RAFAEL MARTINELLI

Por que a Irmã Jane e Dom Feliciano escaparam de estar em lista de boicote a ‘esquerdistas’ em Gravataí; O Israelita, o Farroupilha e a Fita Branca

‘A Fita Branca’ é alegoria sobre a gênese do nazi-fascismo

Quando circulou a lista de boicote a empreendedores de Gravataí que supostamente teriam votado em Lula, o que analisei em Sobre a ‘Lista de Petistas com negócios em Gravataí (Eu não vou comprar mais nem uma bala)’; Nazistas ordinários!, lembrei da Irmã Jane Segaspini e do tradicional Colégio Dom Feliciano.

Quando as fedelhas, brancas e de chapinha, dos colégios Israelita e Farroupilha – cuja adolescência e a inconsequência científica dessa condição é a única atenuante que tem em relação aos napoleões de hospício com a mão na úlcera dos ranços, que não reconhecem a lisura da eleição e pedem intervenção militar – fizeram live no Instagram dizendo que seus pais iriam demitir petistas, que limpavam a bunda com 600 reais do Auxílio Brasil, e foram racistas com nordestinos, também lembrei da Irmã Jane e do Donfa.

Explico.

Antes, é preciso ler o artigo Como entendi nota das Irmãs do Dom Feliciano sobre eleições, que escrevi em 18 de outubro de 2018, entre o primeiro e o segundo turno das eleições.

Reproduzo e, abaixo, sigo.


“…

A Congregação das Irmãs do Imaculado Coração de Maria, que administra o Dom Feliciano, mais tradicional colégio de Gravataí, e que por 50 anos operou milagres no hospital Dom João Becker, divulgou nota pública “sobre o momento atual brasileiro”.

Reproduzo, analisando cada trecho. Por obrigação de ofício, já que o texto é bem objetivo e de fácil compreensão.

“(…)

A Congregação das Irmãs do Imaculado Coração de Maria, quer atualizar a palavra da Fundadora, a Bem-Aventurada Bárbara Maix, que escreveu “todos estão seriamente obrigados a não esquecer os pobres” (Const. 1852); quer ser fiel a Jesus Cristo, que responde ao doutor da lei: “vai e faze tu o mesmo” (Lc 10,37).

(…)”

Perfeito. Para alguns é o óbvio, mas no dia da eleição, quando postei no facebook um card com a frase “Na dúvida, fique do lado dos pobres”, de autoria de Dom Pedro Casaldáliga, a maior parte dos comentários foi de xingamentos.

– Comédias!

– Postagem ridícula!

Pergunto: então o Brasil que alguns querem não deve olhar primeiro para os mais pobres?

“(…)

Com uma história de 170 anos de atuação na defesa, na promoção da vida e no resgate da cidadania e, face ao momento sociopolítico e econômico em que vivemos, manifesta seu posicionamento:

A FAVOR: da vida, da misericórdia, da caridade, da paz, do respeito, da liberdade, da verdade, da democracia, da participação cidadã, da solidariedade, e de todos os valores do Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo.

CONTRA: a guerra, a violência, a ditadura, a tortura, a mentira, a exploração, a discriminação, o preconceito, o racismo, a dominação, o medo, o desemprego, a perseguição e tudo o que torna menos digna a vida – dom de Deus.

(…)”

Inegável que a nota condena pilares que conduziram discursos de antes e durante a campanha, que estão gravados e documentados em falas dos próprios autores, não em fakenews distribuídas por ‘cidadãos de bem’ em grupos da família ou em disparos pagos por grandes empresários.

Alguém recorda de em alguma outra eleição a Congregação das Irmãs ter publicado nota precisando manifestar apoio à vida?

Não será porque nesta eleição tantos defenderam a pena de morte?

Alguém recorda de em alguma outra eleição a Congregação das Irmãs ter publicado nota precisando se manifestar contra o racismo?

Não será por que nesta eleição se mediu negros em arroubas?

Alguém recorda de em alguma outra eleição a Congregação das Irmãs ter publicado nota precisando se manifestar contra o preconceito?

Não será porque nesta eleição se difundiu tanto o discurso de que surrar um filho gay é uma prática normal de ser aceita por cristãos? Ou que é justo que mulheres ganhem menos que os homens? Ou que uma mulher não merece ser estuprada porque é feia?

Alguém recorda de em alguma outra eleição a Congregação das Irmãs ter publicado nota precisando se manifestar contra a ditadura?

Não será porque, numa obscura exortação de sentimentos e circunstâncias – medo, desinformação, fanatismo, maldade… escolha ou acrescente outros – pessoas foram às ruas pedir intervenção militar?

Alguém recorda de em alguma outra eleição a Congregação das Irmãs ter publicado nota precisando se manifestar contra a tortura?

Não será porque vestiram a camiseta com a face do mal, tratando como um ídolo pop, um herói, o coronel torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra?

