Recomendamos o artigo do jornalista Reinaldo Azevedo, publicado em sua coluna no UOL
Já brinquei aqui e em toda parte com um trecho de “Os Lusíadas”, de Camões, quando o Gigante Adamastor assedia Tétis, uma ninfa. Esta manda dizer à intermediária da proposta amorosa: “Qual será o amor bastante/ De Ninfa que sustente o dum Gigante?” Compreenderam? Era uma impossibilidade.
Em relação a esses que chamo “Uzmercáduz” e seus escribas, cumpriria indagar: “Qual seria o fiscalismo bastante de Fernando Haddad que amainasse o ódio gigante que essa gente tem do PT e de qualquer pensamento, mesmo que liberal, que tenha uma vizinhança ainda que remota com o progresso social?” Também uma impossibilidade. Querem saber? Nada vai fazer passar a fome desses caras. Nunca se vai fazer o suficiente. Muitos deles ainda sonham com o capitão arruaceiro e seu vale-tudo. Chato constatar, mas é assim. Nem por isso, claro!, o governo deve deixar de fazer o que tem de ser feito.
Nesta quinta, Bolsa e dólar reagiram bem à divulgação das linhas gerais da proposta do governo, lembrando sempre que será o Congresso Nacional a dar a palavra final. Reagiram bem, mas os porta-vozes do apocalipse de cedrtas corretoras de nomes estranhos — alguns em língua nenhuma — lutaram muito ao longo do dia para inverter os sinais. Foram diligentemente ouvidos pela imprensa na condição de “analistas”. Analistas, salvo engano, fazem análises desinteressadas. “Quer proibir que sejam ouvidos?” Eu não. Quero que sejam chamados por aquilo que são: operadores de mercado. Adiante.
A verdade é que a proposta, que conta com o endosso do presidente Lula, apresentada pelos ministros Fernando Haddad (Fazenda) e Simone Tebet (Planejamento), pegou desprevenidos os falcões mercadistas que ainda voam inspirados pelo capitão do fim do mundo. Eis que se apresentou um modelo que, estruturalmente, impõe que as despesas avancem menos do que as receitas. É o pilar do texto. E não! Ah, não! Para a melancolia dos que se preparam para apostar contra o governo, o mecanismo não traz a marca da atuação “anticíclica” que essa gente aprendeu ser uma coisa muito má.
Vale dizer: não é um daqueles arranjos para que o Estado intervenha na economia em momentos de crise para garantir crescimento e emprego, ainda que se possa gerar um pouco de inflação. Vamos ser justos: mais de uma vez, intervenções dessa natureza salvaram países — quem sabe tenha salvado a humanidade no pós-Segunda Guerra. Mas, com efeito, não é disso que se trata. A turma do cassino foi surpreendida precisamente pelo contrário: trata-se de um arranjo pró-cíclico. Se a despesa só pode crescer o correspondente a 70% do que cresce a receita, então é evidente que se gasta mais com mais arrecadação e menos com menos, entenderam? Atua-se, assim, no mesmo sentido do “conjunto de fatos, de ações e de obras que se sucedem no tempo e evoluem” — ou seja, do ciclo. Se isso não for dos mais escancarado, como direi?, liberalismo, então é preciso atualizar o conceito do que seja liberal. Há muito tempo, sei, no Brasil, a palavra congrega não mais do que um bando de reacionários enlouquecidos.
Mas a coisa não para por aí. Essa evolução da despesa tem um piso: 0,6%. Mas também tem um teto: 2,5%. Ou por outra: se a receita se expandir 5% (sempre acima da inflação), pelo modelo geral, a despesa poderia crescer 3,5% (idem). Só que não. Nesse caso, esse um ponto percentual além do 2,5%, servirá para fazer um colchão para eventuais tempos difíceis, havendo a possibilidade, segundo entendi, de que possa ser destinado a investimento ou mesmo abatimento da dívida. Nesse caso, sim, tem-se um aspecto anticíclico num modelo inequivocamente pró-cíclico.
O texto precisa ser conhecido no seu detalhe, bem como os mecanismos que serão empregados pelo governo para uma elevação da receita, que se pretende entre R$ 100 bilhões e R$ 150 bilhões, revendo incentivos fiscais, desoneração, ausência de tributação de determinadas atividades. “Ah, é aumento da carga tributária…” Com todas as vênias, não é: fazer pagar imposto quem tem de pagar imposto, pondo fim a algumas mamatas, é um dever do poder público.
