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Quatro problemas de Gravataí além das manchetes; o porquê e o como

Prefeitura de Gravataí | Foto RENATA BREIER PORTO | Arquivo

É desonestidade intelectual tratar quatro temas como novidade em Gravataí: falta de médicos, de vagas em creches e de saneamento básico, além da incômoda colocação entre as campeãs da violência. Infelizmente ainda se experimenta uma mentalidade de aldeia, que parece só perceber as coisas quando ‘dá na RBS’, e aí, principalmente aos governantes de turno, resta apenas a presunção de culpa, condenados frente a verdades indiscutíveis.

Inegável que as últimas semanas foram pródigas em pintar a cidade como o pior dos mundos na mídia estadual. Reportagens no Diário Gaúcho, ZH, G1 e TV incluíram Gravataí entre os municípios que engrossam o déficit de mais de 12 mil vagas na educação infantil; no ranking que aponta o município como a 87º pior no saneamento básico entre os 100 maiores do Brasil; como segunda cidade mais violenta do Rio Grande do Sul e também na UTI da falta de médicos nas emergências, postos de saúde e, como conseqüência, mais demora na marcação de consultas pelo teleagendamento.

É preciso ir um pouco além das manchetes, principalmente por estarmos às vésperas do ano eleitoral e, às vezes, termos mais políticos fazendo selfies e lives do que pacientes esperando no saguão do 24 Horas. E aí não se trata de torcer ou secar governo, mas de trabalhar com os fatos, aqueles chatos que atrapalham argumentos, para formar uma opinião coerente e consequente.

Ou chegaremos a 2020 em busca de salvadores da pátria; invariavelmente ex, ou futuros heróis caídos, como mostra a história, passada e presente, sobre aventuras populistas, que jogam para a torcida e, hoje, em tempos de Grande Tribunal das Redes Sociais, apostam em votos fáceis num cassino caça-cliques em falas e, poucas, práticas.

Vamos às informações; não a memes.

Gravataí apareceu entre as cidades com dificuldade no acesso de crianças a creches. A Prefeitura nem respondeu à ZH. Quando em dezembro apareceu no Jornal Nacional na lista das cidades que dividiram R$ 1 bilhão do governo federal para construção de creches cujas não obras foram concluídas – em resumo, as escolas infantis da Vila Natal (Favo de Mel) e São Vicente (Raio de Sol), com 188 vagas cada, estavam paradas por problemas nos repasses do governo federal, que negou atrasos – detalhei os porquês, que são os mesmos de agora, no artigo O que poucos sabem sobre ’as creches do Jornal Nacional’.

Por óbvio, a versão que já circulava por milícias digitais induzia ao “dinheiro sumiu”, já que cada creche custa em torno de R$ 2 milhões, R$ 1,5 mi do governo federal, outros R$ 500 mil da prefeitura.

As duas creches citadas estavam mesmo paradas. Nem 10% das obras tinham sido feitas. Em fevereiro de 2018, a empresa contratada não se interessou em renovar o contrato, alegando não suportar os atrasos de até quatro meses nos repasses do Ministério da Educação, via FNDE.

Mas não há como não considerar um azar – injustiça não, já que as obras estavam mesmo paradas – Gravataí figurar como um dos três exemplos globais para o levantamento do site Transparência Brasil, que revela que, nos últimos dez anos, “de 14 mil obras contratadas com recursos federais, só 44% das escolinhas e creches foram entregues; 18% foram canceladas e 38% não saíram do papel ou estão com obras paradas por uma série de problemas”.

É que Gravataí é a cidade gaúcha com mais obras de escolas infantis em andamento. Três creches – Marechal Rondon (inaugurada em maio deste ano), a Centro (Bem Me Quer) e a Morada do Vale II – integram um pacote de 11 Emeis projetadas até o fim de 2020, num total de 1,5 mil vagas – 957 delas já em 2019 – e um investimento de R$ 18 milhões.

Para entender o problema é preciso voltar a 2016, no primeiro governo Marco Alba (MDB), quando Gravataí só conseguiu retomar a construção de seis creches – Marechal Rondon, Morada II e III, Rincão, Princesas e Porto Seguro – ao se livrar da construtora imposta pelo governo federal, que faria 14 só no município, mas quebrou depois de construir no Rio Grande do Sul apenas quatro, de 208 escolas infantis, deixando obras paradas e materiais se deteriorando país afora.

Em uma articulação do prefeito junto ao ministro chefe da Casa Civil Eliseu Padilha, o Ministério da Educação editou uma resolução, publicada naquele ano, que permite à Prefeitura destinar recursos próprios para manter os pagamentos em dia às construtoras contratadas e depois ser ressarcida pelos repasses do governo federal. É mais um dos tantos casos em que a Prefeitura de Gravataí banca a obra e fica à espera do repasse estadual ou federal.

Aí, as obras já começaram a subir no modelo tradicional, ‘tijolo e cimento’ como costuma falar Marco Alba, e não na estrutura que era tecnologia exclusiva no Brasil da ‘construtora do calote’, e entraram na lista as emeis Bem Me Quer, Favo de Mel, Cohab C e Costa do Ipiranga. As obras em alvenaria permitem que, caso as construtoras não toquem o serviço no prazo, possam ser substituídas com maior facilidade.