– Eles colocam muitos fios elétricos descascados dentro da vagina, colocam dentro do ânus. Você grita de dor, perde o equilíbrio e cai no chão. Eles vêm em cima de você, para te estuprar. O momento de maior dor foi ver Ustra levando os meus dois filhos, assim, na sala de tortura, onde eu estava nua, vomitada, urinada – contou essa semana, na TV, Amelinha Teles, torturada durante a ditadura pelo militar que deveria envergonhar os colegas e provocar nojo em qualquer ser humano.

Para comprovar que o inferno é aqui, e os demônios são de carne e osso, a filha de Amelinha, Janaína, acrescentou:

– Lembro de entrar na cela e ver meus pais sem se mexer, muito machucados.

Ah, mas as Irmãs também falaram em medo, violência e desemprego! Sim, desafio para o próximo presidente tentar resolver pelas vias democráticas, não à faca ou à bala.

“(…)

Considera urgente retomar e analisar os dois projetos que disputam a Presidência da República do Brasil e, pensando nas famílias, nas crianças, nos jovens, nos adultos e nos idosos, apoiar o projeto que garanta o Estado Democrático de Direito.

(…)”

Alguém recorda de em alguma outra eleição a Congregação das Irmãs ter publicado nota precisando manifestar apoio ao “projeto que garanta o Estado Democrático de Direito”?

Não será porque, enquanto os políticos, boa parte da mídia e tantos eleitores enxergam apenas ideologias ou o pragmatismo do anti-isso ou anti-aquilo, a democracia brasileira corre riscos quando figuras que provavelmente comandarão o país falam sem vergonha – até em horário nobre da Globo! – em “auto-golpe”?

“(…)

Ainda é tempo. A sabedoria de Deus nos mova, fortaleça e oriente nossas decisões.

(…)”

“Ainda é tempo”, é a conclusão. Não é preciso comentar mais nada.

…”


Sigo eu.

Quando publiquei o artigo, e a nota viralizou, houve um levante de pais ‘conservadores’; alguns que hoje comprovam que não conservam mais do que o reacionarismo, porque de conservadores não tem nada, já que não respeitam a Constituição ou as leis, como conservadores de verdade.

Liberais nunca foram e nem nunca serão. Se perguntados, é capaz de dizerem que Edmund Burke é piloto de Fórmula 1 e Adam Smith é o guitarrista do Iron Maiden.

Olavistas, talvez sejam. Bordões caçam likes e aquele sentimento de relevância e pertencimento sem necessidade de construir biografia; o que, afinal, é cansativo, custa caro e hoje vale pouco ou quase nada.

Fato é que, 10 dias depois, Jair Bolsonaro, na época no PSL, partido que nem existe mais, venceu a eleição, ainda no rastro sem sangue da facada.

A família tradicional brasileira, hipócrita e nada cordata (como falhou Sérgio Buarque de Holanda ao descrever sua sociologia em Raízes do Brasil), foi comemorar, com seus copos stanley, em jantares de estrogonofe com batata palha, em Miami, Atlântida, ou mesmo em Oásis; não sem recomendar aos ‘petralhas’ que diziam “ninguém solta a mão de ninguém” que “é melhor Jair se acostumando”, ou postando memes como “o fato de você não gostar do piloto, não te dá direito de torcer para o avião cair, afinal você também está a bordo”.

O ‘caso Donfa’ restou história.

Inegável é que, tivesse Bolsonaro perdido, talvez tivesse circulado uma lista, como a que reportei em Sobre a ‘Lista de Petistas com negócios em Gravataí (Eu não vou comprar mais nem uma bala)’; Nazistas ordinários!. E lá talvez estivesse a inquestionável Irmã Jane. Não duvido os ‘pais que demitem’ pedissem para isolar a religiosa, que dedica sua vida à Gravataí, na ordem católica dos Carmelitas Descalços.

Dos Grandes Lances dos Piores Momentos, mas, ‘Printe & Arquive na Nuvem’: os próximos dias nos mostrarão se teremos ou não episódios como do Israelita e do Farroupilha também na aldeia.

Ao fim, essa distopia de uma semana que parece um século, é muito A Fita Branca, do diretor austríaco Michael Haneke, cujas personagens crianças que conduzem o filme ganhador de Palma de Ouro em Cannes seriam nas décadas de 1930 e 1940 os adultos quando da ascensão do nazismo e da eclosão da Segunda Guerra Mundial.

Em entrevista à Folha de São Paulo, em 2009, o diretor explicou:

“Quis tratar da educação que impõe valores absolutos às crianças, que acabam por interiorizá-los. Quis mostrar que, se têm o caráter formado a partir de um princípio absoluto, elas se tornam inumanas. Cada ato terrorista, cada manifestação de fanatismo, seja ele político, religioso ou de outra natureza, é alimentado por essa fonte de intransigência. Qualquer ideia se torna perversa se tem o autoritarismo como ponto de partida. Sempre há alguém em uma situação de grande aflição que vê a oportunidade, através da ideologia, de se vingar, de se livrar do sofrimento e consertar a vida. Em nome de uma idéia bonita você pode virar um assassino.”

Entenderam, ou preciso harmonizar como uma sobrancelha?

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