Segundo o que foi apresentado, chega-se a déficit primário zero já no ano que vem, com o pais voltando a ter superávit — e sem os truques de Paulo Guedes — já em 2025: 0,5% do PIB. Em 2026, 1%. Nesse caso, criou-se uma banda de 0,25 ponto percentual para mais ou para menos. Será um prodígio se isso for conseguido. Ouvi o berreiro de algumas lorpas, prevendo o naufrágio da proposta na sua bola de cristal. Tenham a santa paciência! São os gênios que anteviram o fim do mundo quando se aprovou a PEC da Transição, vaticinando um déficit primário para este ano entre R$ 230 bilhões e R$ 260 bilhões. É uma turma ruim de cálculo: há uma boa possibilidade de que fique abaixo de R$ 100 bilhões. E se não for possível manter o crescimento da despesa em 70% do que que crescer a receita? Impõe-se no ano seguinte um modelo mais restritivo: 50%.
“Saúde e Educação estão fora da regra dos 70%”. Estão porque têm de estar. Seus respectivos Orçamentos têm de corresponder, por determinação constitucional, respectivamente, a 15% e 18% da Receita Corrente Líquida. E isso quer dizer que as demais despesas, pois, acabarão se expandido menos do que aqueles 70%.
Temos, enfim, um arcabouço
É claro que ainda falta definir muita coisa, mas se tem um modelo crível e factível com que trabalhar. O que me incomoda, o que me exaspera mesmo, é ver a reação dos tais “analistas” — tão independentes como relógio de corda –a babar rancor contra a proposta como se aquele “pernambucano sem dedo” tivesse tomado o poder de assalto, resolvendo criar dificuldades para um modelo fiscal que ia às mil maravilhas. Tenham um pouco de decência! Há quanto tempo o tal “teto de gastos” era uma ficção? Ou terá o governo Lula sobrevindo a um que era exemplo de disciplina fiscal. Todo mundo sabe como se fabricou o superávit picareta de R$ 54 bilhões no ano passado. Custou a paralisia do governo. Até a emissão de passaporte foi suspensa.
Aí vêm algumas vozes do Apocalipse se levantar contra quem ousa, afinal de contas, elaborar um proposta que tem, entre muitas, duas virtude principais: 1) é um modelo que impõe que despesas avancem menos do que receita; 2) permite que governos futuros, em novas circunstâncias, possam aumentar ou diminuir aqueles 70% a depender das circunstâncias. O que quer que ainda falte esclarecer, e falta, não muda a estrutura do modelo.
“Ah, mas falta dizer onde se farão os cortes de gastos…” O arcabouço fiscal não é uma bala de prata. Há uma outra reforma pela frente, a tributária, que pode colaborar com a arrecadação mesmo sem aumento de impostos. Insista-se: é preciso fazer pagar quem tem de pagar. De todo modo, somos todos, os brasileiros, ouvidos para vozes tão eloquentes: querem cortar quanto de onde?
Sei… Vivem um pouco aquela sensação de paraíso perdido, não é mesmo? Afinal, o Brasil que essa gente tinha em mente, que foi derrotado nas urnas, é aquele traduzido no Orçamento que Bolsonaro havia mandado ao Congresso para 2023. Previa R$ 34 milhões para o Minha Casa Minha Vida — Lula elevou para R$ 9,5 bilhões — e cortava R$ 1,2 bilhão do Farmácia Popular, R$ 16 bilhões da Saúde e R$ 12 bilhões da Educação. Há valentes nostálgicos do Biltre que se homiziou em Orlando e que se homizia agora no PL do patriota Valdemar Costa Neto.
Por isso são incapazes de reconhecer um arcabouço fiscal que seria chamado de “liberal” em qualquer parte do mundo que ainda não perdeu o juízo.
Encerro
Eu não tinha dúvidas de que o texto era bom. Mas sabem como é. Sou um Reinaldo-Ninguém diante da opinião de “analistas” de corretoras com nomes estranhos, algumas em língua nenhuma. Mas aí li a nota emitida por Luiz Carlos Trabuco Cappi, presidente do Conselho de Administração do Bradesco. Diz que a proposta é “robusta”, desenhada para agregar previsibilidade e orientar o governo para uma boa gestão das contas públicas.
E ainda:
“Oferece parâmetros saudáveis para a trajetória da dívida pública, e assim determina expectativas positivas aos agentes econômicos e investidores. Ao ser criativa, flexível e simples, a nova regra fiscal representa um avanço. E mantém os princípios da Lei de Responsabilidade Fiscal e do Teto de Gastos”.
Acrescentou:
“O gradualismo também é um dos pilares de sua lógica, o que representa um aspecto elogiável por permitir uma execução tempestiva, sem turbulências.”
Inclino-me a ficar com a opinião dos adultos em vez de me deixar influenciar pelos arruaceiros da 5ª série do mercadismo.