o custo do financiamento da guerra às drogas passou de milhões a bilhões e a trilhões.
De lá para cá, o mundo inteiro dedicou uma quantidade sem precedentes de recursos militares, policiais, judiciais, penitenciários à tarefa declarada de combater com a força um problema de saúde mental – o abuso de drogas. Os resultados foram pífios, para não dizer desastrosos. O uso e o abuso de drogas só cresceram após a radicalização da proibição, estimulados pelo aumento da lucratividade que a ilegalidade proporciona. E muitos novos problemas surgiram, provocados pela violência da guerra.
Por “drogas”, Nixon se referia a um rol um pouco aleatório de substâncias com efeitos psicoativos, incluindo algumas popularizadas poucos anos antes pelo movimento hippie, tidas como “expansoras da consciência” – a flor da Cannabis e os chamados psicodélicos.
Recentemente, um assessor do ex-presidente norte-americano confessou que sua intenção na verdade era criminalizar os negros, como de hábito, e os hippies, que vinham causando incômodo político com seus protestos contra a Guerra do Vietnã. “Poderíamos prender seus líderes, arrombar suas casas, invadir suas reuniões e vilanizá-los noite após noite no noticiário. Nós sabíamos que estávamos mentindo sobre as drogas? Claro que sabíamos”, reconheceu o chefe de política doméstica de Nixon, John Ehrlichman.
Mas o número de vítimas da guerra às drogas cresceu rápido para além desse grupo inicial. Entre os danos colaterais, está a pesquisa científica sobre essas substâncias, assim como o seu uso medicinal, que cessaram assim que a guerra começou. Drogas eram inimigas a serem militarmente erradicadas, não remédios.
Corta para 2023. O mundo vive uma grande crise da saúde mental. Após uma pandemia que matou milhões, os índices de depressão, ansiedade e abuso de substâncias dispararam em praticamente todos os países, para níveis nunca antes vistos. E eles já vinham crescendo consistentemente bem antes disso, quebrando recordes históricos. A tendência se observa com força em muitos países desenvolvidos, enquanto em países mais pobres depressão, ansiedade e abuso de substâncias se disseminam à medida que eles adotam o chamado “estilo de vida moderno”.
A indústria farmacêutica oferece um amplo catálogo de medicamentos psiquiátricos para lidar com esse sofrimento mental – trata-se da categoria de fármacos mais vendida do mundo, e também da mais lucrativa, inclusive porque esses remédios demandam uso diário, por anos, muitas vezes pela vida toda. Mas esse arsenal claramente tem se revelado insuficiente: apesar dos recordes de venda, os distúrbios mentais estão se tornando cada vez mais prevalentes. Seus efeitos colaterais são tantos que ainda há certa dúvida sobre se esses medicamentos fazem mais bem do que mal ao conjunto da população. Opioides produzidos pela indústria farmacêutica para alívio de dor estão sendo desviados para o mercado ilegal e causando uma quantidade sem precedentes de mortes por overdose, principalmente nos Estados Unidos.
Claramente há uma crise gigante na saúde mental, e claramente a indústria farmacêutica não está dando conta de lidar com ela – talvez a esteja agravando. Diante disso, a ciência médica e governos como o dos Estados Unidos estão depositando suas esperanças justamente em algumas daquelas substâncias contra as quais eles haviam declarado guerra no século passado: a maconha e os psicodélicos.
Se tudo sair como planejado, no ano que vem, 2024, o MDMA, princípio ativo do ecstasy, uma droga de festas que está no alvo da guerra às drogas, deve ser aprovado nos Estados Unidos para o tratamento de transtorno do estresse pós-traumático (TEPT), uma forma extrema de ansiedade, completamente incapacitante. Essa condição, que até hoje costuma ser mantida sob precário controle por um vasto coquetel de medicamentos – um para a depressão, um para a ansiedade, um para o foco, um para a insônia, outro para acordar, outro para combater os danos ao fígado de tanto remédio –, era incurável para a maior parte dos pacientes. Em testes clínicos, uma forma de psicoterapia combinada com três sessões de MDMA simplesmente negativou o diagnóstico de dois terços dos pacientes – e proporcionou melhoras notáveis para quase 90% deles. Ironicamente, muitos dos beneficiados têm sido militares traumatizados.
Um ano depois da aprovação do MDMA, em 2025, será a vez da psilocibina, o princípio ativo dos cogumelos alucinógenos, que deverá ser aprovada para o tratamento de depressão. Há mais de 70 estudos clínicos em curso com a substância e os resultados têm sido impressionantes. Boa parte dos pacientes apresenta uma melhora significativa e durável em sua condição após uma única dose, acompanhada de psicoterapia. Muitos relatam que a substância os ajuda a reencontrar sentido em suas vidas. Nada parecido pode ser obtido com os antidepressivos convencionais, que precisam ser consumidos por longos períodos.
Tanto o MDMA quanto a psilocibina têm tido as pesquisas incentivadas pelo FDA, a agência reguladora de medicamentos nos Estados Unidos, que concedeu a elas status de “terapia revolucionária” (breakthrough therapy), o que acelera as pesquisas. No caso da psilocibina, o FDA não apenas aprovou as pesquisas desejadas pelos cientistas, mas instigou-os a serem mais ambiciosos. Os pesquisadores solicitaram aprovação da substância apenas para tratar depressão refratária, aquela que responde mal ao tratamento convencional. A agência sugeriu que eles testassem o psicodélico também para outras formas de depressão severa, de modo a beneficiar mais gente. Afinal, falta um medicamento melhor para qualquer tipo de depressão
A Europa deve seguir os Estados Unidos e regulamentar o uso de ambas as substâncias combinadas com psicoterapia muito em breve – também lá as agências reguladoras estão acelerando pesquisas, com pressa de encontrar solução para a crise de saúde mental. Atrás de MDMA e psilocibina, há uma longa fila de moléculas psicodélicas sendo testadas para combater basicamente todas as condições psiquiátricas que estão em alta neste momento da história. Inclusive algumas dessas substâncias – como a ayahuasca e a ibogaína – parecem ser muito mais úteis para curar o abuso de substâncias do que qualquer coisa que Nixon tenha imaginado.
O boom psicodélico chega na cola de um outro – o canábico, iniciado no final do século 20. Hoje, o uso terapêutico da Cannabis é legal na maior parte do mundo, com benefícios claríssimos para modular o sofrimento mental no tratamento de dores, câncer, insônia, ansiedade e muitas outras condições. A legalização da maconha tem sido associada à redução do índice de mortes por overdose de opioides, ao oferecer alternativas mais seguras para gente atormentada por dores no corpo e na alma.
O governo dos Estados Unidos parece ter entendido que uma ação militar não é a forma mais adequada de vencer o sofrimento mental. A garra da águia que segura o ramo de oliveira parece mais útil nesse momento de crise. Não vai ser uma guerra que irá nos trazer a paz.
Há uma empolgação com essas substâncias, que vêm sendo descritas como a salvação da nossa saúde mental. Mas a crise que vivemos é mais funda – ela tem raízes num mal-estar generalizado decorrente do tal “estilo de vida moderno”, que desvaloriza o trabalho vital do cuidado e estimula um modo individualista de estar no mundo que se assemelha a um estado de guerra. Não é à toa que ideias absurdas como a de Nixon – curar a saúde mental com uma ação militar – ressoem até hoje na boca de políticos, inclusive no Brasil. Moléculas sozinhas não serão suficientes para nos devolver o sentido.