A Bem Me Quer, a polêmica creche que há dois anos tratamos nos artigos Não presídio, creche é polêmica em bairro nobre Creche da polêmica em bairro nobre logo vai abrir, era um exemplo em vistoria que fizemos em dezembro: estava 75% pronta graças a repasses do cofre da prefeitura. O atraso do governo federal chegava ao um ano, como confirmou Diego Junqueira, da construtora Se Conter.

– Deu uma tristeza ver a matéria no Jornal Nacional quando nos esforçamos tanto para construir essas creches – lamentou na época Sônia Oliveira, secretária da Educação, que acompanhou o Seguinte: numa vistoria das obras ao lado do adjunto Guilester Neves após a reportagem do JN.

Hoje há na fila das creches 3 mil crianças, a maioria entre zero e três anos. O Tribunal de Contas do Estado (TCE), que faz um cálculo incluindo crianças de todas as classes sociais aponta 9 mil. Mas, entre 2012 e 2019, o número de crianças atendidas cresceu de 3.038 para 6.557. São dados que evidenciam uma prioridade para o déficit de vagas.

Tratemos agora do desastre no saneamento básico, que abordei quarta no artigo Como tirar Gravataí do rodapé do saneamento. É um problema histórico e vem desde o fracasso do Pró-Guaíba, programa de 20 anos, redivivo depois com o PAC, que não cobriram nem 30% da zona urbana. Hoje há R$ 370 milhões em “obras em andamento”, que serão absorvidos caso vingue a parceria público-privada, envolvendo a Corsan e nove municípios da região metropolitana – entre eles, Gravataí.

Não é uma certeza, mas aparentemente a única solução neste momento para ‘enterrar dinheiro’ em esgoto e tentar resolver o problema na região. A PPP, cujo edital será lançado dia 16, projeta para 2028 o ano em que o saneamento básico estará universalizado em Gravataí. Significa que toda população terá água e nove a cada dez economias (94% delas residências) terão esgoto tratado.

O investimento projetado é de R$ 9,5 bilhões em 35 anos, cálculo de 32 mil empregos, geração de renda de R$ 2,9 bilhões e valorização dos imóveis numa média de 10% – que projeta crescimento dos atuais 483 mil propriedades com esgoto, na atual população de 1,5 milhões de pessoas, para 1,6 milhões atendidos em uma população de 1,9 milhões em 2055.

O investimento direto em obras e tecnologia será de R$ 1,9 bilhão da empresa vencedora da PPP, R$ 300 milhões em investimentos no sistema Gravataí-Cachoeirinha já iniciados no PAC.

Do fundo de gestão compartilhada com a Corsan, para uso em obras de saneamento, mas também para consertar estragos na pavimentação provocados pelas obras, Gravataí garantiu R$ 20 milhões e Cachoeirinha R$ 9 milhões pela prorrogação dos contratos por 21 e 18 anos, respectivamente.

Para se ter uma idéia, a falta de saneamento barra hoje 17 empreendimentos apenas entre a área das novas pontes do Parque dos Anjos e a parada 103. Um dos investidores, que resolveu fazer uma rede própria de esgoto, encareceu o negócio em R$ 5 milhões.

A idéia, conforme os técnicos da Corsan, é o resultado da PPP ‘espelhar o rio’, ou seja, recuperar o Rio Gravataí, hoje listado pelo IBGE entre os três mais poluídos do Brasil, na mesma ordem de universalização do saneamento.

Em Gravataí, o prefeito Marco Alba sonhava com uma concessão municipal do saneamento e um ‘tchau, Corsan!’ – e foi uma de suas promessas da campanha de reeleição. No ano passado, porém, pesou os riscos e cedeu à PPP metropolitana lançada pelo governador de seu partido, José Ivo Sartori.

À época, uma batalha nos tribunais já era tratada nos bastidores do governo como uma certeza também em Gravataí, principalmente após em março do ano passado a Prefeitura de Novo Hamburgo ter sido condenada a pagar R$ 300 milhões para a Corsan como indenização pela municipalização do saneamento ocorrida há 20 anos (conta a ser paga até 2024, sem possibilidade de novos recursos judiciais).

Depois, porque empreiteiras com poderio para concorrer em uma licitação em Gravataí estavam em processo de destruição pela Lava Jato. Como, por exemplo, Andrade Gutierrez, Queiroz Galvão, Mendes Júnior, Camargo Corrêa e Odebrecht, que presta serviço semelhante em Uruguaiana, e de 2015 para cá acumulam R$ 55 bilhões em prejuízos e são responsáveis por metade das 500 mil demissões no ramo da indústria pesada nacional.

Há, claro, parcela de culpa no prefeito e nos ex-prefeitos, por Gravataí estar entre as piores coberturas de saneamento básico, mas não são, de longe, os principais responsáveis pelo desastre: não há orçamento municipal que consiga fazer intervenções necessárias sem aporte estadual e federal – na maioria das vezes, com a Corsan no meio.

Aguardemos para ver se a PPP, vendida como solução, sai bem, e não muito cara, do PowerPoint.

Então, a César o que é de César.

Sobre a falta de médicos, publiquei uma série de artigos de alerta desde dezembro do ano passado, quando houve o ‘rompimento de Twitter’ entre Cuba e o ainda não empossado presidente Jair Bolsonaro. A cada reportagem, críticas foram metralhadas nas redes sociais e teclados foram gastos chamando o jornalista e o Seguinte: de ‘comunista’, ‘petralha’ e outros argumentos científicos como uma previsão astrológica de Olavo de Carvalho. Recordo de mínimas intervenções de vereadores tratando disso na tribuna, uns talvez com medo de identificados ‘petralhas’, outros ‘bolsonaristas’.

Fato é que foram embora de Gravataí 27 ‘escravos’ cubanos, cuja excelência no atendimento basta perguntar aos pobres que os médicos atendiam. Dos 18 profissionais que selecionaram a cidade no Programa Mais Médicos para substituí-los, só 10 ‘patriotas’ aceitaram trabalhar na periferia, nas unidades de saúde da família. Hoje já se calcula pelo menos 45 mil atendimentos a menos desde a ‘crise – não dos mísseis – do Twitter’.

O problema pode ainda se agravar se Prefeitura, Ministério Público do Trabalho e Justiça do Trabalho não chegarem a um acordo na polêmica sobre termo de ajuste de conduta, que impede a contratação de médicos em caráter emergencial. O governo pede a revogação do TAC de 2006, para seguir contratando 45 médicos de empresa terceirizada (aí para a urgência e emergência, e não para as USF, onde atuavam os cubanos); já o MPT, e Judiciário, como parece indicar pesado despacho da 4ª Vara, que tratei no artigo Citando Game of Thrones, juíza contesta tese da Prefeitura sobre falta de médicos em Gravataí, cobram uma solução por concurso, recomendando inclusive aumentar os salários oferecidos aos médicos.

Em relação à perda dos cubanos, é injusto apontar inação da Prefeitura. ‘Culpa’ ideológica? Talvez, já que Marco Alba e seu MDB, no segundo turno, apoiaram Bolsonaro. Mas, no pragmatismo das ações de governo, o prefeito abriu concurso público e, só neste ano, chamou 53 médicos aprovados. Apenas oito aceitaram a convocação. Destes, restam cinco trabalhando.

A média de saída é de um médico por semana!

É programado pela Prefeitura o lançamento do edital de novo concurso entre o fim deste mês e início de setembro para contratação de 53 médicos, 24 deles para atenção básica, os demais entre especialidades e reposição dos terceirizados da urgência e emergência.

Se Apolos, Esculápios, Hígias ou Panaceas acharão bom para suas carreiras, famílias e bolsos trabalhar em Gravataí, torçamos, para que Joões, Marias e Cauãs não restem sem atendimento, ou sigam ligando para o teleagendamento e conseguindo a marcação de consultas apenas para uma, duas, ou três semanas depois.

Para encerrar, o assustador Atlas da Violência, que coloca Gravataí como a segunda cidade mais violenta do RS. Os dados são de 2017, mas os tiros políticos só vieram agora – que deu manchete. Por óbvio que Gravataí é insegura, como a maioria das cidades metropolitanas. Já foi ‘zona de atentado’ no Facebook e ainda está fresco o sangue inocente de balas perdidas do incidente no Três Estrelas, o que tratei no artigo Troque Thaís por Maiara; atentado em Gravataí é o ’novo normal’.

Mas, o que mais poderia ser feito pelo prefeito, em meio a uma guerra declarada entre facções?

No curto prazo, naquela história da sensação de segurança, Marco Alba contratou guardas municipais na segunda-feira seguinte à posse e mandou viaturas às ruas. Hoje a Guarda Municipal tem um efetivo maior do que a Brigada Militar e seus 20 PMs por turno – segurança, conforme a Constituição, é dever o governo estadual, por mais que possamos escrever sobre o livrinho um “é verdade este bilhete”.

Uma corrente de pensamento pode indicar que esses recursos teriam mais efeitos aplicados nos salários dos professores, na educação, no esporte e na cultura, para educar e tirar crianças e adolescentes das ruas, mas posso apostar que é ideologia inversa a dos que nas redes sociais e na tribuna da Câmara mais gritam por repressão e polícia na rua contra o crime.

Aos mais deficientes em interpretação, pode parecer um textão para negar problemas, ou para aliviar o prefeito e o governo. Não. O artigo não desmerece nenhuma das quatro reportagens negativas das últimas semanas (até porque bem escritas e com dados reais); apenas alerta que há um mundo real além das manchetes, que revela, sim, erros de políticos e governos, mas também escancara limites, orçamentários, da burrocracia ou da competência de cada ente, município-estado-união.

Ingênuos aqueles que acharem que basta camarada, XX ou XY, sentar na cadeira estofada do segundo andar do palacinho ocre da José Loureiro da Silva e Gravataí não vai mais ‘dar na RBS’.

Precisamos saber os ‘porquês’, para em 2020 perguntar aos mágicos da vez ‘como?’.

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